Entregador agredido e vítima de racismo tem seu dia de Almirante Negro

Paraíso do Tuiuti traz enredo histórico sobre João Candido, líder da revolta da chibata, e leva Max Angêlo, chicoteado em São Conrado, como destaque em desfile na Sapucaí

Por Thiago Camara | ODS 10 • Publicada em 14 de fevereiro de 2024 - 09:05 • Atualizada em 20 de fevereiro de 2024 - 08:54

Max Ângelo, entregador chicoteado em São Conrado, desfila como Almirante Negro na Paraíso do Tuiuti: “O que aconteceu comigo, mais de um século depois da revolta liderada pelo João Cândido, não pode acontecer nunca mais” (Foto: Alex Terra / Riotur)

História, cultura, música e Carnaval. A Paraíso do Tuiuti foi a penúltima escola a desfilar na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, na segunda noite dos desfiles do grupo especial. A história do Brasil nos conta que João Cândido ficou conhecido por meio de uma chibata. Uma não, várias. Era o ano de 1910, século XX. Em 2023, um entregador de comida, Max Ângelo dos Santos, também ficou conhecido por ter sido agredido a chicotadas, por uma moradora branca do bairro de São Conrado. João é Max mais de cem anos depois. E Max foi João, no alto do 3º carro da escola de São Cristóvão. “O que aconteceu comigo, mais de um século depois da revolta liderada pelo João Cândido, não pode acontecer nunca mais. Vai ser uma responsabilidade muito grande representar esse herói na Marquês de Sapucaí. Fiquei muito honrado com o convite do Tuiuti”, disse Max, morador da Rocinha, antes do desfile.

A situação não muda muito nos dias de hoje. O que a gente mais vê é trabalho escravo, injúria racial. Eu acho que esse enredo vem para passar uma mensagem para a sociedade. Me sinto super honrado em ter representado João Cândido na avenida.

Max Ângelo dos Santos
Auxiliar administrativo e ex-entregador por aplicativo

Estreante na Passarela do Samba, Max Ângelo ficou emocionado ao falar de sua participação no desfile da Paraíso do Tuiuti. “Foi uma surpresa receber esse convite para representar o João Cândido. Eu nunca desfilei em escola nenhuma. A Tuiuti me apresentou esse projeto, me contou a história de João Cândido e, sem pensar muito, eu aceitei. Acho que o enredo tem tudo a ver com o que aconteceu”, afirmou o agora ex-entregador que, depois da agressão em São Conrado, conseguiu um emprego como auxiliar administrativo.

Nascido e criado na Rocinha, Max Ângelo, de 37 anos, ficou conhecido no Brasil inteiro em abril de 2023 quando câmeras de vigilância flagraram o entregador sendo atacado numa calçada de São Conrado – bairro onde convivem alguns prédios com IPTU mais caro da cidade e a favela – pela ex-atleta Sandra Mathias, que usou uma coleira de cachorro para chicoteá-lo. “A situação não muda muito nos dias de hoje. O que a gente mais vê é trabalho escravo, injúria racial. Eu acho que esse enredo vem para passar uma mensagem para a sociedade. Me sinto super honrado em ter representado João Cândido na avenida. Fico muito feliz”, afirmou. “Hoje em dia a gente tem como lutar e buscar os nossos direitos”, acrescentou Max Ângelo em entrevista ao fim do desfile. A Paraíso do Tuiuti ficou em 9º lugar na disputa das escolas de samba no Carnaval 2024 do Rio de Janeiro.*

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No enredo “Gloria ao Almirante Negro”, desenvolvido pela Paraíso de Tuiuti para contar a história de João Candido, a partir da música de João Bosco e Aldir Blanc, Max Ângelo representou o líder da Revolta da Chibata no alto da terceiro carro alegórico, “O dragão do mar reapareceu na figura de um bravo marinheiro” .“Não é um simples papel que estou representando. Ele foi um herói que ainda não foi reconhecido pela Marinha, mas ainda acho que vai ser reconhecido como um herói nacional. A gente vai usar o carnaval para passar uma mensagem. A gente sabe que o Brasil é uma mistura de raças e culturas. A gente não pode permitir que esse tipo de coisa fique acontecendo. A gente tem que fazer de tudo para a situação melhorar”, afirmou.

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Max Ângelo começou a trabalhar aos 11 anos para ajudar a mãe. Quando foi chicoteado, ele pedalava 12 horas por dia para fazer entregas por aplicativo. A ex-atleta, moradora de São Conrado, chamou os entregadores na calçada de “lixo” e disse que eles deviam voltar para favela, antes da agressão – ela responde a processo por lesão corporal e injúria racial. “Eu tento seguir a vida, trabalhando e fazendo minhas coisas. De vez em quando, me pego pensando. Vem aquele filme na cabeça. Para mim, parece que foi ontem. Não é uma coisa que você esquece. Ali, se tratou de um chicote, apesar de ser uma coleira de cachorro”, afirmou Max Angelo, que antes de ser entregador, trabalhara como ambulante, técnico de instalação e porteiro, e, depois do caso, conseguiu um emprego de auxiliar administrativo em uma agência de publicidade. “Hoje eu tenho um sentimento de justiça e também de muita alegria por estar vivendo isso, representando um herói nacional”, disse Max Ângelo, que tem três filhos com sua companheira.

Alegoria com a imagem de João Cândido na Paraíso Tuiuti: representação do povo preto na Passarela do Samba (Alex Ferro / Riotur)
Alegoria com a imagem de João Cândido na Paraíso Tuiuti: representação do povo preto e denúncia de violência racial na Passarela do Samba (Alex Ferro / Riotur)

João Cândido é o povo preto na Sapucaí

João Cândido é o Brasil preto, que não se curva diante das injustiças, ainda hoje, impostas pelo racismo. Ele liderou um levante contra as condições sub humanas aos quais os membros da Marinha do Brasil eram tratados. Revolta da Chibata, de 1910, tinha como pautas os maus-tratos, a má alimentação e as chibatadas sofridas pelos colegas de João.

