A réplica das palafitas construídas, na década de 1940, pelos recém-chegados moradores da região do Morro do Timbau, no Rio, abriga num mesmo espaço sala, cozinha, quarto e banheiro. Destaque do Museu da Maré, fundado em 2006, a estrutura reproduz em minúcias o interior das antigas casas: a mobília de madeira carcomida e os utensílios de cozinha enferrujados decoram o interior. A memória local conta que ali viveria uma família de oito pessoas. Oitenta anos depois, a construção atravessou o Atlântico. O Museu da Maré e mais sete museus sociais foram tema da exposição “Rio Somos Nós!”, em Madrid, na Espanha, e são objeto de debates da museologia contemporânea.
O Museu Nacional de Antropologia (MNA), em conjunto com a Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro (Remus-RJ), exibe no Salão Central a mostra. O MNA busca criar uma ponte com a realidade multicultural do Rio, por meio desses que são “os novos museus do século XXI”. Na lista, estão o Museu da Favela, o Museu Sankofa, o Museu Cerro Corá, o Museu Vivo de São Bento, o Museu das Remoções, o Museu das Emoções, o Sepetiba Ecomuseu e o Museu Raízes de Gericinó.
Diretor do Museu da República, Mário de Souza Chagas concebeu o projeto da exposição com os museus comunitários e o MNA em meados de 2018. À época, o também fundador da Remus-RJ escolheu as “experiências” (como ele se refere aos museus) iniciadas no período entre 2006 e 2016. O critério, afirma o museólogo, justifica-se pelo boom na criação dessas instituições durante o período, quando o conceito e a prática de museologia social estavam consolidados no Brasil.
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Veja o que já enviamosNosso museu fala na primeira pessoa, um espaço que dialoga com quem está dentro dele. O morador não vê a história dos outros, mas a sua
[/g1_quote]A convite do espanhol Fernando Saez Lara, diretor do MNA, o brasileiro, em parceria com a professora da Unirio Alejandra Saladino, decidiu incluir oito experiências, mesmo após Saez Lara demonstrar interesse em levar apenas o MM. Chagas revela que após conversas com os agentes envolvidos, ficou decidido privilegiar a diversidade do Rio em museus sociais, o que deu ao projeto outra dimensão. “Incluímos fotografia, vídeos, textos e objetos. Contudo, precisavam ser artefatos que pudessem ir para ficar, sem muito valor artístico. As pipas, que representam o lazer nas favelas, fizeram sucesso. O interesse pela museologia social mundo afora é crescente”, atesta o museólogo.
Para a equipe do Museu Nacional de Antropologia, o mote do projeto foi a comemoração do quinto centenário da primeira circunavegação na terra, capitaneada por Fernão Magalhães em 1519. A proposta, explica o MNA, é repetir as viagens após 500 anos, dando voz às comunidades de locais onde a esquadra espanhola desembarcou, em lugares que hoje apresentam panorama social e cultural “complexo” e “ameaçado”. Segundo a instituição, a Rio Somos Nós! é a primeira das nove exibições do projeto “Vamos dar a volta ao mundo”, em reconhecimento às grandes navegações.
De acordo com Patrícia Alonso, responsável pelo projeto, os museus despertam admiração nos visitantes porque têm vocação social e laços com as comunidades que representam. “Acreditamos que a exposição serve para reivindicar o papel dos museus perante a própria sociedade brasileira”, sustenta ela, que destaca o grande interesse entre os profissionais espanhóis da museologia.
Museologia tupiniquim na gringa
Com a crescente proliferação dos museus no Rio nos últimos 13 anos, os museólogos internacionais acompanham de perto as experiências elaboradas em todo o Brasil. Na interpretação de Patrícia, o avanço acontece porque a museologia social renova a ideia e o papel dos museus: o foco passou das coleções de itens históricos às pessoas e às comunidades. “São museus que nascem das próprias comunidades, das necessidades de seus membros e não apenas valorizam a herança cultural e natural, ou material e imaterial. Eles também realizam atividades para melhorar as condições de vida dos moradores. Dão novo significado à palavra museu, bem no momento de crise conceitual do modelo, na medida em que ele é questionado como ferramenta de legitimação do pensamento ocidental e da dominação do pensamento global pela cultura europeia”, argumenta ela.
