Os despejos explodiram em todo o país durante a pandemia de covid-19: só em São Paulo, foram 10 mil decisões favoráveis a proprietários para despejarem seus inquilinos em 2020. Foi neste ano que os moradores da Vila da Paz, uma ocupação na Vila Prudente, bairro da Vila Prudente, na zona leste de São Paulo, se multiplicaram. E também ali, num terreno com propriedade dividida entre a prefeitura e uma empresa privada, a JBL Empreendimentos Imobiliários, eles voltam a enfrentar ameaça de despejo.
Em 2021, estas repórteres, intrigadas com o aumento dos conflitos por moradia na capital paulista, visitaram a Vila da Paz, onde famílias construíam casas com a ajuda dos moradores da comunidade e viviam da doação de materiais e cestas básicas. Agora, três anos depois, retornamos à ocupação e reencontramos muitas famílias em condições um pouco melhores de moradia, mas ainda resistindo para que a casa construída com tanto esforço não venha abaixo.
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Durante a pandemia, chegou a 80 o número de famílias na ocupação. Elas se uniram para construir as suas casas – em 2021, instalaram o primeiro poste de energia por meio de “gato”, uma expressão usada para descrever a prática ilegal de conectar-se clandestinamente à rede elétrica. Na época, a falta de serviços básicos – como energia elétrica, saneamento básico e segurança – já afetava a vida da comunidade. A lama vermelha escorregadia invadia a casa dos moradores. Por falta de banheiro interno, os moradores utilizavam baldes ou sacolas plásticas. Muitas pessoas relataram que a falta de condições adequadas de higiene atraía ratos e temiam contrair doenças graves.
Assista ao minidocumentário ‘Sem paz na luta por moradia’
A ameaça de despejo também rondava a ocupação. Os moradores da Vila Paz perderam a batalha contra a JBL, que conseguiu a reintegração de posse: a parte particular do terreno foi desocupada e a empresa começou a construir um muro no local para demarcar a sua propriedade. Hoje existem 70 famílias morando na parte da área de propriedade da prefeitura de São Paulo, sob responsabilidade da subprefeitura da região. “Tem pessoas que veem e falam que a prefeitura vai nos tirar, e eu digo que não, porque Deus é grande. O advogado diz que o nosso processo está com o juiz e agora com a eleição acabam não mexendo em nada, mas depois ele (o advogado) disse para nos prepararmos”, conta Ana Paula da Silva, 46 anos, sobre a situação de constante luta da comunidade.
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Veja o que já enviamosO advogado Eduardo Gaspar Garcia confirma os temores dos ocupantes. “As famílias foram removidas sem qualquer respaldo e agora quem ficou na área pública está ameaçada de remoção. A prefeitura entrou com processo de reintegração de posse”, explica.
Ana Paula mora há quatro anos na Vila da Paz com o marido, dois filhos e a neta. Quando a conhecemos, em 2021, ela trabalhava em uma cooperativa de reciclagem; nos últimos três anos, teve vários trabalhos, mas hoje encontra-se desempregada. E estavam desempregados o marido e ela, em 2020, quando, assim que a pandemia começou, foram demitidos e ficaram sem renda alguma. “Nem o meu marido e nem eu conseguimos o auxílio emergencial, porque a nossa empresa não tinha dado baixa nas nossas carteiras. Eu também perdi o meu bolsa família, porque o trabalho era registrado”, lembra Ana “É uma pressão horrível quando eles querem derrubar, fico até com dor de barriga e só me resta orar a Deus”, acrescenta ela, emocionada.
Ao lado de outros companheiros, o marido de Ana ajuda na construção de outros barracos nos fins de semana. Ela também colocou a mão na massa e construiu um fogão a lenha para cozinhar almoços comunitários ocasionalmente na ocupação. Atualmente, usa um fogão a gás, a casa antes de madeira foi refeita de tijolos e construíram um banheiro onde ficava a entrada.
A resistência de muitos para continuar na ocupação vem principalmente da fé em Deus. Nalva Maria Vieira de Melo Pacheco, de 31 anos, colocou o nome da divindade em todas as paredes de sua casa de madeira para obter proteção e não quis deixar de mostrar a Bíblia, que deixa de frente para a sua cama. “Às vezes não tem água em casa e preciso descer para a casa da minha sogra para tomar banho”, conta ela.
Nalva mora na casa com o filho de 6 anos e o marido. Neste momento, não está trabalhando, dependendo do dinheiro dos bicos do companheiro e do bolsa família para sustentar a casa, e da ajuda dos vizinhos para a realização das reformas. “Eu tenho um filho de 6 anos e perdi uma em 2019, quando tomei um susto. Eu estava na igreja, fui parar no hospital e perdi. Mas Deus já falou para mim que vou ficar grávida de uma menina e realizar o meu sonho”. O outro desejo dela também é continuar na sua casa e a construir toda de tijolo.
