Transição demográfica contribui para a redução da pobreza e da fome

Países com altas taxas de fecundidade e estrutura etária mais jovem tendem a ter mais dificuldade para combater a miséria e melhorar o bem-estar da população

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 1 • Publicada em 3 de outubro de 2022 - 11:59 • Atualizada em 29 de novembro de 2023 - 09:16

A transição demográfica é o maior fenômeno de comportamento de massa da história. Desde o surgimento do Homo sapiens, há mais de 200 mil anos, as taxas de mortalidade e natalidade sempre foram elevadas e só começaram a cair após o início da Revolução Industrial e Energética, que alterou uma realidade que parecia inexorável.

A transformação ocorreu simultaneamente ao avanço da modernidade urbano-industrial que possibilitou a diminuição da letalidade provocada pela tríade miséria, doenças e guerras. A queda das taxas de mortalidade e o aumento da esperança de vida é, portanto, uma das maiores conquistas da humanidade, pois houve valorização da vida e as pessoas passaram a viver mais e melhor, acumulando conhecimento e contribuindo para oferecer maiores retornos aos investimentos em capital humano.

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Com o menor número de mortes precoces e a maior sobrevivência das crianças, foi possível reduzir o número de nascimentos por casal. O ser humano é a única espécie animal que conseguiu reduzir o número médio de nascimentos, não por conta da falta de recursos, mas exatamente porque optou por investir na qualidade de vida das jovens gerações. Essa conquista é única e excepcional. Além de garantir o direito fundamental à vida, tem garantido o progresso das famílias e gerado efeitos macroeconômicos sinérgicos, pois aumentou o percentual da população em idade ativa e possibilitou a elevação das taxas de ocupação.

Desta forma, a transição demográfica e o desenvolvimento econômico são dois fenômenos sincrônicos da modernidade. Há uma retroalimentação entre o aumento da renda e a redução das taxas de mortalidade e natalidade, já que existe uma complementariedade entre as duas variáveis. Portanto, o desenvolvimento econômico – por meio do crescimento da renda, da educação, da geração de emprego com proteção social e da melhoria das condições nutricionais e de saúde – diminui as taxas de mortalidade em geral, e em especial a mortalidade infantil. A maior sobrevivência dos filhos reduz a necessidade de uma alta fecundidade. Uma prole menor viabiliza maiores investimentos nas crianças e nos casais, especialmente contribui para a redução do tempo dedicado às tarefas de reprodução, contribuindo para o empoderamento das mulheres.

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De forma determinística, a transição demográfica transforma a estrutura etária da população, com redução da base da pirâmide, em um primeiro momento, o aumento da proporção de pessoas em idade produtiva, em um segundo momento, e gerando uma alta proporção de idosos, em um terceiro momento. A transição demográfica abre, necessariamente, uma janela de oportunidade que funciona como um bônus demográfico que, caso bem aproveitado, impulsiona a economia e o bem-estar da população.

A transição demográfica tem um padrão que se repete, invariavelmente, da mesma forma em todas as nações, sem exceções: primeiro caem as taxas de mortalidade e, depois de um lapso de tempo, caem as taxas de natalidade. Esse formato foi observado mundialmente, independentemente da língua, da religião, da localização geográfica ou de qualquer diferenciação cultural. O que variam são os níveis históricos das taxas, o momento inicial da queda, a velocidade do declínio e os níveis finais após o fenômeno transicional.

O gráfico abaixo mostra a transição demográfica no mundo entre 1950 e 2100, com base nos dados das novas projeções da Divisão de População da ONU (revisão 2022). Nota-se que as taxas brutas de natalidade (TBN), em meados do século passado, estavam em torno de 37 por mil e as taxas brutas de mortalidade (TBM) cerca de 18 por mil (o que implicava em um crescimento populacional de 1,9% ao ano). O recorde de crescimento demográfico de todos os tempos ocorreu em 1968, com TBN de 34 por mil e TBM de 13 por mil (ou 2,1% ao ano). A TBM manteve a tendência de queda até 2019 quando chegou a 7,5 por mil. A partir de 2020 a TBM reverteu a tendência anterior por conta da pandemia e deve aumentar no restante do século em função da maior proporção de idosos na estrutura etária. Assim, a taxa de mortalidade deve subir para 12 por mil em 2100.

