Réquiem para Bianca

Uma história de resistência, amor e solidariedade nas ruas de Recife

Por Rita Fernandes | ODS 1ODS 5 • Publicada em 30 de agosto de 2018 - 08:12 • Atualizada em 21 de novembro de 2022 - 15:47

Bianca sonhava entrar na casa nova ao lado de Elba Ramalho cantando ‘Estou, de volta pro meu aconchego’. Foto Victor Jucá

Bianca morreu numa sexta-feira, 13. Silenciosamente, como costuma ser o dia a dia de quem passa a vida se esquivando do preconceito, da violência, falta de afeto e do desamparo. Bianca, que nasceu Anderson José da Silva, morreu na UPA de Nova Descoberta, comunidade pobre de Recife, vítima de insuficiência respiratória, derivada de uma tuberculose adquirida nas ruas onde trabalhou e morou até recentemente. Bianca poderia ser apenas mais uma transexual que enfrentou o preconceito dentro de casa. Mas a história de Bianca Close, 41 anos, teve outro desfecho. Há menos de um ano, um movimento criado pelo produtor de cinema Marcos Castro, o Marquinhos, ganhou fôlego e acabou envolvendo uma rede de amigos e de anônimos, mobilizados pelo desejo de construção de uma casa para ela. Começava ali, em outubro de 2017, o Save Bianca.

Uma campanha de financiamento coletivo foi iniciada por Marquinhos e ganhou a adesão de amigos, artistas, produtores, DJs, fotógrafos, frequentadores dos tradicionais bares da Rua Mamede Simões, no centro de Recife.  Gente que conhecia Bianca daquelas ruas que se tornaram sua casa, na tentativa de fugir da homofobia de seu irmão. Ali era também onde ela trabalhava, como flanelinha, cuidando de carros, e também produzindo bijuterias nas imediações do Parque 13 de Maio, que durante cerca de seis anos lhe serviu de moradia com seu companheiro Lelo.

Foram nove meses de construção da casa, na qual Bianca morou menos de um mês, por ironia do destino. Não houve tempo para usufruir do lar tão desejado, por causa da doença avançada. Mesmo assim, sua história é singular pois mostra a potência de uma sociedade civil que quando se organiza e se mobiliza, alcança grandes resultados. Da persistência de Marcos Castro, surgiu um movimento de valorização e de inserção de transexuais em situação de risco trazendo o assunto para um mundo mais visível. Com a morte repentina de Bianca Close, o tema ganhou ainda mais impulso nas redes sociais e novos contornos, que abrem caminhos junto a ONGs como “Amo Trans”, de ajuda a pessoas em situação de risco.

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A casa onde Bianca morou menos de 30 dias, construída com os R$ 20 mil das doações. Foto Victor Jucá
A casa onde Bianca morou menos de 30 dias, construída com os R$ 20 mil das doações. Foto Victor Jucá

Rede de mobilização

A casa de apenas um cômodo e 21 m2 foi construída nos fundos da casa de sua mãe, na comunidade de Brejo da Guabiraba, Zona Norte de Recife, onde só havia lixo e sujeira. E teve significados maiores que suas estruturas, sustentadas pelas doações recebidas ao longo dos meses. A obra foi interrompida quatro vezes, mas a cada aperto ia ganhando mais fôlego e novos adeptos. Precisavam de 35 mil reais, pelos cálculos do arquiteto Amaro Mendonça, que havia entrado como voluntário e feito o projeto.

Amaro também era frequentador dos bares da Rua Mamede Simões, e conhecia Bianca da noite. “Ela sabia chegar nas pessoas, era muito simpática, mesmo vivendo nas ruas e numa situação de desamparo, de risco, de violência. Quando Marquinhos me falou da campanha eu não pensei duas vezes. E começamos a pensar num projeto bem enxuto”, conta o arquiteto.