Onde as minorias encontram um lar
O termo “minorizados” se refere a um grupo historicamente excluído, seja pela orientação sexual, raça, origem ou situação econômica. Na legislação brasileira, raramente se utiliza o termo “minoria” para caracterizar a situação de vulnerabilidade de grupos marginalizados no país. Na época em que foi escrita a Constituição Federal, essa definição não foi prevista, mas foram criados artigos que abrangem essa discussão e colaboram com os direitos fundamentais dessa parte da sociedade brasileira.
Na Vila da Paz, a situação não é diferente. A população local é majoritariamente de baixa renda e negra; lá também residem pessoas da comunidade LGBTQIA + e refugiados, principalmente venezuelanos.
Rosângela Maria Moreira Alves, de 47 anos, vive na ocupação há quatro anos; na época em que nos conhecemos, vivia com uma companheira. Elas são negras e nordestinas: se conheceram durante uma viagem de férias de Rosângela ao Maranhão e se apaixonaram à primeira vista. O casal decidiu vir para São Paulo e logo foram morar juntas na ocupação.
O barraco foi totalmente construído por Rosângela. Desde o início, ela escavou a terra com a enxada, ergueu toda a estrutura e cuidou até mesmo da decoração, com os bonecos pendurados na parede. Com o passar do tempo, construiu um bar na frente de casa para os moradores irem e uma canto para morar na parte de trás. Ela pretende no futuro continuar colocando a mão na massa e realizar o sonho de ter uma laje. “Eu chego em casa 13h20, abro o bar e fico até 23h, e depois vou descansar. Estou muito feliz”, conta ela, que trabalha como cozinheira de manhã e, sem ter despesas com aluguel, está conseguindo pagar as aulas de direção para tirar a carteira de motorista.
Em 2021, a única casa de madeira pintada na ocupação em tom de azul claro era o lar de uma família de quatro venezuelanos; eles construíram uma nova casa com tijolos em outra localização da ocupação. Keily Borges, de 29 anos, saiu do país de origem em 2018 buscando melhores condições de vida para os filhos Ezequiel, de 10 anos, e Frank Jr., de 8 anos. Ao chegarem em Roraima, a família de Keily passou a viver em situação de rua e enfrentou muitas dificuldades. “Meus filhos de colo dormiam com a gente no papelão. Lá chove todos os dias, então foi muito difícil”, relembra.
Depois deste período, a família foi auxiliada pela Operação Acolhida, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Após conseguirem o registro e a documentação, eles foram encaminhados para São Paulo em um avião da Força Aérea Brasileira que dá apoio à operação da ONU. De acordo com o relatório “Refúgio em Números” da Acnur, em 2023, o Brasil recebeu 58.362 pedidos de refúgio de pessoas provenientes de 150 países. As principais nacionalidades solicitantes em 2022 foram venezuelanas (50,3%), cubanas (19,6%) e angolanas (6,7%).
Keily afirma que todos os dias é um novo desafio para conseguir alimentos básicos para sobreviver. “A gente consegue, porque Deus ajuda. Tem pessoas que são boas, mas tem pessoas que querem nos humilhar, porque somos imigrantes. A gente já trabalhou de graça sem receber nada por meses”. Apesar dos percalços, a família não pensa em voltar para a Venezuela enquanto o atual presidente Maduro estiver no poder.
Ao chegar a São Paulo, a família não recebeu nenhuma ajuda financeira do governo. Mas, após seis anos vivendo no Brasil, eles têm a situação regularizada e recebem benefícios do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social): o marido de Keily sofrer um AVC (Acidente Vascular Cerebral) no ano passado.
“Eu tenho muitas saudades (da minha família). Depois que o meu marido teve o AVC, eu disse que queria ir embora. Estou há seis anos aqui e a minha mãe vem visitar de vez enquanto. Na última vez, ela veio para cá, há cinco meses, eu disse que queria voltar, mas a situação atual da Venezuela não dá e a gente tem que pensar nas crianças sempre”, conta ela.
Keily parou de trabalhar para cuidar do marido, que continua com dificuldade para se movimentar e não consegue falar, precisando de fisioterapia e contando com apoio de fonoaudióloga do SUS (Sistema Único de Saúde) para a recuperação. Ela sozinha precisa carregá-lo até o banheiro e tem tido apoio dos vizinhos para cuidar dos dois meninos.
Moradia ainda ameaçada
Após três anos com energia elétrica, os postes de madeira foram trocados por de concreto e se espalharam pela comunidade e o chão antes da lama também foi revestido. As casas agora têm banheiro e cada morador construiu a sua fossa para armazenar os resíduos, porque ainda não possuem saneamento básico e a água das casas chega a partir de caixas nos telhados.
