Aproveitar a cidade existente para criar uma cidade justa

Política habitacional brasileira repete erros do passado e reforça o apartheid social

Por Clarisse Linke | Mobilidade UrbanaODS 11ODS 16 • Publicada em 19 de novembro de 2015 - 00:05 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:06

Moradora caminha vários quilômetros até chegar ao Condomínio Coimbra, no Complexo Jesuítas, na Zona Oeste
Marcado em vermelho, o residencial Coimbra, parte do Complexo Jesuítas, na Estrada dos Palmares. Em verde, o distante BRT Transoeste
Marcado em vermelho, o residencial Coimbra, parte do Complexo Jesuítas, na Estrada dos Palmares. Em verde, o distante BRT Transoeste

Soa bastante óbvio dizer que urbanistas e planejadores urbanos devem abordar temas como transporte, habitação e emprego de maneira conjunta. No entanto, durante grande parte do século 20 não foi isso que aconteceu. O que predominou foi a separação entre usos e circulação, resultando na triste realidade que vemos hoje no Brasil: cidades com mobilidade limitada e territórios socialmente desiguais.

A política de habitação de interesse social foi e continua sendo um dos principais motores do desenvolvimento urbano. No entanto, ela segue enfatizando o apartheid na nossa sociedade, com a localização dos conjuntos desconectada do restante da cidade e apenas marginalmente conectada à malha de transporte. O que acaba sendo, não apenas um desastre, mas uma idiossincrasia, pois no cerne destas políticas deveria estar a redução do descompasso espacial e social nas cidades.

Investimentos sem precedentes têm marcado o Brasil desde 2009, tanto para a expansão da infraestrutura de transportes públicos, quanto para a habitação de interesse social. Só o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) destinou R$ 153,7 bilhões para 413 projetos de infraestrutura de mobilidade urbana em todo o país. Simultaneamente, o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) já entregou mais de 2 milhões de moradias, e há mais de 1.6 milhões em construção.

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Uma cidade é sempre uma concentração de oportunidades, não uma aglomeração de casas

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O governo federal espera que até o final de 2018 mais de 25 milhões de pessoas tenham sido atendidas. Um montante de investimentos em habitação social incomparável no Brasil e no mundo. O que está claro, no entanto, é que embora o programa se justifique frente ao déficit habitacional estimado em 5.5 milhões de unidades em 2009, seu ímpeto inicial focou na necessidade de manter a economia aquecida durante a crise financeira mundial de 2008. Enquanto o MCMV atende às metas quantitativas, a qualidade é alvo de questionamentos, principalmente no que diz respeito ao planejamento, ao desenho e à qualidade dos projetos finais.

Um elo crítico, em particular, está ausente no investimento que vem sendo feito em mobilidade urbana e habitação de interesse social: ambos são tocados forma isolada. O padrão na seleção de terrenos pelas construtoras, aprovada pelos entes municipais e financiada pela CAIXA, é obviamente norteada pela lógica de mercado, resultando em projetos isolados em periferias urbanas remotas.

No Rio de Janeiro, por exemplo, 53% das unidades do MCMV entregues até 2013 para beneficiários da faixa 1 (entre 0 e 3 salários mínimos) estavam no extremo da Zona Oeste, a área da cidade mais limitada quanto à infraestrutura e oportunidades de emprego. Moradores desta área precisam cobrir 50 km em cada sentido para chegar diariamente ao Centro do Rio, onde está concentrada a maior parte dos empregos.

Infelizmente, não é a primeira vez que a habitação de interesse social é planejada desta forma no Brasil. Na prática, este padrão foi exatamente o que norteou o planejamento da política habitacional durante os anos 60. Perdemos uma grande oportunidade de aprender com os erros do passado.

A criação do Banco Nacional da Habitação (BNH), em 1964, garantiu uma fonte permanente de recursos para a produção em massa de habitação de interesse social. No entanto, as preocupações com os custos resultaram em projetos homogeneizados de baixa qualidade, localizados na periferia. Três exemplos famosos são a Cidade de Deus, a Vila Aliança e a Vila Kennedy, complexos habitacionais financiados com recursos dos Estados Unidos. O “Aliança Kennedy para o Programa Progresso”, de erradicação de favelas, na verdade, tinha como objetivo evitar que a Revolução Cubana se espalhasse pela América Latina.

Neste período, 40 mil casas foram construídas na periferia para receber cerca de 30% dos moradores desapropriados de suas residências nas favelas. O resultado foi um esforço inútil. Entre 1970-1974 o número de favelas nas cidades quase duplicou, pois a lógica de ocupação dessas comunidades está ligada à necessidade óbvia de manter as pessoas próximas dos seus locais de trabalho.

Quando se planeja moradia de forma isolada, ignora-se uma das principais estratégias de subsistência dos grupos baixa renda para estabilidade econômica e realização social. Produzimos pedaços de cidade monofuncionais. Perdemos todas as possibilidades que o uso misto oferece: ocupação, utilização e fluxos que se complementam de forma mútua e constante, tanto econômica quanto social e culturalmente.

É urgente que um programa com a escala do MCMV, que agora se prepara para entrar em sua terceira fase, traga novos padrões de planejamento que efetivamente transformem as dinâmicas sociais e espaciais das cidades. Uma boa localização e o acesso aos sistemas de mobilidade são tão importantes para a sustentabilidade desses programas quanto o fornecimento de água, a eletricidade e o saneamento.

Isso quer dizer aplicar nos processos de planejamento, aprovação e desenho condicionantes que induzam à inserção dos empreendimentos em área urbana consolidada; com oferta adequada de equipamentos de educação e saúde; com oferta adequada de serviços e comércio de uso diário; e bem servido por transporte público de média e alta capacidade. O desenho do projeto e da área do seu entorno também é crucial, com rede de ruas seguras e acolhedoras, que induzam as pessoas a caminharem a pé, a pedalarem e a socializarem no espaço público. Nas palavras de Alejandro Aravena, “uma cidade é sempre uma concentração de oportunidades, não uma aglomeração de casas”. Aproveitemos, portanto, a cidade existente para produzir cidades justas.

Moradora caminha vários quilômetros até chegar ao Condomínio Coimbra, no Complexo Jesuítas, na Zona Oeste
Moradora caminha vários quilômetros até chegar ao Condomínio Coimbra, no Complexo Jesuítas, na Zona Oeste

Clarisse Linke

É Diretora do ITDP no Brasil e atua com políticas públicas desde 2001, com experiência no Brasil, Moçambique e Namíbia. É Mestre em Políticas Sociais pela London School of Economics. Entre 2006-2011, foi responsável pela expansão da BEN Namibia, se tornando a maior rede de bicicletas integrada a empreendimentos sociais na África sub-Saariana. Em 2010, foi premiada pela Ashoka no Desafio “Mulheres, Ferramentas e Tecnologia”. Clarisse é uma pessoa que só pensa em como transformar as cidades em lugares de felicidade.

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