Como todas as crianças do mundo, Fatimetu esperava com ansiedade as férias de verão. Sonhava com o verde dos campos, o banho de mar, de piscina, em ir ao cinema, em brincar sem parar. Tudo igual a qualquer criança, com a diferença que Fatimetu vive em um campo de refugiados para o povo Saharaui, na Argélia. E sonhar com as férias, e com a possibilidade de fazer todas estas coisas, só é possível porque uma família espanhola a recebeu em sua casa, como parte do Projeto Vacaciones em Paz (Férias em Paz). Um programa que há 30 anos traz crianças dos campos de refugiados para passar as férias de verão na Espanha, quando as temperaturas no deserto do Sahara alcançam facilmente os 50ºC nos meses de julho e agosto.
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Veja o que já enviamosO Sahara Ocidental foi território espanhol até 1975, quando o Marrocos aproveitou a morte do ditador espanhol Francisco Franco para invadir e anexar o que era uma colônia espanhola. A população Saharaui fugiu e até hoje está instalada em campos de refugiados na Argélia, em uma região chamada La Hamada, um dos desertos mais inóspitos do mundo, lutando pelo direito de autodeterminação e a volta à sua antiga terra. Nos acampamentos, se vive basicamente de ajudas internacionais. O desemprego passa dos 90% e as crianças sabem que seu futuro é limitado enquanto dure o conflito.
[g1_quote author_name=”Susana Delgado” author_description=”Mãe no projeto Vacaciones em Paz” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Depois das visitas médicas, as férias são normais. Vamos à praia, à piscina, viajamos…É um aprendizado para todos. Para nós, que somos jovens e ainda não temos filhos e durante dois meses cuidamos de uma menina. E para eles, que conhecem outra estrutura familiar, onde o homem também cozinha e limpa a casa, por exemplo
[/g1_quote]No começo dos anos 1980, a Associação de Amigos do Povo Saharauí iniciou o projeto Vacaciones en Paz. No primeiro ano, vieram 100 crianças para passar os meses de máximo calor na Espanha. Hoje são várias ONGs que participam do programa e, neste 2019, trouxeram 4 mil meninos e meninas para estas esperadas férias, sempre em casa de famílias voluntarias. O casal Silvia Calvo e seu marido Sergio forma uma destas famílias. Por quatro anos consecutivos, dos 9 aos 12 anos, eles receberam Fatimetu em Zaragoza, na Espanha.
“Despois de sofrer um câncer, fiquei impossibilitada de ter filhos de forma natural. Eu e meu marido pensamos em adotar, mas tínhamos tantas dúvidas, que antes de adotar definitivamente, nos inscrevemos no projeto para ser uma família de acolhida. E foi a melhor decisão do mundo. Fatimetu é parte da nossa família. Embora já não tenha mais idade para participar do programa, o máximo é até os 12 anos, mantemos o contato e já fui uma vez visitá-la nos acampamentos e meu marido, três. E só não fui mais por conta do meu estado de saúde”, conta Silvia.
Ela lembra que o mais duro foi o primeiro ano. “Principalmente porque a criança chega sem saber a língua. No início, a comunicação é um dos principais problemas. Depois tem a cultura, que é totalmente diferente. São crianças que estão acostumadas a estar livres, nas ruas, no deserto, estranham muito ficar dentro de um apartamento fechado. Tem o fator comida. São muçulmanos, não comem carne de porco, não estão acostumados a comer fruta, porque aí quase não tem. E junte a isto, a saudade que sentem das suas famílias. Enfim, você recebe uma criança de nove anos que não fala a tua língua, não come a tua comida e não está acostumada a ficar em uma casa e que, muitas vezes, chora com saudade da mãe. Mas no final, tudo se encaixa e as despedidas são dolorosas e no ano seguinte, repetimos”, conta.
Além de receber as crianças nas suas casas, as famílias de acolhida têm a obrigação de levá-los ao médico para revisões. A maioria chega com déficit de vitaminas pela falta de verduras e frutas e algumas vezes com algum problema mais grave. A ONG Um Draiga é uma das que dá apoio para as famílias em Zaragoza. Ajuda com tradutores, encontros entre as famílias e na adaptação destes meninos e meninas. María Rosa Fernandez é uma das coordenadoras desta ONG. “Eu comecei acolhendo uma menina em 2002 e agora trabalho como voluntária. Todos na ONG somos voluntários. Para mim, participar do projeto representou um antes e um depois na minha vida. A minha primeira menina nunca tinha visto uma torneira. Lembro que ela ficava muito angustiada quando via que desperdiçávamos água. Água para eles é coisa preciosa. Hoje sou o que chamamos uma “mãe de areia”, porque os laços que se constroem são fortes”, explica.
Rosa conta que a grande dificuldade da ONG é conseguir famílias para todas as crianças que querem ir. “Com a crise econômica, o número de famílias baixou, mesmo que a despesa não seja grande. Não deixa de ser uma boca a mais em casa, porque médicos, entradas para a piscina, tudo isto entra no serviço público”, afirma.
Susana Delgado e seu marido Jorge participam há quatro anos do projeto. “Eu conhecia o programa desde criança. A família de uma amiga recebia todos os anos uma criança Saharauí. Pedia para minha mãe também participar, mas não foi possível. Então, eu prometi a mim mesma que, quando pudesse, entraria no programa”, conta ela. Este é o segundo ano consecutivo que recebe a Wahba, de 10 anos. Em uma das visitas ao médico, se detectou que a menina era surda de um dos ouvidos. Graças ao programa, ela agora tem um aparelho para a surdez. “Mas depois das visitas médicas, as férias são totalmente normais. Vamos à praia, à piscina, viajamos e sempre a colocamos em alguma colônia de férias. Foi excelente para a adaptação e para aprender espanhol. É um aprendizado para todos. Para nós, que somos jovens e ainda não temos filhos e durante dois meses cuidamos a uma menina. E para eles, que conhecem outra estrutura familiar, onde o homem também cozinha e limpa a casa, por exemplo”.
Quando completam 12 anos, as crianças já não podem mais participar do projeto. A opção para continuar vindo à Espanha, seria entrar para o Estudos em Paz. Neste caso, o adolescente viria durante o ano letivo para estudar no país e volta para sua família no verão. “Nós tentamos muito que Fatimetu entrasse no Estudos em Paz. Muito mesmo. Mas foi impossível convencer a família. Pela religião, é muito complicado que autorizem uma menina a continuar estudando. Praticamente todos que participam do Estudos em Paz são do sexo masculino. Mas pelo menos ela continua estudando na Argélia e um dia, quem sabe, poderá voltar aqui. Porque nós sempre seremos também sua família”, conta Silvia.
Na despedida, as crianças voltam com as malas carregadas. De brinquedos, de presentes para suas famílias, de uma nova língua aprendida e com muitas lembranças. Deixando atrás saudade, aprendizados e a espera para que este conflito interminável possa encontrar um fim.