Na parede branca, o arame farpado nada protege; sua espiral escreve, em letra cursiva, a palavra “segura” por 18 vezes. Retorcido pela tesoura, o arame tem sua hostilidade vazada pelo ar. Na plasticidade da escrita, nenhuma forma pode ser assegurada. O espectador, então, toma certa distância e se depara com um redemoinho de palavras afiadas. A obra do artista Jefferson Medeiros, 32 anos, pensa as cercas visíveis e invisíveis da sociedade brasileira, cortada pela desigualdade social. “Quando eu era criança, ia brincar no meu vizinho e tinha que passar por uma cerca de arame farpado. Atravessando essa barreira, decidi pegar essa brutalidade e escrever com delicadeza”. Medeiros é um dos oito artistas que integram a exposição “Vazar o invisível”, aberta no estúdio OM.art, no Jockey Club, até dia 31. Nascido em São Gonçalo, o artista conta que o incômodo causado pela violência urbana motivou o desejo de trabalhar com arame farpado. “Produzi uma prática discursiva para dialogar com os meus pares sobre essa violência, que não é normal, é a manutenção de uma segregação”, ele explica. Medeiros teve o primeiro contato com a arte em 2008, quando trabalhava no Museu de Arte Contemporânea de Niteroi (MAC). Desde então, notabilizou-se pela inquietude em relação à segurança pública, realizando intervenções artísticas em cápsulas de balas encontradas nas ruas. “Pela primeira vez entrei no Jockey. Existe uma lógica que impede São Gonçalo de frequentar esse clube”.
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Idealizada por Jefferson Barbosa, do PerifaConnection, Oskar Metsavaht e Ernesto Neto, “Vazar o invisível” reúne artistas da periferia em um dos endereços mais nobres do Rio de Janeiro. Propõe deslocar o olhar da elite branca para um espaço em que a diversidade não está apenas na escolha dos artistas, mas em suas diferentes linguagens. Fotografia, videoinstalação, argila e pintura formam um panorama da produção de jovens artistas, que subvertem as barreiras da sociedade, afirmando a centralidade de suas histórias, em trabalhos produzidos especialmente para a exposição. Para Camilla Rocha Campos, que assina a curadoria ao lado de Raquel Barreto, a mostra é pautada por três eixos temáticos: territorialidade, afeto e ancestralidade. “É o repertório que cada um traz a partir de cada corpo. Quem se domina centro? A experiência de cada um pode ser o centro do trabalho”.
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Veja o que já enviamosNesse sentido, a funkeira Deize Tigrona estreia como artista plástica, expondo a obra “Livro de pau”. Com uma caneta permanente, Tigrona grava a trajetória de um menino de comunidade em nove portas de madeira que, envelopadas com papel pardo, se articulam como um livro. Na obra “Um caminho com voltas”, Lidi de Oliveira costura em um longo tecido sua própria história, desde o sertão até a Baixada Fluminense. Já na videoinstalação “É preciso inserir preto”, Osmar Paulino discute a inserção dos negros na sociedade, a partir das cores da bandeira nacional.
Natural de Itaboraí, Filipe Cordon, de 27 anos, constrói seu próprio mosaico na mostra, a partir de onze fotografias que retratam o cotidiano das comunidades do Rio. Em “Tudo nosso, nada deles”, ele navega entre brutalidade e afeto, documentando cenas que os telejornais não costumam mostrar. Um vira-lata caramelo ao lado de uma arma de fogo, meninos tomando banho na caixa d’água, crianças chupando picolé. “É uma exposição sobre territorialidade e pertencimento. Brinco com o fato de estar expondo naquele lugar e faço com que ele seja nosso espaço também”, conta.
Ressaltando a natureza urbana da obra, Cordon cola as imagens no compensado com lambe-lambe, o que provoca ondulações típicas das publicidades afixadas nas ruas da cidade. Por vezes, a fotografia surge inesperadamente. “Essa do cachorro com a arma eu estava no Baile da Nova Holanda com um amigo MC e, de repente, vi que daria uma boa foto”, comenta. Em outra cena, um rapaz com o dorso nu e um cordão de ouro posa com os braços abertos, enquanto é coberto por uma luz vermelha em contraste com o entardecer. “É na laje de um amigo meu. Buscava esse efeito, então botei papel vermelho no flash para combinar com a luz do pôr do sol”, revela.
As cores terrosas da instalação “Agô”, da artista Gabriella Marinho, criada no Jardim Catarina, em São Gonçalo, chamam a atenção pela elegância. Na parede, um conjunto de búzios indica a reverência à ancestralidade. À frente, a galeria é coberta por terra, trazida pela artista diretamente do seu bairro. “Levo o chão de barro de onde moro para um lugar elitizado e sustento esses búzios com ele”, explica.
“Agô” é o desdobramento de outra obra, que esteve no ArtRio deste ano e foi vendida ao acervo do Museu de Arte do Rio (MAR). Na mesma instituição, Marinho, 26 anos, expõe sua instalação com espadas de Ogum. Desde pequena, a artista trabalhou com cerâmica e argila. Ao lado da mãe, tinha o hábito de fazer biscuits para vender. “O trabalho manual trouxe maior sensibilidade para mim. Com a cerâmica, consigo eternizar a minha existência”, atesta.