João Cândido é o povo preto brasileiro e por isso em diversas fases de sua vida, ele foi representado por pessoas diferentes. Além de Max Ângelo, outros Joãos foram apresentados à Avenida. O ator Izack Dahora (ator) estava em um tripé chamado Netuno Negro, que representava a consolidação da liderança de João Cândido. O apresentador e ator Ernesto Xavier (ator) foi João no tripé Conhecido Almirante Negro. Por meio da imprensa carioca, influenciada por um texto de João do Rio, Cândido passa a ser conhecido como o Almirante Negro. No quarto carro, o artista circense, Aleh Silva, representou João Bordador, no qual o cárcere do líder dos marinheiros e seus companheiros bordava suas palavras de ordem: liberdade e amor. E no último carro, a herança viva e direta. Seu Candinho (filho do João Cândido) na alegoria chamada Monumento ao Mestre Sala dos Mares.

Hoje o racismo está na Avenida. As pessoas vão ter que parar e se deparar com isso. É inerente ao desfile. Carnaval é isso. É diversão, samba, alegria, mas também é reflexão o tempo todo

Marcio Azevedo
Enfermeiro e componente da Paraíso do Tuiuti

Antes de ter sua história desenvolvida em enredo, esse líder negro e brasileiro ganhou música sob o riscado de Aldir Blanc e João Bosco: “Mestre Sala dos Mares”. Presente no último carro da escola, Bosco defende que história, música e Carnaval, só podem dar [um bom] samba. “Muitas vezes você não acha a história do Brasil nos livros de história do Brasil, mas você acha na canção popular brasileira “, disse o cantor e compositor ao #Colabora, pouco antes de subir no carro alegórico.

O carnavalesco Jack Vasconcelos concorda com Bosco e se disse honrado com a participação do compositor no desfile da sua escola. “Muitos brasileiros só foram apresentados à heroica história de João Cândido quando, em 1974, João Bosco e Aldir Blanc compuseram o clássico ‘O Mestre-Sala dos Mares”, imortalizado na voz da Elis Regina “, disse ele.

O enfermeiro Márcio Azevedo, de 49 anos, estava no seu quarto desfile pela Paraíso do Tuiuti. o senso de comunidade, o acolhimento o fizeram voltar. Em 2024, ele confessa que sabia pouco sobre o protagonista do enredo. E defende o Carnaval como esse lugar de pautar os temas relevantes e necessários para a reflexão de toda a sociedade. “Uma das funções do Carnaval é trazer à tona assuntos relevantes, de forma mais interessante. A história do João, na verdade, expõe um monte de outros assuntos que são super atuais”, conta ele.

Comissão de Frente da Paraíso do Tuiuti com os marinheiros da Revolta da Chibata, em 1910: problemas semelhantes mais de um século depois (Foto: Marco Terranova / Riotur)

E os problemas enfrentados pelos marinheiros liderados por João, são ainda percebidos nos dias de hoje. Marcio, um também homem negro, defende a Marquês de Sapucaí como um lugar de ensino. “Hoje o racismo está na Avenida. As pessoas vão ter que parar e se deparar com isso. É inerente ao desfile. Carnaval é isso. É diversão, samba, alegria, mas também é reflexão o tempo todo”, disse o enfermeiro.

O enredo desenvolvido pelo carnavalesco Jack Vasconcelos é um reencontro dele com a comunidade do Morro do Tuiuti. Com uma passagem bem-sucedida de 2015-2019, o carnavalesco levou a escola ao vice-campeonato, em 2018, com um desfile histórico “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”. O samba que caiu nas graças dos foliões que assistiam ao desfile também ficou na memória dos apaixonados pelo Carnaval. A autoria de ambos é liderada por Moacyr Luz e tem outros compositores.

“Liberdade no coração
o dragão de João e Aldir
A cidade em louvação
Desce o Morro do Tuiuti”

Nominalmente citado, João Bosco ficou emocionado com sua participação e com a referência de sua música nos versos do samba-enredo deste ano. E saudou o amigo e parceiro de muitos clássicos, Aldir Blanc. “Peço só que o Aldir [Blanc] possa assistir a esse desfile, onde quer que ele esteja. E que ele continue ajudando a gente com a sua inspiração”.

Desde os porões dos navios negreiro, as tatuagens da escravidão marcavam as carnes dos escravizados. Depois da ilusão da liberdade e até hoje, muitos ainda carregam no corpo e na alma, todos os dias, as feridas dessa herança A Paraíso do Tuiuti olhou para trás, lembrou a luta de João Cândido. E no último carro, trouxe inúmeras histórias como a de Max, onde o mal do racismo se impôs à civilidade e a noção de justiça que o Brasil precisa ter com seu povo preto.

*Atualizado em 14/02 para adicionar a colocação da Paraíso do Tuiuti na disputa das escolas de samba do Carnaval 2024 no Rio de Janeiro

Thiago Camara

Thiago Camara é jornalista formado pela PUC-Rio, apaixonado por samba. Desde 2015 faz coberturas do Carnaval, nos desfiles das escolas de samba e nos blocos de rua do Rio. Já teve passagens pelo IG, UOL, revista Quem. No jornalismo ambiental trabalhou no Portal O Eco. Já coordenou a Comunicação da Anistia Internacional Brasil. Atualmente é Analista de Comunicação e Marketing no Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio).

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