Um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados busca estabelecer a esterilização forçada de pessoas com deficiência intelectual mediante autorização judicial. O PL 5.679/2023 passou na comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e prevê a possibilidade de realização do procedimento após consulta ao Ministério Público (MP). Entidades da sociedade civil e especialistas apontam caráter higienista e risco de estímulo à violência, principalmente, contra mulheres com deficiência.
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Apresentado pelas deputadas Carmen Zanotto (Cidadania/SC) e Soraya Santos (PL/RJ), o PL procura consolidar a possibilidade da esterilização, que já é prevista na Lei do Planejamento Familiar, mas ainda não possui regulamentação e, portanto, não poderia ser colocada em prática. A medida também daria prioridade para a realização de cirurgias de laqueadura e vasectomia em pessoas com deficiência (PcDs) intelectual.
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Veja o que já enviamosA nova legislação, portanto, daria a possibilidade de colocar em prática a esterilização em pessoas “absolutamente incapazes” (que não possuem condições de discernir ou responder por seus atos). No caso do PL, pessoas com deficiência intelectual ou mental poderiam ser consideradas desta forma. Atualmente, apenas menores de 16 anos são considerados incapazes perante a legislação brasileira.
Segundo o relator da proposta na comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), a medida daria mais segurança para um grupo da população que é mais vulnerável a violências e complicações na gravidez e parto. “A aprovação deste projeto é essencial não só para trazer mais segurança às pessoas com deficiência, com a oitiva obrigatória do Ministério Público nos processos de esterilização, mas também para conferir eficácia ao dispositivo legal já existente”, escreveu Aureo em seu parecer.
O PL 5679/2023 será agora analisado pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF). Logo após a aprovação na primeira das etapas de tramitação, a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça) publicou nota contra a proposta, denunciando representar uma afronta aos direitos humanos de PcDs e à Lei Brasileira de inclusão (LBI).
De acordo com a entidade, o PL ainda pode agravar a situação de vulnerabilidade dessas pessoas, uma vez que prevê eliminar o “risco de gravidez” após uma violência. “É um projeto que, sob o pretexto de proteger pessoas com deficiência de alto nível de suporte (mental, intelectual, etc), acaba, na verdade, promovendo um processo de higienização contra pessoas com deficiência. A isso chamamos eugenia”, afirma o texto da Abraça.
O projeto aguarda a indicação do relator na CPASF exatamente no momento em que o país acompanha os Jogos Paralímpicos de Paris 2024, do qual participam atletas com deficiência intelectual – o Brasil tem, em sua delegação, pessoas com paralisia cerebral que estarão na disputa por medalhas em competições de atletismo, natação e tênis de mesa. Entre os atletas brasileiros, estão as gêmeas paranaenses Beatriz e Débora Borges Carneiro, ouro e prata no Mundial de Natação Paralímpica de 2023 nos 100m peito e a velocista baiana Samira da Silva Brito – com problemas de audição e fala provocados pela paralisia cerebral – que ganhou medalha de prata nos 200m rasos no Parapan de Santiago 2023.
Mulheres com deficiência sofrem mais com violência
De acordo com dados da última edição do Atlas da Violência, as pessoas com deficiência (PcDs) intelectual sofrem três vezes mais com a violência em relação a outros grupos de PcDs. Em todos os critérios, as mulheres são mais afetadas que os homens e, quando se tratam de mulheres com deficiência intelectual, a diferença é ainda maior: 57,2 casos a cada 10 mil habitantes para o sexo feminino e 18, considerando o sexo masculino.
Apesar do PL 5679/2023 não fazer distinção entre homens e mulheres. Na prática, considerando os dados da realidade brasileira, a legislação afetaria majoritariamente os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres com deficiência. “A esterilização forçada não previne e nunca preveniu a violência, podendo, inclusive, vulnerabilizar ainda mais os sujeitos com deficiência”, acrescenta a nota da Abraça. O texto menciona dados de 2021 do Sinan, indicando que 7 mulheres com deficiência sofrem violência sexual por dia no Brasil.
Outro ponto polêmico está na correlação feita entre deficiência e incapacidade, um entendimento que retira a posição de sujeitos de PcDs e contraria a LBI. Pesquisadora com ênfase em estudos da deficiência, gênero e mercado de trabalho, Luanda Botelho, explica que existem duas abordagens para se analisar o projeto: a sociológica e a jurídica.
Do ponto de vista legal, a professora de Instituições de Direito e Relações Trabalhistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) pontua que o PL é inconstitucional, considerando o que foi estabelecido pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. “Vale ressaltar que a Lei Brasileira da Inclusão respeita os termos da Convenção e reforça enfaticamente em seu art. 6º que a deficiência não afeta a capacidade civil da pessoa para preservar sua fertilidade”, destaca Luanda, mulher usuária de cadeira de rodas e doutoranda em Ciências Sociais.
Vice-procuradora-geral do Trabalho em Brasília, Maria Aparecida Gugel concorda com a pesquisadora e descreve o ataque contra a dignidade de mulheres com deficiência que caracteriza o PL. “São as pessoas com deficiência que decidem o que fazer de suas vidas, inclusive quanto à sexualidade e ao direito reprodutivo. Se, por razão de incompreensão, não puderem decidir, deverão ser apoiadas para tomar a decisão”, explica. Diferente de uma tutela, a decisão apoiada ocorre quando uma pessoa de confiança (geralmente pai ou mãe) se compromete diante do Ministério Público a apoiar as decisões de uma PcD.
