‘Um sobe e puxa o outro’: o que você ainda precisa entender sobre as vitórias negras em realities

Resultados representam uma grande virada, já que, nos dois maiores, BBB e A Fazenda, negros representavam apenas 14% dos participantes em toda a história dos programas

Por Laís Gomes | ODS 10 • Publicada em 24 de dezembro de 2020 - 14:13 • Atualizada em 20 de dezembro de 2021 - 15:26

Marina Gregory (The Circle Brasil); Victor Alves (The Voice); Jojô Todynho; (A Fazenda); Kauê Penna (The Voice Kids) e Thelma Assis (BBB) – vencedores em 2020.

Jojô Todynho, Thelma Assis, Marina Gregory, Victor Alves e Kauê Penna. Esses são os nomes dos ganhadores dos principais reality shows brasileiros de 2020. O que eles têm em comum? No ano em que a pauta racial foi um dos temas mais discutidos no mundo, cinco negros alcançaram o topo em popularidade nos programas Big Brother Brasil, A Fazenda, The Circle Brasil, The Voice, e The Voice Kids.

A sequência de vitórias negras foi assunto nas redes sociais na última semana com o final de “A Fazenda”, mas a pauta sobre representatividade racial vem ganhando ainda mais força desde o início do ano, quando ativistas, influenciadores, artistas e intelectuais se engajaram pela vitória de Thelma e Babu, que sofreram episódios de racismo dentro do “Big Brother Brasil”. Desde então, assuntos ligados a corpos padrões, relacionamentos e até mesmo a disputa pelo prêmio – que sempre foram as principais conversas dentro e fora do reality – deram lugar a discussões profundas sobre ancestralidade, racismo estrutural e representatividade.

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Estão nos enxergando! Mesmo que seja temporariamente – o que espero, realmente, que não – ‘estamos on’. Então, aproveitemos! Antes tarde do que nunca, não importa se modismo ou não

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Uma tomada de consciência começou a ser absorvida pelas empresas e mais negros começaram a ser vistos nas capas de revistas, nos programas de televisão, nas redações e na publicidade. O protagonismo negro aumentou consideravelmente. Especialmente em 2020, cada presença negra nesses lugares foi celebrada. Por outro lado, cada ausência foi duramente cobrada.

O #Colabora conversou com a jornalista Flávia Oliveira, que analisou essas vitórias. Para ela, a mobilização de diversas partes da sociedade, sobretudo da militância negra, foi um dos fatores para esse protagonismo nos realities em 2020. “Os negros nunca tiveram muito espaço em reality shows, como nunca têm em lugar nenhum. Houve muita pressão dos ativistas e dos influenciadores por mais presença de pessoas negras nesses programas e, a partir daí, um engajamento grande dessa militância. Aumentou muito o movimento da negritude orgulhosa dessa aliança entre os pretos, mesmo com algumas ressalvas”. Para se ter uma ideia dessa ausência, a população negra representa apenas 14% de todos os participantes de todas as temporadas do Big Brother Brasil e de A Fazenda. Na verdadeira realidade do Brasil, eles são 56,10%. “Assim como estão cobrando em novelas, na literatura, no audiovisual, no jornalismo, também estão levando a mobilização para os reality shows”, defende Flávia.

[g1_quote author_name=”Ana Paula Pinto” author_description=”Analista sênior da Electrolux” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Os negros estão sempre na ponta de baixo, nunca na ponta de cima. Algumas pessoas podem achar pouco o fato dessa vitória massiva acontecer na TV. Não acredito que seja um prêmio de consolação porque a vitória do negro nunca é só dele. A gente costuma usar a frase ‘um sobe e puxa o outro’ e é sobre isso.

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Conceição Evaristo, uma das principais expoentes da literatura brasileira contemporânea, é um exemplo desse fenômeno que ultrapassou as telas. A escritora pediu votos para Jojô na final do programa em seu Instagram. “É que hoje, é o dia do juízo final na “Fazenda”. E que possa ser um dia de aleluia para Jordana Gleice, a Jojo Todynho. O prêmio tem de ser dela. Escutei muitas falas de Jordana, mas escutei muito também o silêncio machucado dela. Silêncio dolorido guardado que há de explodir depois, na boca da própria Jordana Gleice, ou na de alguém que saiba revestir o silêncio em grito. Jordana Gleice, meu voto é para você. Eu que já lhe conclamei como minha neta e que descobri que tenho a idade de sua avó. Reafirmo ainda que foi Ainá, minha especial menina, que me mostrou que você estava no jogo da ‘Fazenda’. O voto dela abriu caminhos. Jordana Gleise, Jojo Todynho, que a sorte e a justiça lhe persigam”, escreveu. Jojô é a primeira negra a vencer o reality show, que está no ar desde 2009.