Em 2015, Mario Chagas arrumou as malas e viajou a Paris, após o convite do aclamado Museu do Louvre. Segundo o museólogo, houve certa resistência no início em aceitar o convite, pois o caráter tradicional da instituição francesa pouco se relacionava, ele imaginava, com temas como o Direito à Memória e a defesa de grupos sociais minoritários — dois assuntos centrais na pauta dos museus comunitários. “Mas depois percebi que era autêntico e fui. Havia de verdade um interesse forte pelas experiências. E essa procura de fora vem crescendo no mundo; nas Américas Latina e Central, na Europa e África”, constata Chagas.
Em 2013, o Conselho Internacional de Museus (ICOM, na sigla em inglês), órgão não-governamental criado em 1946, sediou no Rio de Janeiro a Conferência Geral do ICOM, onde os conselhos dos 137 países participantes se reúnem trienalmente para debater questões relacionadas à museologia. O coordenador do Museu da Maré, Luiz Antônio de Oliveira, recorda com orgulho os preparativos da 23ª edição do evento. O protocolo de nomeação previa a visita de uma comissão do ICOM às cidades concorrentes, a fim de analisar suas condições infraestruturais e seus atrativos museológicos. Dos quatro museus do Rio, que disputou com Milão, onde os avaliadores estiveram, um foi o da Maré. “Ou seja, brigando pela candidatura da conferência internacional, o ICOM foi à Maré. Nosso museu fala na primeira pessoa, um espaço que dialoga com quem está dentro dele. O morador não vê a história dos outros, mas a sua”.
Segundo Chagas, após a década de 1970, a museologia deixa de lado interesses imperiais, ligados ao imaginário dos estados nação, e passa a atrair grupos populares. A nova vertente museológica, observa ele, dá os primeiros passos no Brasil na década de 1950, com a criação do Museu de Imagens do Inconsciente (MII), no Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio. “A Nise (da Silveira) fez um museu preocupada com os médicos e as famílias dos pacientes, que criavam as obras, e não com turistas. O trabalho dela é um marco extraordinário. Depois veio o Museu do Índio, fundado pelo Darcy Ribeiro em 1953. Uma das falas dele era de que o índio não era um “fóssil, e a instituição deveria combater o preconceito contra os povos indígenas”, aponta o museólogo.
Articuladora do Museu das Remoções, Sandra Maria Teixeira, de 52 anos, lembra que no ápice das remoções na Vila Autódromo, comunidade da Barra da Tijuca, surgiu entre os moradores a ideia de realizar a iniciativa com as memórias do território, situado na Zona Oeste da cidade. Onde um dia foi uma área habitada por 600 famílias, hoje moram 20. O museu, erguido sobre o lastro de destruição deixado pela prefeitura, se tornou, no olhar de Sandra, o reconhecimento de um capítulo da história do Rio. “O museu tem como meta principal preservar a memória das populações removidas e servir como ferramenta de luta, pois nasce na luta e para a luta”, observa ela.
A cooperação do poder público
A professora de Museologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Inês Gouveia, conta que o governo federal foi grande fomentador em determinado período, com editais lançados por programas como os Pontos de Cultura, criado em 2004 na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura (MinC); e os Pontos de Memória, ligado ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) desde 2011. Além disso, continua Inês, havia o financiamento federal de encontros regionais e nacionais das redes de museologia social. No entanto, depois de 2016, a relação “estacionou”, pontuou a professora, articuladora da Remus-RJ entre 2013 e início de 2019. “Conversávamos muito sobre como os estados poderiam replicar essa atuação do governo federal para estimular as atividades das redes e dos museus. Um dos que fizeram exemplarmente isso foi o Espírito Santo, que anualmente lança editais oriundos dos Pontos de Memória”, relata a museóloga.
Até 2006, a Rede de Memórias da Maré oferecia um grande arquivo de filmagens, objetos e fotografias doados por moradores, além do acervo que a Fiocruz e a Caixa Econômica mantinham sobre o complexo de favelas. Mário Chagas relembra os objetivos da rede: registrar, preservar e divulgar a história da comunidade. Munidos de banners com um metro e oitenta por oitenta, repleto de fotos e textos sobre a história da Maré, a rede percorria escolas municipais e eventos socioculturais para difundir as memórias. Em 2003, uma exibição na Fiocruz abriu novos caminhos, que deram no galpão ocupado hoje pela instituição, guardiã da memória de parcela normalmente invisibilizada na história oficial do Brasil.Mus