A vila se transformou em pouco tempo, não tendo a mesma cara de quando estivemos lá em 2021. Entretanto, os moradores ainda não têm paz e lutam na Justiça para permanecerem em suas casas. “Há um pedido de regularização fundiária de uma favela que fica abaixo da Vila da Paz, a Barbeiro de Sevilha. A prefeitura, a pedido da JBL, está promovendo um processo de regularização fundiária, sem os moradores da favela saberem. A ideia é remover as famílias da Barbeiro de Sevilha e colocar em empreendimentos habitacionais, que, em tese, seriam construídos no local em que se encontra a Vila da Paz”, explica o advogado Garcia.
Apesar dos desafios, os moradores estão confiantes de receberem uma decisão favorável e não querem sair de onde estão; felizes, eles têm planos para, no futuro, melhorarem suas casas e conseguirem a construção de um parquinho para as crianças na entrada da comunidade. Antes da chegada dos atuais moradores, o terreno era utilizado para descarte de resíduos como entulhos, restos de construção e lixo. A área estava abandonada desde 1979 e a ocupação começou em 2007.
Nem todos os moradores que começaram a luta ainda estão nessa batalha. Em 2021, Jaciara Ludovico abriu a casa para nós e contou sobre suas aspirações. “O meu maior sonho é voltar a trabalhar, ter uma vida digna e dar uma vida melhor para a minha filha”, disse Jaciara, mãe de Gabriele Romualdo, hoje com nove anos. No futuro, a menina quer se tornar bombeira, porque gosta de cuidar das pessoas e não gosta de ver ninguém doente. Na casa ao lado, morava a irmã de Jaciara, a Thauany Silva, mãe de Everton Daniel Gonçalves, de 15 anos, e Rebeca Gonçalves Silva, de nove anos.
Fábio Ferreira do Nascimento, então com 33 anos, contou que morava em ocupações há 14 anos. Desempregado após perder o emprego como porteiro, tinha esperança de se estabelecer definitivamente na Vila da Paz. “O povo é bem unido e todos estão no mesmo objetivo de ter uma moradia digna. Todo o dinheiro que conseguimos investimos na luz, na água e futuramente queremos colocar um concreto. A gente quer viver em paz e essa vai ser uma comunidade abençoada por Deus”, afirmou em 2021.
Jaciara e Fábio, entretanto, não estavam mais lá quando voltamos agora em 2024. Deixaram a Vila da Paz após a desocupação da parte do terreno de propriedade da JBL. Os vizinhos não sabem o destino das famílias e temem também ter que deixar a ocupação.
Em resposta ao #Colabora, a Secom (Secretaria de Comunicação Social) divulgou nota. “A Prefeitura de São Paulo, por meio da Procuradoria Geral do Município, informa que a ação n. 1060800-12.2023.8.26.0053 foi ajuizada pela Municipalidade para retomada da área pública, com risco de incêndio, que está localizada na Rua Barbeiro de Sevilha/Rua Aruru/Rua Salvador Mota. A ordem judicial foi concedida em liminar para reintegração de posse, que ainda não tem data para cumprimento”. A proprietária da outra parte do terreno, a JBL foi procurada pela reportagem para comentar a desocupação e os planos para o terreno, mas não quis se pronunciar.
Uma epidemia de despejos durante a pandemia
Mais que números, essas pessoas são sobreviventes: famílias abandonadas pelo poder público e em vulnerabilidade em um dos momentos mais críticos da história da humanidade: a pandemia de Covid-19, que matou mais de 700 mil pessoas no Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde.
Esse grupo da Vila da Paz faz parte das cerca de 19 mil famílias removidas durante a pandemia no país; mais de 93 mil foram ameaçadas de despejo entre março de 2020 e agosto de 2021. Os dados fazem parte de um mapeamento realizado desde junho de 2020 pela Campanha Despejo Zero. Segundo informações do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), analisadas pelo Lab Cidades, houve 10 mil decisões favoráveis aos despejos em 2020, representando 77% do total das sentenças no estado de São Paulo. Esse cenário mudou após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 828, que suspendeu parte das remoções previstas no período de junho de 2021 e 31 de outubro de 2022 em todo território nacional.
O crescimento das sentenças coincidiu com o momento mais crítico da pandemia, ou seja, com o pico de mortes e internações por covid-19 no estado. Isso significa que, no momento em que as pessoas mais precisavam estar abrigadas, protegidas e com distanciamento social, elas eram despejadas e ficavam ainda mais expostas à contaminação e à transmissão do vírus.
A situação continuou se agravando após o término do prazo determinado pela medida do STF. Conforme os últimos dados da Campanha Despejo Zero, em fevereiro de 2023, mais de 36 mil famílias foram despejadas no país e cerca de 199 mil ameaçadas. Dessas, 624.117 (66%) são negras e 567.379 são mulheres (60%), além de 71.477 crianças e 70.223 pessoas idosas pelo Brasil.
Bem Carina e minha neta sei do esforço pra conseguir fazer reportagens. Grata por colocar essas lutadoras.