A ocupação de espaços

Certamente, um paradigma foi quebrado em 2020 com o protagonismo negro nos reality shows. Em contraponto, observa-se ainda que nada mudou em relação às chamadas “cotas” de participação. Exceto no “The Voice”, em todos os outros realities citados, um casal de negros entrou em cada edição dos programas. Esses personagens, no entanto, conseguiram fazer, de forma natural, a “quebra das quatro paredes”, recurso utilizado no cinema quando um personagem olha para a câmera e fala com o público. Com o envolvimento de diversos segmentos da sociedade, é cada vez mais perceptível que os realities não são apenas programas de entretenimento, mas também podem ser considerados como um estudo social e antropológico feito por quem está fora da televisão, assistindo, comentando, votando e aprendendo.

“Se o preto se destaca no reality, ele vira notícia tanto quanto o branco. Junto com essa notícia vem um quê de conhecimento, de aprendizado, que a galera passou a ‘gostar’. Não são poucos os colegas que têm pedido desculpas, do nada, por perceberam o quão cruéis já foram com os nossos. A colonização europeia tapou nossos olhos, quiçá os deles”, analisa Flavia Cirino, editora especializada em veículos de celebridades e reality shows.

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Lucy Ramos, (Dança dos Famosos); Leandro Santos (Bar Aberto) e Luiz Carlos (MasterChef)

Tais vitórias, impulsionadas pela participação do movimento negro nas redes sociais, mostram que a busca por representatividade é forte, importante e só cresce à medida que os negros vão vencendo e, de maneira simbólica, ocupando esses espaços que lhes foram negados ao longo da vida, fazendo crescer junto toda uma nova estrutura, quebrando padrões já estabelecidos ao longo das décadas e fortalecendo o movimento para as outras lutas diárias. “Estão nos enxergando! Mesmo que seja temporariamente – o que espero, realmente, que não – ‘estamos on’. Então, aproveitemos! Antes tarde do que nunca, não importa se modismo ou não. Que reconheçam que somos exatamente tão ou até mais capazes. Tão ou até mais bonitos. Tanto quanto ou até mais inteligentes. Seria tão simples praticar tudo o que se prega. Vejo que, no cenário atual, é propício sairmos das beiradas. Mostrarmos ainda mais nossa força e ocuparemos o centro de todas as cenas”, complementa Flávia Cirino.

‘Um sobe e puxa o outro’

Em paralelo às vitórias nos realities e ao fato da pauta racial ser um dos assuntos mais discutidos no Brasil em 2020, a imprensa noticiou diversas mortes violentas de corpos negros no Brasil e no mundo como George Floyd e João Alberto. Segundo o Atlas da Violência de 2020, que foi divulgado em agosto deste ano em São Paulo pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e peIo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o número de homicídios de pessoas pretas e pardas aumentou 11.5% em uma década.

Para a ativista do movimento negro e acadêmica de direito Thuane Nascimento, há ainda um longo caminho para que a representação seja refletida também nas urnas. “Os realities podem ser vistos como estudo social por se tratar de uma minisociedade gravada 24 horas por dia. Ali, estão sendo demonstradas as relações sociais, o que atravessa cada uma daquelas pessoas, as experiências dos corpos e as falas. Então, quem é racista, por mais que crie um personagem, por mais que tenha um posicionamento, em algum momento vai demonstrar isso. Assim como as pessoas negras vão se manifestar ali em todas as suas formas. Mesmo sabendo que estão sendo gravadas, as pessoas demonstram em alguma hora o que elas são. As pessoas se veem. No Brasil, a maioria das pessoas são negras, as pessoas olham e se veem no reality show. Olham na televisão e veem verdade, se encontram naqueles corpos e naquelas falas. É uma coisa que muitos candidatos negros não conseguem fazer na política institucional, por exemplo. Seja por falta de tempo na televisão, seja por falta de fundo eleitoral, de dinheiro. Por não conseguir chegar, dialogar com essas pessoas. Dentro da política os candidatos negros acabam tendo que passar por diversos processos de triagem pra poder apresentar sua imagem. As pessoas têm asco por política, mas não tem asco por reality, por televisão, e isso já diz muito. Além da forma de votação que é diferente, não é como na política que a pessoa só pode votar uma vez”, conta ela que hoje representa o Perifa Connect, Favela nas Lutas e Movimenta Caxias.

