Contato com familiares e amigos, compras, pagamentos, acesso à notícias, serviços e direitos: boa parte da população brasileira faz tudo isso através do celular ou computador. Agora, o que acontece quando existem barreiras que impedem as pessoas de usarem estes e outros recursos do mundo digital? Gabriel Henrique é advogado e atua com direitos das pessoas com deficiência. Cego por conta de um descolamento na retina, ele sente cotidianamente a dificuldade de utilizar sites que não possuem acessibilidade digital. “Nem todos os sites são projetados para serem lidos com os nossos leitores de tela dos aparelhos eletrônicos”, lamenta Gabriel.
De acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2022, 149 milhões de brasileiros são usuários da internet, a qual está presente em 80% das casas e residências. Deste percentual, a grande maioria (93%) enviam mensagens e se comunicam através de aplicativos e redes sociais – dois terços (66%) fazem compras on-line e usam o PIX como forma de pagamento – e metade (51%) verificam se determinada informação é verdadeira ou falsa na internet. No entanto, existe uma parcela da população brasileira que segue marginalizada do universo digital, tanto por questões de renda – não ter condições de pagar pela internet – e, também por conta de barreiras comunicacionais em sites e aplicativos.
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Estudo feito pela BigDataCorp em parceria com o Movimento Web Para Todos, mostra que, entre 21 milhões de sites avaliados no país, menos de 1% passaram em todos os testes de acessibilidade do W3C (World Wide Web Consortium, em inglês), consórcio internacional que estabelece padrões técnicos de acessibilidade digital para a web. “A falta de descrição de imagens e incompatibilidade de sites e aplicativos para o uso com o teclado são algumas das principais barreiras”, afirma o jornalista Gustavo Torniero, cego desde o nascimento. A descrição alternativa de imagens mencionada por ele é uma deficiência em aproximadamente 84% dos sites brasileiros.
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Veja o que já enviamosCriador de conteúdo e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, Gustavo Torniero começou a refletir sobre acessibilidade quando ingressou no curso de jornalismo em 2014. Morador de São Paulo, hoje Gustavo é embaixador do Movimento Web para Todos, além de colunista de tecnologia no portal Terra e coordenador de jornalismo da Rádio da Organização Nacional de Cegos do Brasil (Rádio ONCB).
No caso de Gustavo e de outras pessoas cegas, a navegação na internet é feita somente pelo teclado, sem o uso de mouse. “Quando os botões, links e formulários não respeitam as diretrizes e os padrões internacionais de acessibilidade, fico normalmente sem conseguir acessar serviços e produtos básicos, de sites e aplicativos do governo, passando por portais de notícia e e-commerce”.
Recentemente, o governo federal, através do Programa de Cooperação entre Reino Unido e Brasil em Acesso Digital (DAP), lançou o “Guia de Boas Práticas para Acessibilidade Digital”. O documento foi elaborado pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos em conjunto com o Centro de Estudos sobre Tecnologias Web (Ceweb) e o Movimento Web para Todos, além de ter apoio do Ministério da Saúde (MS), Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e da Escola Nacional de Administração Pública (Enap). O objetivo do guia é fornecer diretrizes e caminhos para que empresas e organizações possam implementar a acessibilidade em seus sites e páginas.
De acordo com o IBGE, existem 18,6 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, as quais podem ter dificuldades ou ficarem impossibilitadas de interagir com um site sem acessibilidade. Idealizadora do Movimento Web para Todos e uma das responsáveis pelo guia, Simone Freire afirma que a pauta da acessibilidade precisa ser encarada também pelo ponto de vista cultural como uma prioridade. “Cultura não se forma do dia pra noite. As empresas precisam colocar de uma vez por todas esse item em suas agendas prioritárias, assim como fazem com as práticas ESG”.
Segundo a especialista, um dos grandes diferenciais do Guia é ter uma linguagem simples e trazer exemplos comuns de como tornar conteúdos e páginas na web acessíveis. Além disso, o documento foi elaborado pensando em diferentes casos e sujeitos, desde pessoas cegas, até pessoas surdas que se comunicam em língua de sinais. “A humanidade é diversa. Cada pessoa tem características únicas de consumir informações, independentemente se tem ou não algum tipo de deficiência. E isso deve ser levado em consideração em qualquer projeto digital”, acrescenta Simone Freire.
Além de questões técnicas, o Guia de Boas Práticas para Acessibilidade Digital também busca conscientizar empresas e pessoas sobre a importância do tema, é o que explica Simone Freire. “É um recurso prático, grátis e de fácil utilização por profissionais que desenvolvem e mantém canais digitais em serviços públicos ou privados. Pode servir tanto como inspiração para quem ainda não se aprofundou no tema quanto para quem já conhece e quer atualizar seus conhecimentos”.
Segundo Gustavo Torniero, ainda que os dados sobre acessibilidade digital no Brasil mostrem que exista muito a ser feito. “guias construídos por profissionais especializados e que levam em conta a experiência e a contribuição de pessoas com deficiência são ótimos pontos de partida”. Gustavo acredita que a crescente mobilização de pessoas para criar produtos e serviços com acessibilidade é um ponto a ser celebrado. “Quanto mais houver iniciativas de capacitação e de orientação para desenvolvedores, designers e criadores de conteúdo, mais chance temos de avançar e transformar o cenário, que hoje ainda é de menos de 1% de acessibilidade em sites brasileiros”, acrescenta o jornalista.
