Bolsistas na Europa, estudantes da periferia sofrem com pandemia e alta do euro

Ameaça do coronavírus, aulas canceladas e incerteza sobre situação financeira transformam sonho de estudar no exterior em pesadelo

Por Lethicia Amâncio | ODS 10ODS 4 • Publicada em 8 de abril de 2020 - 08:55 • Atualizada em 7 de março de 2021 - 14:31

Carioca da Cidade de Deus, Matheus (segundo à direita, de máscara) no aeroporto de Madri com um amigo bolsista e outros brasileiros: sonho de estudar no exterior adiado (Foto: Lethicia Amancio)

Com o euro e o dólar valendo acima de R$ 5, cerca de 620 estudantes brasileiros – da periferia, em sua grande maioria – que estão com bolsa de intercâmbio no mundo têm muito mais com o que se preocupar, além do risco de contágio pelo coronavírus. A distância de casa e da família e a dificuldade de  adaptação a uma vida fora do Brasil pela primeira vez tornam a experiência de quarentena ainda mais difícil para jovens universitários de diferentes regiões que contam como a questão financeira torna mais dramática a experiência de quem está longe de seu país e de sua cidade  em meio à pandemia.

Apesar de o Brasil ter – segundo o último censo do Ministério da Educação – 8 milhões de estudantes matriculados no Ensino Superior, apenas cerca de 50 mil desses estudantes participam de programas de intercâmbio pelo mundo, por ano, segundo dados da Unesco. O número é ainda menor quando é feito um recorte de estudantes brasileiros da periferia nesses programas de mobilidade internacional, que tornam-se altamente elitizados pelos altos custos de manutenção de uma vida no exterior. Para conseguir essa oportunidade, muitos estudantes de baixa renda participam de duros processos seletivos para bolsas públicas e iniciativas privadas para realizar seu sonho –  este ano, entretanto, a pandemia fez com que eles vivessem um pesadelo.

Moradora de Ceilândia, periferia de Brasília, Juliana Ferreira, de 22 anos, é estudante de Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB) e, desde fevereiro, estuda na Universidade de Porto, em Portugal. Pela primeira vez fora do Brasil, Juliana conta que, durante todo o ano de  2019, ela investiu esforços em atividades extracurriculares e na vida acadêmica para conseguir a bolsa, além de todo investimento financeiro da família para que a viagem fosse possível. Os parentes fizeram vaquinhas e se mobilizaram para ajuda-lá com dinheiro, roupas e outras necessidades para que a viagem fosse possível

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A bolsista Juliana Ferreira, de Ceilândia para a Universidade do Porto: tensão com a alta do euro e a pandemia de covid-19 (Foto: Arquivo pessoal)
A bolsista Juliana Ferreira, de Ceilândia para a Universidade do Porto: tensão com a alta do euro e a pandemia de covid-19 (Foto: Arquivo pessoal)

Ela acredita que, com o coronavírus se espalhando pelo mundo, todo estudante intercambista tem preocupações e frustrações semelhantes, mas os que têm melhores condições financeiras podem contar com mais estabilidade durante a crise. “Além da ameaça do vírus, tem a situação do euro, né? Há semanas que só sobe. Eu recebi minha bolsa em reais e ela só vem perdendo o valor a cada dia que passa. Enquanto a galera que tem grana está lamentando que não vai mais fazer eurotrip, a gente tá se virando pra continuar comendo”, destaca a universitária.

A alta do euro também é uma preocupação para Ozeas da Silva, de 22 anos, estudante de Engenharia de Produção na Universidade Federal do Alagoas (Ufal). Filho de uma professora e de um agricultor aposentado, Ozeas veio de Canapi – cidade de 17 mil habitantes no interior de Alagoas – para estudar em Coimbra, também com uma bolsa de estudos. Para o universitário, além da supervalorização da moeda, a falta de previsão sobre a normalização das aulas e da vida na cidade também contribui decisivamente para que tenha decidido voltar ao Brasil.

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Eu recebi minha bolsa em reais e ela só vem perdendo o valor a cada dia que passa. Enquanto a galera que tem grana está lamentando que não vai mais fazer eurotrip, a gente tá se virando pra continuar comendo

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O universitário também sente-se inseguro sobre o tipo de tratamento que estudantes estrangeiros teriam no sistema de saúde, caso contraísse o vírus em um momento de crise e de superlotação dos hospitais. “A gente não sabe quando as aulas vão voltar e isso que nos deixa mais perdidos. Não sabemos o que decidir. Para ficar aqui, com todos esses gastos, só com aula a distância e trancado em casa com o psicológico abalado, eu acho mais viável voltar para o Brasil e interromper o sonho que foi vir para cá”, desabafa.

