Os desafios do novo governo e a PEC da transição

Arte Claudio Duarte

Lula herdará mais de uma década de estagnação econômica, uma sociedade extremamente polarizada e uma série de armadilhas fiscais, sociais e ambientais

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 10 • Publicada em 7 de dezembro de 2022 - 09:21 • Atualizada em 29 de dezembro de 2022 - 23:40

Arte Claudio Duarte

O Brasil chegou aos 200 anos da Independência com a disputa eleitoral mais polarizada da história. O eleitorado, por pequena margem, optou pela democracia. Para complicar, o lado derrotado não se conforma e contesta o resultado das urnas, tentando impedir a posse do vencedor do pleito, que teve o maior volume de votos de todos os tempos. Contestação semelhante ocorreu apenas na vitória de Juscelino Kubitschek na década de 1950. O presidente mineiro conseguiu superar as armadilhas, tomou posse no Rio de Janeiro, completou o mandato com sucesso e deu posse ao sucessor em Brasília. Nas últimas 7 décadas, até o momento, apenas 3 presidentes eleitos passaram a faixa democraticamente para o sucessor. Ainda não está totalmente certo o que acontecerá até o dia 01 de janeiro de 2023.

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A única certeza é de que o Brasil enfrentará múltiplas dificuldades. A falta de dinheiro já está paralisando várias atividades neste final de ano e o contingenciamento de recursos tem inviabilizado o funcionamento das universidades, atrasado o programa de vacinação, tirado do ar as atualizações dos dados da covid-19 e até paralisado a emissão de passaporte para quem deseja deixar temporariamente o país.

Para o ano de 2023, o próximo governo herdará um déficit primário nas contas públicas, decorrente dos gastos eleitoreiros de 2022, constituindo uma ameaçadora bomba fiscal embutida em um Orçamento inexequível. Assim, não existem muitas opções. Ou se desarma essa bomba, ou o dispositivo constitucional do teto de gastos atuará como uma Espada de Dâmocles sobre a estabilidade e a governabilidade dos novos dirigentes do país.

Por conseguinte, em plena Copa do Mundo, as atenções se voltam para uma disputa no campo do Congresso Nacional, onde se busca a aprovação urgente de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), a ser aprovada antes do Natal. De forma experimental, uma minuta da PEC foi entregue pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, ao Congresso em 16 de novembro, com o texto inicial prevendo a exclusão do Bolsa Família do teto de gastos em caráter permanente.

Lula acena para apoiadores na chegada à sede do governo de transição em Brasília. O desafio de equilibrar o econômico e o social. Foto Evaristo Sa/AFP
Lula acena para apoiadores na chegada à sede do governo de transição em Brasília. O desafio de equilibrar o econômico e o social. Foto Evaristo Sa/AFP

Porém, um mês após o resultado do segundo turno, o senador Marcelo Castro (MDB-PI), relator do Orçamento de 2023 no Congresso Nacional, protocolou no dia 28 de novembro a PEC da Transição, excluindo o programa Bolsa Família e outras despesas da regra do teto de gastos, não de forma definitiva, mas por quatro anos. O texto prevê, ao todo, R$ 198 bilhões fora do teto em 2023, inclusive recursos para a área ambiental.

Para ser aprovada, a PEC precisa passar em dois turnos, tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados, com quórum qualificado de três quintos dos parlamentares. O texto já obteve a assinatura de 27 senadores, mas necessita a análise e aprovação da Comissão de Constituição de Justiça do Senado, até o próximo fim da semana, para ser aprovada no Congresso até o dia 10 de dezembro, uma vez que até o dia 16 deverá ser votado o Orçamento de 2023.

Há alta probabilidade de os senadores e os deputados alterarem o conteúdo da PEC apresentada pelo senador Marcelo Castro. Possivelmente, os valores serão menores e o prazo de validade será mais curto. Ficará para a próxima legislatura definir as prioridades dos gastos, dos investimentos e o tipo de âncora fiscal que deverá substituir o fracassado e furado teto de gastos.