Por outro lado, as taxas de natalidade apresentam tendência continuada de queda durante todo o período. A TBN ficou em 37,5 por mil em 1963, caiu para 19,8 por mil em 2013, deve ficar em 11,4 por mil em 2086 (quando empatará com a TBM) e abaixo da TBM entre 2087 e 2100, período que o mundo vai experimentar pela primeira vez o decrescimento populacional.

Os gráficos abaixo ilustram como a transição demográfica gera, necessariamente, uma transformação da pirâmide populacional, estreitando a base e alargando o topo. A pirâmide etária de 1950 tinha uma base larga e um topo estreito, devido às altas taxas de natalidade e mortalidade. Existia uma alta razão de dependência de jovens e uma baixa proporção de pessoas em idade ativa.

Mas, com a redução das taxas de fecundidade, a proporção de crianças e adolescentes diminuiu e aumentou a proporção de pessoas em idade de participar da força de trabalho, como mostrado na pirâmide de 2022. Isto gerou o fenômeno do 1º bônus demográfico que ajudou o mundo a reduzir a pobreza e a incrementar o desenvolvimento econômico. Todos os países ricos e com alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) aproveitaram a fase favorável do bônus demográfico e conseguiram enriquecer antes de envelhecer.

A pirâmide populacional de 2100 indica uma estrutura etária envelhecida. Nessa nova configuração, o motor do desenvolvimento se desloca da expansão do volume da mão-de-obra para a elevação da produtividade de uma menor força de trabalho (2º bônus demográfico) e no aproveitamento do envelhecimento ativo e saudável (3º bônus demográfico). O fato é que a transição demográfica é essencial para o desenvolvimento econômico e para o aumento do bem-estar da população mundial e nacional.

O relatório “World Population Prospects 2022: Summary of Results”, da Divisão de população da ONU, mostra que os países que estão atrasados no processo de transição demográfica e que, consequentemente, possuem maiores taxas de crescimento populacional apresentam maior percentagem de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. A maioria dos países com taxas de pobreza acima de 30% possuem crescimento demográfico superior a 2% ao ano. Já os países com taxas mínimas de pobreza possuem crescimento demográfico abaixo de 1% ao ano.

O gráfico seguinte mostra a relação entre a taxa de fecundidade total (TFT) e o Índice de pobreza multidimensional do relatório “Human Development Report” do UNDP da ONU.  Nota-se que os países que possuem taxas de fecundidade acima de 6 filhos por mulher apresentam Índice de pobreza multidimensional acima de 0,300. Já o Índice de 0,100 ou inferior está relacionado com TFT abaixo de 3 filhos por mulher. A linha reta mostra a associação linear bivariada entre fecundidade e pobreza, indicando que 75,7% da pobreza está associada a elevadas taxas de fecundidade.

De fato, o alto crescimento populacional aumenta a razão de dependência de jovens, dificultando o aumento das taxas de investimento e o incremento da produção de bens e serviços em decorrência da baixa proporção da população em idade produtiva. Desta forma, é grande a chance de as nações mais pobres caírem no círculo vicioso da pobreza, pois o baixo crescimento econômico e o alto crescimento demográfico podem privar os indivíduos das oportunidades de progresso, limitando sua capacidade para controlar a fecundidade, perpetuando altos níveis de procriação.

Reduzir a pobreza no contexto do rápido crescimento populacional continua sendo um desafio formidável, pois a miséria priva as populações de outros direitos de cidadania, como saúde, educação, moradia, saneamento básico etc. Altos níveis de pobreza estão correlacionados com altos níveis de insegurança alimentar, especialmente entre a população mais jovem.