O que é acessibilidade digital?
De acordo com o professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Marco Bonito, a acessibilidade digital trata-se da “eliminação de barreiras informacionais para o pleno acesso às informações de qualidade, com autonomia, para as pessoas com deficiência”. Desde 2011, Marco estuda questões de acessibilidade na comunicação e defende o tema como uma questão de cidadania. “Ao poder participar ativamente dos circuitos de comunicação existentes, a pessoa passa a construir a sua própria visão de mundo como sujeito autônomo”, destaca o professor.
Assim como uma rampa possibilita que uma pessoa usuária de cadeira de rodas acesse um local, a acessibilidade digital permite que pessoas cegas naveguem em um site. Segundo Simone Freire, não há como não relacionar a inclusão digital com o cotidiano das pessoas. “Estamos falando de sites de escolas, serviços públicos, lojas, bancos, serviços de educação e de entretenimento, redes sociais, entre vários outros. Ou seja, se queremos incluir e integrar pessoas com deficiência na sociedade e no mercado de trabalho, precisamos permitir a elas o acesso ao universo digital porque tudo está interconectado”.
No Brasil, a acessibilidade, tanto digital como física, são direitos assegurados pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI) – “é obrigatória a acessibilidade nos sítios da internet mantidos por empresas com sede ou representação comercial no país ou por órgãos de governo”. Na opinião do advogado Gabriel Henrique, o lançamento do guia reforça a cobrança por acessibilidade e traz alertas para possíveis consequências do descumprimento da lei. “A situação atual da acessibilidade melhorou muito em relação ao que já foi anteriormente, o que precisa acontecer é começar a pensar na acessibilidade como um todo, não somente quando alguém reclama por não conseguir ter proveito total de um serviço ou produto”, afirma o advogado.
Marco Bonito possui visão parecida – para o professor, é preciso vontade política para que as lutas das pessoas com deficiência sejam discutidas em âmbito nacional. “Além disso, as universidades e cursos técnicos deveriam ter componentes curriculares voltados para o aprendizado e soluções de problemas relativos à falta de acessibilidade”, complementa o pesquisador.
Também jornalista e intérprete de Libras em Curitiba, Fernanda Bruni é fundadora do “Instituto Eu Tenho Nome”, que luta para tornar as pessoas com deficiência protagonistas da sociedade. Fernanda tem visão monocular (enxerga com apenas um dos olhos), além de não possuir audição do ouvido direito. De acordo com ela, todos os sites deveriam ter compromisso com a LBI. “A acessibilidade no Brasil está engatinhando mas em alguns pontos está melhorando”.
Para Gustavo Torniero, entender a acessibilidade e o que ela significa é um dos passos essenciais desse processo. “Aos poucos, as pessoas com deficiência passam a entender e a reivindicar seus direitos enquanto consumidores e cidadãos, muito embora grande parte dessa parcela da população ainda não entenda, na prática, de que forma podemos exigir que a lei seja cumprida”, destaca o jornalista.
Acessibilidade para pessoas neurodiversas
Outra das novidades do Guia de Boas Práticas para Acessibilidade Digital, em relação à outros documentos parecidos, é considerar também as pessoas neurodiversas ou neurodivergentes – grupo que inclui pessoas com deficiências intelectuais e psicossociais – como pessoas com síndrome de down, pessoas com TDAH e pessoas autistas – como Lucielys Costa Magalhães. Especialista em Psicopedagogia e professora em escolas de zona ribeirinha da Paraíba, Lucielys é mãe de Ibrahim Elias (10 anos), João Raviv (6 anos) e Iana Cecília (5 anos) – os três, assim como ela, diagnosticados no Espectro Autista.
No caso das pessoas autistas, o contraste de cores é um dos elementos de acessibilidade digital que facilita a navegação na web. “Sei que muita gente não quer perder tempo em pensar nos outros. Há uma comunicação bastante inacessível num simples post e até nas legendas”, comenta Lucielys. A professora também se define como uma escritora do “autistês”, sendo autora de obras como “Empoderamento da Mulher Autista”, “Autismo nas Meninas” e “Sinais de Autismo em Bebês”. Para ela, é necessário que as pessoas entendam que a falta de acessibilidade pode levar pessoas autistas a terem crises sensoriais – causadas por estímulos de sons e cores.
Sobre isso, Marco Bonito, que também é uma pessoa neurodivergente (diagnosticado com TDAH) aponta a dificuldade em lidar com sistemas digitais pouco lógicos e nada práticos. “O sistema de declaração de imposto de renda melhorou muito neste último ano, ainda assim, contém uma lógica perversa que causa crises de ansiedade e pânico, principalmente quando os termos utilizados ou a lógica são burocráticas em demasia. Outro bom exemplo é o sistema de publicação de currículos acadêmicos, o Lattes”, reclama.
De acordo com o professor, o problema da falta de acessibilidade digital está relacionado com as lógicas de lucratividade do mundo capitalista. “A implementação da acessibilidade não é um desejo pulsante. Não interessa ao sistema proposto que se invista parte dos lucros em soluções para o problema da falta de acessibilidade”, afirma.