Responsabilidade social e fiscal e a mobilidade intergeracional ascendente

Durante todo o mês novembro, houve muito barulho e bastante reboliço em relação aos compromissos sociais e fiscais do próximo governo. Algumas declarações desconectadas e a falta de indicação de um ministro da fazenda contribuíram para assanhar as especulações dos mercados.

Mas o fato é que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou inúmeras vezes durante a campanha que iria garantir tanto a responsabilidade social, quanto fiscal, tal como aconteceu nos seus dois mandatos anteriores (de 2003 a 2010). Naquele período, o Brasil manteve superávits primários significativos, que possibilitaram a redução da percentagem da dívida pública em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), a estabilização das taxas de juros e a valorização do câmbio.

Portanto, é perfeitamente possível combinar o lado social com as restrições fiscais. Ampliar os gastos sociais via emissão de moeda ou aumento da dívida pública, indubitavelmente, tende a aumentar a inflação, o que induz o Banco Central a aumentar a taxa básica de juros, implicando na diminuição do ritmo do crescimento econômico, o que aumenta as taxas de desemprego.

Todavia, a responsabilidade fiscal não pode servir de desculpa para redução dos gastos sociais. Os programas de transferência de renda são essenciais para o bem-estar da população, como estabelece a meta # 1 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que diz: “Erradicar a pobreza extrema para todas as pessoas em todos os lugares até 2030”. Mas, evidentemente, é preciso cuidar da qualidade do gasto e dos mecanismos de financiamento de tais despesas.

O governo Bolsonaro pretendia implementar o Auxílio Brasil de R$ 400,00 em substituição ao programa Bolsa Família. Mas por pressão do Congresso e por interesse eleitoreiro elevou o valor para R$ 600,00 em 2022. Ao mesmo tempo, praticamente acabou com o Cadastro Único e eliminou as condicionalidades que articulavam o recebimento do benefício financeiro com o fortalecimento dos direitos de cidadania nas áreas de saúde, educação, moradia, transporte, assim como as ações para a melhoria das relações de gênero e geração.

Programaticamente, as políticas de transferência de renda devem ser instrumentais e não finalísticas, pois como disse o grande Luiz Gonzaga: “Mas doutor, uma esmola a um homem que é são; ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”. A transferência de renda para as famílias deve visar a melhoria das condições de vida das mães e dos pais, mas principalmente das crianças e jovens para que haja mobilidade social ascendente ao longo do ciclo de vida.

É fundamental que a transferência de renda contribua para a erradicação da pobreza, para a emancipação da população e a sustentabilidade ambiental. Qualquer programa deste tipo precisa fortalecer o capital social das famílias e estar articulado com as políticas de educação, saúde, previdência, habitação, meio ambiente e de emprego decente para todos. O Estado deveria estar presente através de políticas universais que garantissem a equalização das oportunidades. As famílias pobres não possuem recursos para saírem sozinhas das condições adversas em que se encontram e que dificultam o avanço social das novas gerações.

Cabe ao Estado ajudar nas responsabilidades familiares, sem desmobilizar as redes sociais de solidariedade, para que as famílias superem as precárias condições que compartilham nos domicílios e passem a contribuir com os diversos aspectos da vida social. É preciso compartilhar responsabilidades e aumentar as capacidades das pessoas em situação de pobreza. Ao invés de uma população tutelada, o que as políticas públicas precisam incentivar é uma população emancipada capaz de contribuir com a produção e o desenvolvimento (social e ambiental) sustentáveis para o presente e o futuro do país.

Portanto, são imprescindíveis recursos financeiros para um novo Programa Bolsa Família articulado com políticas públicas de avanço da cidadania. Mas isto não quer dizer que o país tenha que recorrer ao financiamento inflacionário. O Tribunal de Contas da União (TCU) entregou um relatório no dia 16 de novembro ao Gabinete de Transição do presidente eleito, apontando 29 áreas críticas no aspecto fiscal para o futuro governo, dentre essas, as isenções fiscais, o orçamento secreto e o comparativo entre os desenhos dos programas sociais. Somente as isenções fiscais chegam ao montante de R$ 400 bilhões.