De acordo com a avaliação feita por Maria Aparecida Gugel, o projeto pode aumentar o risco de violências contra mulheres, com o agravante de promover um procedimento proibido no Brasil há muito tempo, a esterilização forçada. “As mulheres com deficiência já sofrem múltiplas formas de discriminação e estão sob maior risco de violência, inclusive meninas com deficiência em seus próprios lares”, lembra a procuradora e membra da Associação Nacional dos(as) Membros(as) do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas Idosas e Pessoas com Deficiência (Ampid).
Diretora jurídica da Abraça, Luana Adriano Araújo aborda o contexto histórico de legislações sobre o corpo das mulheres que afetam PcDs e chama atenção para o paradoxo de proteção promovido pelo PL. “A ideia é que se a pessoa for abusada, tudo bem, mas pelo menos que ela não venha a gestar, gerar um fruto indesejado de uma relação que vai ter que ser mantido pelo Estado e pelos pais”, complementa Luana, doutora em Direito pela UFRJ.
“Fim não justifica os meios”
Advogado especialista em direitos de PcDs, Gabriel Henrique reitera que a deficiência não pode ser sinônimo de restrição de direitos. Desde a Lei Brasileira de Inclusão, descreve ele, apenas menores de 16 anos são considerados incapazes de responder por si, mesmo que determinadas pessoas com deficiência intelectual possam tomar decisões de forma apoiada.
O especialista pondera que, existem parcelas da população, inclusive mães e pais de PcDs intelectual que defendem a proposta, com base no argumento de que casos de violência ocorrem, mesmo com as atuais leis de punição a esses crimes, e que uma gravidez levaria à sobrecarga dos cuidadores.
Apesar disso, Gabriel defende o reforço das punições contra a violência e não uma saída que perpetue desigualdades e violências. “Se essa lei for para frente, no meu ponto de vista, vai ser uma violência cometida contra a pessoa com deficiência, para supostamente evitar outra violência. Então, o fim não justifica os meios”, comenta o advogado cego e com atuação voltada para a área da saúde.
Ao abordar o aspecto sociológico do PL, Luanda Botelho, da UFRJ, ressalta que o projeto vai contra a luta histórica por direitos das PcDs. “As pessoas com deficiência, nós não admitimos mais sermos consideradas mero objetos de intervenção de profissionais de saúde e de tutela familiar”, enfatiza a pesquisadora.
Segundo ela, independente do grau ou tipo de função comprometida, as pessoas devem ser tratadas como sujeitos (as). “O PL sujeita o corpo das pessoas com deficiência, em especial o nosso, das mulheres, a um nível de controle e restrição que é inaceitável”, acrescenta.
Para Luanda, caso aprovado, o projeto pode levar ao aumento dos casos de abusos em ambientes domésticos. “Ao permitir que a família decida pela esterilização de uma pessoa com deficiência, estamos concedendo a um potencial abusador mais poder para exercer a violência, já que sequer com o risco da gravidez, que torna a violência visível, pública, ele teria que se preocupar”, alerta a professora.
A especialista também defende a prioridade para políticas que tenham como base uma “ética de cuidados”, deixando evidente a responsabilidade do Estado em construir uma rede de apoio para PcDs e outros grupos em situação de vulnerabilidade. “Um dos pilares da ética de cuidados é que o suporte oferecido para a pessoa com deficiência que demanda ajuda para atividades básicas do dia a dia não esteja confinado à esfera doméstica-familiar, a relações de intimidade. Os cuidados precisam ser entendidos como política pública, como responsabilidade social”, explica Luanda.
Educação sexual e justiça reprodutiva
Para a Vice-Procuradora Maria Aparecida Gugel, os argumentos usados na construção do projeto de esterilização compulsória ampliam preconceitos contra pessoas com deficiência. “As deputadas Carmen Zanotto e Soraya Santos justificam o projeto de lei com argumentos dos mais perversos, como as pessoas com deficiência e transtorno mental terem ‘sexualidade exacerbada’ e protagonizarem ‘drama familiar’. Esquecem que o mais importante seria incentivar a criação de condições para que as pessoas indicadas como com deficiência intelectual e transtorno mental tenham acesso à informação e educação sexual”, elucida a especialista da Ampid.
Conforme Luana Adriano, da Abraça, a ideia de que a esterilização tenha que ser um “remédio amargo”, mas necessário, não se sustenta. A diretora jurídica da entidade também relaciona a proposta com a ausência de políticas de educação sexual. “Nem se fala nisso, porque historicamente é tabu. No autismo, temos a ideia de que os autistas são assexuados ou super-sexuados. Tudo isso escamoteado por uma ausência de educação sexual, uma ausência proposital”, destaca ela.
Na visão da doutora em Direito, a perspectiva a ser adotada deveria promover a chamada justiça reprodutiva. O conceito prevê um olhar amplo e interseccional para os direitos reprodutivos, ou seja, um entendimento que inclua a justiça social e a liberdade de escolha das mulheres ao tratar sobre processos de gravidez, por exemplo. “Esse viés da justiça reprodutiva não é só sobre autonomia, é sobre integralidade dos serviços de saúde e dos serviços públicos que garantam direitos humanos”, complementa Luana Adriano.
No Brasil, a abordagem da justiça reprodutiva ganhou força a partir da reivindicação e luta de mulheres negras. Segundo Luanda Botelho, “pensar a deficiência com enfoque interseccional é um fenômeno recente e essa demora em entenderem que também temos sexo, cor, idade e muitas outras características além da deficiência”. Na visão dela, a falta destes reconhecimento cria barreiras no acesso a cultura, serviços e direitos, o que ajuda a explicar – sem justificar – a proposição de projetos como o PL 5.679/2023.
O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania foi consultado para se posicionar sobre o projeto que prevê a esterilização forçada de PcDs, mas até a publicação da reportagem não tinha respondido à solicitação.