Aplicativos que escondem cidades

Guiados por aparelhos, motoristas perdem a interação com as ruas, tão cheias de história, dos lugares em que vivem

Por Fernando Molica | ODS 11 • Publicada em 31 de julho de 2017 - 15:37 • Atualizada em 2 de agosto de 2017 - 13:52

De olho no aplicativo: mais do que em ruas e avenidas, nos movemos sobre mapas. Foto: Stockphotos

“Eu dirijo, o Waze me guia”, poderia alardear uma versão atualizada daqueles velhos adesivos que, grudados nos vidros dos carros, atestavam a fé num poder superior, misterioso, protetor e senhor de todos os caminhos.  Apesar de seu poder absoluto, Deus, ao contrário dos novos aplicativos, não dispensava o motorista da necessidade de conhecer direções e trajetos, de ter alguma intimidade com as cidades em que se movia. Uma obrigação que parece condenada ao passado.

Tanto faz se, no Rio, o passageiro quer ir do Copacabana Palace ao Paço Imperial ou da Candelária à quadra da Mangueira ou, em São Paulo, do Edifício Copan ao Masp. Pouco importam os marcos que transpiram a história de cada cidade, protagonistas de tantos fatos, o que vale é o trajeto de um ponto A ao B, caminho monitorado por uma voz metálica que alterna instruções de virar à direita e à esquerda.

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O homem contemporâneo não se reconhece nos lugares

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Mais do que em ruas e avenidas, nos movemos sobre mapas – motoristas de aplicativos como o Uber sequer se dão ao trabalho de conferir o número da rua em que devem pegar o cliente, dirigem mais com os ouvidos do que com os olhos – vale o que é dito, não o que é visto.

Presidente do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) e professor do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da FAU-UFRJ, Sérgio Magalhães vê no fenômeno um outro sinal de desterritorialização, conceito que procura explicar a quebra de vínculos entre pessoas e seus ambientes, bairros ou cidades. “O homem contemporâneo não se reconhece nos lugares”, diz.

Destaca que o processo é antigo – ao levar passageiros por baixo da terra, em túneis que não permitem a visão do entorno, o metrô é um marco deste processo agora radicalizado pelos aplicativos que nos conduzem pela superfície. Isto, frisa, mesmo em cidades como o Rio de Janeiro, que por força de sua geografia, tem marcos naturais permanentes.

Para Magalhães, esses marcos, geográficos ou históricos, são fundamentais na construção de uma identidade coletiva e, mesmo, de uma coesão social. “Convém não perdê-la de todo, ficaria inviável viver”, alerta. Ele compara a dependência aos aplicativos de localização a um personagem da novela “A força do querer”, que só conversa com a mãe via WhattsApp – como a relação entre eles, a nossa interação com a cidade seria cada vez mais intermediada por um aparelho.

[g1_quote author_name=”Washington Fajardo” author_description=”Arquiteto e urbanista” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

No nosso tipo de urbanização, espraiada, gigantesca, cheia de hiatos, esses aparatos pautam a nossa organização espacial. O problema é que eles são projetados na ótica de um mundo desenvolvido, mais formal

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“Tudo passa a ser virtual, tem gente que namora virtualmente, pode até se casar assim”, brinca. Ele lembra que, durante a Olimpíada, painéis fotográficos com imagens de pontos turísticos cariocas foram colocados na Vila dos Atletas que, assim, poderiam ser fotografados diante de ícones que não tiveram tempo ou disposição para visitar.

Também arquiteto e urbanista, ex-presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, Washington Fajardo ressalta  a força exercida pelos aplicativos na ligação entre o território e a capacidade cognitiva de cada um de nós. E cita as vantagens desses aparelhos em cidades latino-americanas, “de ambiente urbano esgarçado, com sinalização precária e edifícios de formas desconexas”:  “No nosso tipo de urbanização, espraiada, gigantesca, cheia de hiatos, esses aparatos pautam a nossa organização espacial. O problema é que eles são projetados na ótica de um mundo desenvolvido, mais formal.”

Ou seja, como também destaca Magalhães, os aplicativos não levam em conta características de cidades onde há espaços dominados por forças não oficiais. Volta e meia os jornais registram casos de mortes de pessoas que, guiadas pelos aplicativos, são levadas para territórios que deveriam ser evitados. Por conta dessas deficiências, Fajardo afirma que, entre nós, os aparelhos têm mais uma função colaborativa, que não dispensa de todo a presença de um motorista conhecedor dos meandros da cidade.

Ambos relativizam a possibilidade de a banalização desses aplicativos diminuir a relação afetiva com as cidades. Magalhães frisa que o processo de educação já não dá tanto valor aos marcos de cada cidade; Fajardo ressalta que outros aspectos da tecnologia já favorecem uma fratura da vida comunal. “As pessoas estão mais ligadas a outros lugares do mundo do que à própria cidade”, diz. Afirma, porém, que as informações disponíveis em aparelhos como os celulares permitem, cada vez mais, que se conheça detalhes de uma cidade, de uma rua, de um prédio – basta usar um mecanismo de busca. Um processo que pode até facilitar a descoberta da história de cada local.

Para ele, por melhores que sejam, os aplicativos não vão romper as ligações com as cidades nem dispensar a presença de curadores de carne e osso.  “Os historiadores serão fundamentais, para narrar, para contar. Os seres humanos vão continuar a ser importantes por muitos e muitos anos”, conclui.  Sigamos em frente, você (ainda bem) está longe de chegar ao seu destino, parece nos ordenar a voz que sai por um daqueles aparelhinhos.

Fernando Molica

É carioca, jornalista e escritor. Trabalhou na 'Folha de S.Paulo', 'O Estado de S.Paulo', 'O Globo', TV Globo, 'O Dia', CBN, 'Veja' e CNN. Coordenou o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira da Fundação Getúlio Vargas. É ganhador de dois prêmios Vladimir Herzog e integrou a equipe vencedora do Prêmio Embratel de 2015. É autor de seis romances, entre eles, 'Elefantes no céu de Piedade' (Editora Patuá. 2021).

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