Além disto, seria recomendável eliminar ou diminuir as distorções existentes na folha salarial da elite do funcionalismo público que conta com altos salários e benefícios que vão além do teto salarial. No caso das aposentadorias das Forças Armadas, não há exigência de idade mínima e o benefício é integral, sem estar limitado ao teto do INSS. Uma reforma administrativa bem-feita poderia aumentar a eficiência do Estado e liberar recursos para o atendimento às parcelas mais desfavorecidas da população.

Aumentar os investimentos e a taxa de ocupação da força de trabalho

O Brasil chegou aos 200 anos da Independência com muitos avanços, mas também com diversos desafios. Em 1822 o Brasil era um país desigual, escravista, pobre, agrário, rural e representava somente 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB) global. Mas em 200 anos, o país se transformou em uma economia urbano-industrial, alcançando mais 3% do PIB mundial e entrou na lista das 10 maiores economias do mundo. A renda per capita cresceu 15 vezes, alcançando o status de nação de renda média.

A mortalidade na infância que estava em 430 óbitos para cada mil nascimentos em 1822 e caiu para menos de 15 atualmente. Neste mesmo período, a expectativa de vida ao nascer que era de apenas 25 anos, saltou para 75 anos. Mais de 90% da população estava abaixo da linha da extrema pobreza e este percentual caiu para menos de 10% atualmente. Houve diversas conquistas civilizatórias perpassando a entrada e a saída de diversos governos.

A economia brasileira crescia mais do que a economia internacional, mas perdeu ritmo nas últimas décadas. Entre 1950 e 1980, o PIB cresceu 7% ao ano e a renda per capita cresceu 4,2% ao ano. Porém, após a recessão de 1981, o Brasil entrou em uma fase de baixo crescimento econômico e de estagnação da produtividade dos fatores de produção. Na última década houve uma derrocada dos indicadores econômicos e a renda per capita de 2022 é menor do que aquela de 2010. O único indicador que não teve avanço em 200 anos e até piorou na última década ocorreu na área do meio ambiente.

Ainda assim, o desafio ecológico também oferece uma oportunidade. A presença do presidente eleito, Lula, e da ex-ministra Marina Silva na Conferência do Clima (COP27), no balneário de Sharm El Sheikh, no Egito, marcou a volta do Brasil nas negociações internacionais e representou um ponto de inflexão no compromisso de investir no meio ambiente, no sentido de alcançar o desmatamento zero e reverter a degradação ecológica de todos os biomas brasileiros. O Brasil poderá ser uma potência verde se investir na bioeconomia, na transição energética (com produção do hidrogênio verde), na economia circular, na restauração dos ecossistemas e em diversas outras atividades que tragam bem-estar humano e ambiental.

Contudo, o caminho para priorizar as áreas econômica, social e ambiental é por meio da elevação das taxas de investimento, que precisam se manter acima de 25% do PIB, para que haja renovação do parque produtivo e da qualificação da força de trabalho. Baixa formação bruta de capital fixo (FBCF) é suficiente apenas para repor a depreciação dos fatores de produção.

O gráfico abaixo mostra as taxas de investimento, em relação ao PIB, para a média mundial e alguns países selecionados, entre 1980 e 2027. Nota-se que a média anual dos investimentos no período foi de 41% na China, de 34% na Coreia do Sul, de 29% na Índia, de 26% na média mundial e de somente 19% no Brasil. Nos últimos 8 anos, a taxa de investimento no Brasil foi de apenas 16% do PIB. Por conta destes números, os países asiáticos avançam e o Brasil enfrenta um rápido e profundo processo de desindustrialização, o que reduz a competitividade da economia brasileira, não gera empregos suficientes para absorver a população em idade ativa e nem avança na proteção do meio ambiente.

A recessão econômica que ocorreu entre 2014 e 2016, seguida de baixo crescimento entre 2017 e 2019 e uma outra grande recessão em 2020 fez a economia brasileira retroceder pelo menos uma década. O volume de emprego que vinha crescendo desde 1970 retrocedeu e atingiu um nível muito baixo em 2020, equivalente ao nível do início do século. O 3º mandato do presidente Lula terá um início mais desafiador do que o 1º mandato.