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Se os realities são o caminho pra que as pessoas enxerguem que nós precisamos estar em todos os cargos e em todos os lugares, que seja, pois as coisas estão mudando muito a cada vitória, a cada conquista e a cada cobrança

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Apesar da dicotomia entre o racismo estrutural no Brasil, a violência contra a população negra, a falta de representantes negros em diversas áreas da sociedade civil e os negros vencedores dos principais realities do país, a luta contra o preconceito precisa continuar cada vez mais forte dentro e fora das telas.

Para Ana Paula Pinto, analista sênior da Electrolux, uma das principais multinacionais do país, revela que, o que antes era impossível, agora tem se tornado realidade, ainda que de forma lenta, graças a essas representatividades na mídia. “Sou a única negra a ter um cargo relevante na minha empresa. Os negros estão sempre na ponta de baixo, nunca na ponta de cima. Algumas pessoas podem achar pouco o fato dessa vitória massiva acontecer na TV. Não acredito que seja um prêmio de consolação porque a vitória do negro nunca é só dele. A gente costuma usar a frase ‘um sobe e puxa o outro’ e é sobre isso. Se os realities são o caminho pra que as pessoas enxerguem que nós precisamos estar em todos os cargos e em todos os lugares, que seja, pois as coisas estão mudando muito a cada vitória, a cada conquista e a cada cobrança”.

Quem são eles

O #Colabora mostra agora o perfil dos principais vencedores de reality show de 2020. Além dos personagens da matéria, outros realities (que não são medidos por popularidade) tiveram vitória massiva de negros, como por exemplo o ‘Masterchef’, reality de chefs de cozinha com a vitória de Luiz Alves; ‘Bar Aberto’, reality de bebidas, com a vitória de Leandro Santos e a ‘Dança dos Famosos’, com a vitória recente da atriz Lucy Ramos.

Jojo Todynho

Jordana Gleice de Jesus Menezes, a Jojo Todynho, ficou conhecida com o hit “Que Tiro Foi Esse” em 2017. A funkeira de 23 anos morava em Bangu, na Zona Oeste do Rio, com a avó. Jojô perdeu o pai ainda na infância, vítima de bala perdida. Ainda adolescente, ela começou a trabalhar, ocupando-se nas funções de faxineira, camelô, cuidadora de idosos, babá, vendedora de picolé e monitora de brinquedos em shoppings, até o estouro de sua música na internet. De lá para cá, Jojô tentou emplacar outros hits, nenhum com tanta força como o primeiro, mas se firmou como influencer e garota propaganda de diversas marcas.

Thelma Assis

Thelma Assis, a Thelminha, tem 35 anos, é médica anestesiologista e trabalhou por alguns anos em quatro hospitais de São Paulo. Thelma faz parte da ala de passistas da Mocidade Alegre, escola de samba paulista, e em 2020 se tornou conhecida ao entrar no BBB 20. Depois do programa, passou a ser uma das participantes que mais faturaram com publicidade sendo contratada até mesmo pelo governo do Estado de São Paulo.

Marina Gregory

Marina Gregory tem 25 anos, é moradora do Méier, no Rio, e comissária de bordo. Antes de ir ao ‘The Circle Brasil’, gravado na Inglaterra, já tinha viajado para alguns países do mundo. Ela estreou o rol de vencedores negros de reality nesse 2020 convencendo os outros participantes do reality de que era a mais popular entre eles. Hoje, fala nas suas redes sociais sobre transição capilar, liberdade do corpo, entre outros assuntos.

Victor Alves

O baiano de 20 anos, nascido e criado em Macaé, começou a cantar na igreja, ainda pequeno. Pouco antes da pandemia, Victor se mudou para a capital do Rio para tentar a carreira musical. Antes de vencer o ‘The Voice’, trabalhou em diversos cargos informais, entre eles entregador de comida e soldador.

Kauê Penna

Kauê Penna nasceu e foi criado em uma comunidade de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Começou a cantar aos 4 anos ao lado da mãe em uma igreja evangélica.  Antes de entrar no ‘The Voice Kids’, fez testes e foi escalado para o espetáculo musical cristão “Rua Azusa”, que fez temporada no Rio e em São Paulo antes da pandemia.

Laís Gomes

Formada em Jornalismo pela Unisuam, nascida e criada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Trabalhou nas redações das revistas Isto É Gente, Contigo, no jornal O Dia e em sites como o UOL e EGO, extinto portal da TV Globo. Apaixonada por música, televisão e reality show, participou da cobertura de oito edições do Big Brother Brasil e eventos como Carnaval do Rio e Rock in Rio. Tem grande interesse em pautas que levantam discussões sobre os diversos tipos de preconceitos e vê a profissão e as redes sociais como aliadas no combate ao racismo.

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