O carnaval de 1974 passou à História como o do alvorecer da magia criativa de Joãosinho Trinta, que começou ali, no Salgueiro campeão com “O rei de França na Ilha da Assombração”, a revolução estética da grande festa brasileira. Diante da plateia indiferente, a desconhecida Beija-Flor de Nilópolis cruzou a Avenida Presidente Antônio Carlos com o enredo “Brasil do ano 2000”, exaltação ao milagre econômico da ditadura. Terminou num pagão sétimo lugar.
A azul e branco da Baixada emplacava o segundo ano de uma infame trilogia de saudação ao regime militar. (Houve mais de 50 desfiles que festejaram os anos de chumbo, em praticamente todas as escolas, mas os da Beija-Flor colaram nela para sempre.) O refrão de abertura do bom samba “Brasil do ano 2000”, composto por João Rosa e Walter de Oliveira, descrevia a vigorosa ideia de progresso da época:
[g1_quote author_description_format=”%link%” source_name=”Refrão Beija-Flor 1974″ align=”center” size=”s” style=”solid” template=”01″]É estrada cortando a mata / Em pleno sertão / É petróleo jorrando / Com afluência do chão
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Veja o que já enviamosA primeira referência falava da Transamazônica, delírio-símbolo do regime, que mutilava a floresta em nome de traçar, segundo o pensamento vigente, rota da riqueza, caminho do topo. A segunda saudava o petróleo então escasso como elixir para todos os males, diante da crise que, àquela altura, demolia a economia – e seria um dos venenos fatais à própria ditadura.
Hoje, jaz em Altamira – o maior município do Brasil em território, naco da Amazônia às margens do rio Xingu maior do que Portugal e Suíça –, no Sul do Pará, uma placa daqueles tempos loucos, incentivando o desmatamento em nome do progresso. Deveria ser guardada como monumento à insensatez.
Mas faz – ou fazia – sentido que escolas de samba e cidadãos comuns nadassem de braçada na onda poluidora. A ignorância ambiental grassava pelas mais diversas esferas de poder. No início daquela década, o próprio governo contribuiu para a desinformação com um personagem de lugar cativo nas lembranças afetivas de muito cinquentão. Protagonista da campanha “Povo desenvolvido é povo limpo” – uma das mais caras ao regime –, o brejeiro Sujismundo contribuiu para os equívocos.
Criado pelo publicitário fluminense Ruy Perotti, o personagem não nasceu por urgências ecológicas. Pretendia cristalizar nos brasileiros hábitos de higiene e civilidade, como não jogar lixo no chão nem urinar na rua. (As multas impostas pela Prefeitura do Rio aos porcalhões e as imagens dos selvagens que transformam a via pública em banheiro, século XXI adentro, dão a medida do fracasso.)
Algumas mensagens da campanha patinaram no equívoco. Numa delas, Sujismundo aproveita um dia de sol para mergulhar no rio, e seu filho, Sujismundinho, tenta preveni-lo: “Espere, a água pode estar suja”. O pai teima e o menino insiste: “E pode conter micróbios. Da esquistossomose, por exemplo”. Surge, então, o doutor Prevenildo (nomes espetaculares, né não?), professor do garoto, com o “recado científico”: “É preciso cuidado com os banhos de rios e lagos. A sujeira colocada nas margens é levada pelas cheias ou pelas próprias pessoas. A água fica contaminada com transmissores de sérias doenças como esquistossomose, cólera, febre tifóide etc, que atacam as pessoas”.
Sujismundinho volta para o grand finale: “Muitas dessas doenças não seriam contraídas se as pessoas evitassem os banhos de rio”. Ou seja: a poluição era tratada como inevitável, mesmo na campanha de conscientização de um governo autoritário. “Pregar que não se tome banho em rios poluídos trata o verdadeiro problema como fato consumado”, observa o publicitário, escritor e roteirista Adilson Xavier. “A preservação do meio ambiente era ignorada, pelo conceito do progresso a qualquer preço”.
Foi outro dia – mas os danos ao planeta causados pela praga chamada espécie humana ainda continuam sob suspeita, por desinformação ou leviandade. Há quem jure pela própria alma que o aquecimento global é como o Abominável Homem das Neves, a nota de três reais e o estádio próprio do Flamengo – obras da mais pura ficção. Contra eles, só a comunicação resolve.
[g1_quote author_description_format=”%link%” source_name=”Samba-enredo da Beija-Flor, 2004″ align=”none” size=”s” style=”solid” template=”01″]
Água que lava minh´alma / Ao matar a sede da população / Caboclo ê, a homenagem hoje é / A todo povo da floresta um canto de fé / Se Deus me deu vou preservar / Meus filhos vão se orgulhar / O Amazonas é Brasil, é luz do criador / Avante com a tribo Beija-Flor
[/g1_quote]Sim, mas como? Maria Paula Fernandes, diretora-fundadora do Movimento Gota D’Água e da ONG Uma Gota no Oceano, confessa sua descrença na publicidade tradicional, ou em campanhas governamentais, para mobilizar corações e mentes. “O caminho é indireto. Conscientizar a sociedade para que ela cobre mudanças do mercado”, ensina. “A indústria automobilística começou a buscar modelos mais sustentáveis porque detectou uma demanda, entre os mais jovens, de veículos mais limpos”, cita ela, especializada em comunicação de massa.
Na missão de despoluir, as mentes são território mais difícil do que rios, mares, florestas. Mas passa por elas, obrigatoriamente, a boa luta ambiental.
Trinta carnavais depois daquele 1974, a mesma Beija-Flor pisou a Sapucaí para cantar a Amazônia e compôs um manifesto pela preservação no ritmo (preciso) do samba de Claudio Russo, José Luiz, Marquinhos e Jessey.
Foi campeã – porque o tambor da esperança precisa sempre bater mais alto.