Continente que atrai cerca de 45% dos estudantes estrangeiros do mundo, a Europa foi declarada como novo epicentro da pandemia de covid-19, em março, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A região superou o número de casos registrados na província de Hubei, na China, ponto de origem da doença. Por essa razão, estudantes como o brasileiro Matheus Lima, de 22 anos – que estava na Espanha e decidiu voltar ao Brasil antes do fim do intercâmbio – tiveram que abrir mão do sonho de estudar fora do país. 

Estudante bolsista da PUC-Rio, Matheus nasceu na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Nos últimos dois meses, viveu na região da Galícia, na Espanha, onde foi estudar Engenharia na Universidade de Vigo por um semestre, com uma bolsa para ajuda de custo. Mas ele desembarcou de volta nos primeiros dias de abril por causa da crise detonada pelo coronavírus. O universitário ressalta que ficaria na Espanha, mesmo com a pandemia, se ele e família tivessem uma situação financeira melhor. “A minha vontade era ficar lá, mas tive motivos mais fortes pra voltar.  Já estava com muita dúvida sobre permanecer na Espanha, até que recebemos uma carta do reitor da universidade, garantindo que poderíamos voltar ao nosso país sem prejudicar o período letivo. Isso foi decisivo. Não valia mais a pena ficar lá trancado e gastando dinheiro sem perspectivas”, comenta

O estudante carioca conta os perrengues para chegar ao Rio de Janeiro, ele teve que pegar um trem de Vigo até Madri devido ao cancelamento do primeiro dos três vôos que deveria enfrentar. Ao chegar no aeroporto de Madri – um dos maiores do mundo – se deparou com um cenário fantasma e a incerteza sobre a confirmação do voo até São Paulo. Depois de chegar à capital paulista, Matheus recebeu a notícia que teria que esperar nove horas por um voo até o Rio de Janeiro, já que o que ele tinha reservado foi cancelado.

Finalmente em casa após mais de 30 horas de viagem, Matheus, entretanto, segue isolado da família – em quarentena por ter vindo de um país com mais de 100 mil casos e 15 mil mortes pela doença. “A situação toda foi muito tensa. Nós nos equipamos com luvas do mercado, porque não conseguimos comprar luvas para viajar. Assim como álcool, que pegamos com os nossos vizinhos. Eu estava muito desesperado quando cheguei em Madri porque a cidade era o epicentro da pandemia no país e corríamos o risco de ficarmos presos lá caso nosso voo fosse cancelado”, conta o estudante.

O alagoano Ozéas em Coimbra, Portugal: ‘Para ficar aqui, com todos esses gastos, só com aula a distância e trancado em casa com o psicológico abalado, eu acho mais viável voltar para o Brasil e interromper o sonho que foi vir para cá’ (Foto: Arquivo pessoal)

A brasiliense Juliana também tem a volta para casa com uma das preocupações. Ela explica que a situação instável, com fechamento de fronteiras, e o alto preço das passagens aéreas agravam o cenário de frustração. As incertezas sobre o aproveitamento do período letivo também são uma dor de cabeça para a brasileira, que não sabe se ainda tem estrutura psicológica para ficar mais tempo nessa situação.

“A minha grande preocupação é eu voltar para o Brasil e esse sistema de aulas online seja invalidado caso as aulas presenciais sejam normalizadas. Aí todo o esforço, o dinheiro e a energia que eu gastei até aqui seriam desperdiçados porque eu não receberia a equivalência das minha matérias. 

Apesar do número total de infectados nos países europeus ser alto, a preocupação dos estudantes é ainda maior com a chegada do vírus nas periferias de onde vieram. No Brasil, já passam de 14 mil casos – até quarta-feira, 8 de abril, confirmados do covid-19. Na Alagoas de Ozeas, já foram registrados 34; no Distrito Federal, de Juliana, chegam perto de são 422; e no Rio de Janeiro, 1688 até a mesma data.

O alagoano Ozeas acredita que o vírus vá chegar ao sertão e explica que se preocupa com a questão da conscientização da população local sobre os cuidados necessários para evitar o contágio. “O meu receio é que a população não dê a devida atenção. Canapi é uma região que não tem uma boa estrutura de saúde. O país não tem. O Nordeste e o sertão são regiões que, assim como as favelas, não têm o privilégio de acesso a esses serviços. Meu principal medo é que chegue aos grupos de risco de lá e que a população não se conscientize que precisa agir desde logo para que o pior não aconteça”, afirma o universitário.

 

Lethicia Amâncio

Lethicia Amâncio é estudante de jornalismo bolsista na PUC-Rio. Moradora do Complexo da Pedreira, na Zona Norte do Rio, tem interesse em questões relacionadas aos Direitos Humanos e Segurança Pública.

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