Como a vaquinha virtual não decolava, o grupo, já com mais de dez pessoas, decidiu criar a festa Save Bianca, realizada no Irã, uma espécie de inferninho da cidade, com DJs como Allana Marques, Felipe Machado e Lala K. Nessa noite, foram arrecadados dois mil reais, número ainda muito distante do que seria necessário para dar partida ao projeto. “A festa fez a campanha se espalhar e andar pela cidade, sair da nossa bolha, mas ainda faltava muito”, lembra Marquinhos.

Em seguida, veio a ideia da venda de camisetas e a criação das frases e das artes ficou a cargo do designer gráfico Tácio Ferraz. “Olhe, ame, cuide. Trans são joias”, “Trans são luzes”, “Trans são vida”, “We love trans” estamparam camisetas, folders e publicações nas redes sociais. O fotógrafo Victor Jucá fez uma série de fotos de Bianca. As DJs Allana Marques e Lala K, da festa Odara Ôdesce, abriram suas bombadas redes sociais para a divulgação. “Houve muita mobilização, muitas ações espontâneas dos amigos atrás de gente nova que pudesse repostar e aumentar a rede de participação. E virou uma campanha pesada, gente aderindo, artistas, empresários e cobertura da mídia”, relata o produtor.

Quando a campanha chegou à marca de dez mil reais, Marquinhos e Amaro, junto com Marcondes, o mestre-de-obras, decidiram começar a construção mesmo sem terem o dinheiro completo. “Se a gente não desse esse passo, o projeto não ia rolar e a gente ia desistir. Amaro pensou soluções mais baratas, e o mestre de obra ajudou muito nisso. Os dois abraçaram a causa e entraram com ideias nas soluções para que a gente pudesse ir em frente. A obra levou nove meses, parou quatro vezes, mas nada fez a gente desistir”, conta Marquinhos.

No dia 9 de maio, uma segunda festa chamada Save Bianca – a construção, foi uma espécie de última chamada da arrecadação. Teve show de transexuais, inclusive Bianca, e fez decolar ainda mais a divulgação. Era a última fase da campanha, e faltavam sete mil reais para a compra do restante do material e o pagamento dos pedreiros.

O bloco carnavalesco Seguranças de Lala K, de Olinda, deu dois mil reais. “Não dava para deixar tanto esforço se perder faltando tão pouco, com tanta gente envolvida. E todos nós já estávamos ansiosos, queríamos ver Bianca fora das ruas e morando na casa dela“, conta Lala, responsável pelo bloco e que também se envolveu desde o início no projeto.

O ator pernambucano Renato Goes fez a última e definitiva doação, de cinco mil reais, e a casa acabou de ser construída em junho de 2018 por menos de 20 mil, abaixo das previsões iniciais.

 Muito além de paredes

Marcos Castro se emocionou com a história de Bianca numa madrugada chuvosa de Recife, sentados à beira da calçada onde fica o Bar Central. “Ela estava numa tristeza danada. Era conhecida de todo mundo que frequentada os bares da Mamede Simões pela sua simpatia, tinha uma personalidade incrível, sempre sorridente e gentil com todo mundo. Mas naquela noite ela estava diferente e a conversa acabou acontecendo por acaso”, conta o produtor.

Nesse encontro, Marquinhos ficou sabendo que Bianca queria muito sair das ruas, e ter uma casa. Dizia que a mãe queria que ela voltasse e que tinha saudades de um lar. A guardadora de carros contou ainda que estava cansada da vida nas ruas, de apanhar da polícia, de perder sempre o pouco que conseguia, e de viver se escondendo, fosse das pessoas e dos maus tratos, fosse do frio e da falta de dignidade. Pediu a ele 400 reais, dizendo que ia construir um barraco de tapume nos fundos da casa da família. Foi esse encontro que sensibilizou Marquinhos e que mudou a vida de Bianca quando ele decidiu agir.