O gráfico abaixo mostra a relação entre a taxa de fecundidade total (TFT) e o Índice Global da Fome (IGF) para 128 países de renda média ou baixa, com dados para o ano de 2021. Percebe-se que os países com mais de 30% da população em situação de insegurança alimentar grave (fome) possuem taxas de fecundidade ao redor de 4 filhos por mulher ou superior. Já o IGF abaixo de 10% está relacionado com TFT abaixo de 2 filhos por mulher. A linha reta mostra a associação linear bivariada entre fecundidade e a situação de fome, indicando que 60,2% do IGF está associado a taxas de fecundidade mais elevadas.

Portanto, a pobreza e a fome são mais prevalecentes nos países com altas taxas de fecundidade e uma estrutura etária jovem. Desta forma, o aprofundamento da transição demográfica, na maioria dos casos, contribui para reduzir a vulnerabilidade social e aumentar o bem-estar e a qualidade de vida da população.

Esta relação fica evidente no gráfico abaixo, que mostra a taxa de fecundidade total (TFT) e a renda per capita (em poder de paridade de compra – ppp na sigla em inglês) para a Tailândia e Moçambique entre 1950 e 2020. Verifica-se que a Tailândia tinha uma TFT acima da taxa de fecundidade de Moçambique e uma renda per capita menor na década de 1950. Porém, a TFT tailandesa começou a cair na década de 1960 e a renda per capita começou a subir, enquanto a TFT de Moçambique continuou elevada e a renda per capita permaneceu estagnada.

Na década de 1950 a Tailândia tinha uma TFT acima de 6 filhos por mulher e uma renda per capita abaixo de US$ 1,5 mil, enquanto Moçambique tinha uma TFT um pouquinho menor e uma renda per capita em torno de US$ 2 mil. Mas o quadro mudou na década de 1970 e em 20 anos a taxa de fecundidade da Tailândia caiu de 6 para 2 filhos por mulher e a renda per capita saltou de US$ 2,7 mil para US$ 7,4 mil, enquanto a TFF de Moçambique se manteve acima de 6 filhos por mulher e a renda per capita caiu para US$ 1,8 mil.

A diferença entre os dois países continuou se acentuando e em 2018 a TFT da Tailândia caiu para 1,4 filho por mulher e a renda per capita subiu para US$ 16,6 mil, enquanto a TFT de Moçambique ficou em 4,6 filhos por mulher e a renda per capita caiu ainda mais para US$ 1,1 mil. A Tailândia é um exemplo de país que conseguiu reduzir as taxas de fecundidade mesmo quando tinha a maior parte da população no meio rural e com baixo nível de renda. E isto foi fundamental para o desenvolvimento e o aumento do poder de compra da população.

A contribuição da transição demográfica para a redução da pobreza e da fome é um fato conhecido pela literatura acadêmica há muito tempo. Ainda na década de 1950, o livro “População e desenvolvimento econômico” (Coale e Hoover, 1958) mostrou que a queda das taxas de fecundidade, ao reduzir a razão de dependência demográfica, poderia contribuir para o desenvolvimento econômico e a melhoria do padrão de vida da população. Diversos outros estudos aprofundaram esta linha de investigação mostrando evidências quantitativas das vantagens da transição demográfica.

Alguns países, como a Tailândia, aprenderam a lição e conseguiram vencer a miséria. Outros países, infelizmente, não conseguiram garantir os direitos de cidadania e nem efetivaram os direitos sexuais e reprodutivos. A transição demográfica não é uma panaceia e não produz resultados automáticos, mas sem ela é muito difícil acabar com a pobreza e a fome.

Referências:

ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, e5942, maio 2022

https://revista.ibict.br/liinc/article/view/5942/5595

Global Hunger Index  https://www.globalhungerindex.org/ranking.html

UN Population Division, World Population Prospects 2022 https://population.un.org/wpp/

MADDISON, A. Maddison Project Database 2020, Groningen Growth and Development Centre, 2020 https://www.rug.nl/ggdc/historicaldevelopment/maddison/releases/

COALE, A.; HOOVER, E. População e desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Fundo

de Cultura, 1966.

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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