O gráfico abaixo mostra a população ocupada total e por sexo entre 1950 e 2022 e uma projeção a até 2040. Analisando-se os dados dos censos demográficos, o conjunto dos ocupados (homens + mulheres) em relação à população total caiu ligeiramente de 32% em 1950 para 31,7% em 1970. Porém, a taxa de ocupação da população total deu um salto para 45,3% em 2010, significando que, entre 1970 e 2010, houve uma ampliação do volume da força de trabalho no Brasil.

Esse período vantajoso para a economia e para o avanço social é conhecido como janela de oportunidade ou 1º bônus demográfico, pois é um momento de melhora na relação entre “produtores líquidos” potenciais e “consumidores líquidos”. A particularidade do Brasil é que a população ocupada masculina em relação à população total do país ficou praticamente constante, em torno de 27% entre 1950 e 2010. Já a população ocupada feminina em relação à população total cresceu de 4,7% em 1950 para 19,2% em 2010, mostrando que a inserção da mulher no mercado de trabalho foi o principal componente da expansão da força de trabalho. Por isso se diz que o bônus demográfico no Brasil é um bônus feminino, pois a inserção de um contingente maior de mulheres significa maior produção total e, tendo as mulheres maiores níveis educacionais, isto significa maior produtividade.

Os dados da PNAD e da PNADC mostram que as recessões econômicas eliminaram grande quantidade de vagas no mercado de trabalho até 2020. A lenta recuperação de 2021 e 2022 mostra que o nível de emprego voltou a crescer, mas apenas recuperou o nível de 2014 e não seguiu a trajetória de aumento ocorrida entre 1970 e 2010. Portanto, uma tarefa do novo governo é conseguir fazer a taxa de ocupação da população total ultrapassar 50% e retomar o ritmo de crescimento do emprego feminino, para o avanço geral e para reduzir as desigualdades de gênero na inserção produtiva entre os sexos.

O trabalho produtivo é a base da riqueza das nações e o pleno emprego e o trabalho decente devem ser a prioridade número um do país, pois é o direito humano mais desrespeitado atualmente no Brasil. Sem trabalho para todos, os demais direitos ficam comprometidos, a economia não melhora e a qualidade de vida tende a cair para toda a população nacional. Como disse o escritor Fiódor Dostoiévski (1821-1881): “Se alguém quiser reduzir o ser humano a nada, basta dar ao seu trabalho o caráter de inutilidade”.

Portanto, é urgente elevar as taxas de investimento no Brasil e melhorar a qualidade destes investimentos para obter maiores retornos sociais e ambientais. Infelizmente, o Orçamento para 2023 conta com apenas R$ 22 bilhões para investimentos federais (cerca de 0,2% do PIB), uma cifra irrisória e incapaz de atender as demandas de infraestrutura e de apoio para as áreas sociais e ambientais.

O governo eleito está fazendo grande esforço para aprovar a PEC da transição e já busca o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD) e do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP). No regime do Presidencialismo de Coalizão, o novo governo busca também o apoio até do Centrão para conseguir aprovar um Orçamento minimamente viável para 2023.

Mas, por mais árdua que seja a tarefa de aprovação de uma Emenda Constitucional em um prazo exíguo, o mais difícil ainda está por vir, pois o novo governo está herdando mais de uma década de estagnação econômica, uma sociedade extremamente polarizada em termos políticos e uma série de armadilhas e desafios fiscais, sociais e ambientais. O esforço para reconstruir o país vai requerer muita sabedoria e a união de uma grande frente ampla para superar as dificuldades estruturais e conjunturais e garantir uma nação organizada na concepção de equidade, liberdade, prosperidade, justiça, paz e felicidade.

Referência:

ALVES, JED e GALIZA, F. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI, Escola de Negócios e Seguro (ENS), maio de 2022

https://ens.edu.br:81/arquivos/Livro%20Demografia%20e%20Economia_digital_2.pdf

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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