A construção da casa de Bianca vai muito além das paredes de tijolo e concreto que hoje estão prontas. Em apenas nove meses, Bianca teve sua vida de volta, inserida no mundo nas condições em que escolheu viver, mesmo com todo o preconceito da família. Conforme a casa foi subindo, subiam também os planos da mulher trans que encontrou abrigo em um amigo surgido nas ruas, as mesmas que a maltrataram. Planos de estudo, de ter uma profissão – queria ser maquiadora –, de deixar para trás o trabalho como guardadora de carros, de poder fazer seus shows com cantos e imitações de Ney Matogrosso e Elba Ramalho, sua diva. “Ela sonhava que entraria pela primeira vez em sua casa ao lado de Elba, cantando ‘Estou, de volta pro meu aconchego’. Dizia que seria a coroação da sua felicidade”, conta Marquinhos, em meio às inúmeras lembranças criadas em tão pouco tempo.

Os slogans “Olhe, ame, cuide. Trans são joias”, “Trans são luzes”, “Trans são vida”, “We love trans” estamparam camisetas, folders e publicações nas redes sociais. Foto Samia Emerenciano

 Virando o jogo

A morte de Bianca pegou de surpresa o grupo de amigos e voluntários do projeto. Ninguém sabia da internação dela na UPA de Nova Descoberta e a notícia de sua morte demorou a ser confirmada, com Marquinhos e os amigos correndo as UPAS e o IML de Recife em busca de informações e de confirmação. A solidariedade para o enterro foi imediata, e o dinheiro foi reunido rapidamente para velório, documentos e burocracias, complementando a doação de um túmulo no Cemitério Jardim Metropolitano, em Águas Compridas, Olinda, feita pela ONG Amo Trans. Até missa de sétimo dia, mandada rezar por senhoras da paróquia de Nossa Senhora de Fatima, na Praça Chora Menino, centro de Recife, Bianca teve. “Deve ter sido a única missa para uma mulher trans em igreja católica. De outra, nunca soube”, brinca Marquinhos. Assim Bianca Close foi enterrada com toda a dignidade, no dia 14 de julho de 2018.

Para Amaro Mendonça, que esteve diretamente envolvido no processo, o mais importante da campanha Save Bianca foi a possibilidade real de se quebrar barreiras e levar as pessoas a um universo em que normalmente elas não vão. “Foi importante sair desse lugar em que a gente fica vendo os moradores de rua e vai lá e dá uns trocadinhos, achando que fez alguma coisa. Essa troca de lugar, ir até a periferia, conhecer o local de onde a pessoa saiu e poder mudar aquela realidade é que de fato fez a diferença”, resume o arquiteto.

Agora, mesmo com a morte prematura, nada se encerra com a morte de Bianca. O projeto segue seu curso, ampliado com uma exposição das fotos feitas por Samia Emerenciano e Victor Jucá ao longo de toda a campanha, e que fizeram Bianca ficar conhecida através das redes sociais. A exposição deve ser montada na mesma Rua Mamede Simões, de onde os amigos tiraram Bianca para sua nova vida, curta, mas digna. “A ideia é vender as fotos e mais camisetas para apoiar algumas instituições. Não quero parar, vou seguir, continuar a campanha para ajudar muitas outras trans”, resume Marquinhos, responsável, desde o início, por encabeçar o movimento.

Sobre a casa, que motivou tamanha mobilização e tanta solidariedade, ela ficará de herança para Lelo, o companheiro, e para sua Ana Paula do Espírito Santo, 19 anos. São os últimos desejos de Bianca Close, transmitidos já bem perto de sua morte à Ana, irmã de quem era mais próxima, encerrando assim a sua trajetória.

Rita Fernandes

É jornalista e pesquisadora de carnaval, com mestrado em Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas. Foi colunista do jornal O Dia, titular da coluna Pelas Ruas, sobre a cultura de rua da cidade. É consultora de conteúdos sobre carnaval de rua para a Globo News. Uma das fundadoras do Bloco Imprensa Que Eu Gamo e presidente da Sebastiana - Associação de Blocos de Rua, desde 2004.

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Um comentário em “Réquiem para Bianca

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