Trans em horário nobre: o que vem depois do fim?

Os impactos da novela 'A força do querer', que levantou o debate sobre identidade de gênero em meio à onda conservadora que invade o país

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 5ODS 9 • Publicada em 20 de outubro de 2017 - 08:19 • Atualizada em 17 de julho de 2020 - 14:21

Na volta para casa, paro em um desses quiosques de hambúrguer que ficam pelas calçadas do Rio. A atendente e um outro cliente, um mototaxista, conversam diante de uma pequena TV, onde é exibida uma cena do personagem trans da novela da Globo “A força do querer”, Ivan (vivido pela atriz Carol Duarte). Enquanto escolhia meu lanche, a funcionária explicava ao rapaz, pacientemente e quase que didaticamente, as diferenças entre identidade de gênero e orientação sexual.

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Nossa sociedade está careta. Existe uma onda conservadora muita grande. Toda tentativa de inclusão é importante. Se ao menos um pai, ou uma mãe, passar a aceitar melhor a orientação de gênero do filho (a) a partir da novela, para mim ela já cumpriu sua missão

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O poder da novela em gerar discussões nas mais diferentes camadas sociais não é novidade. Mas nunca antes o debate sobre a questão trans foi tão presente como agora, provocado pela novela de Glória Perez, que foi destaque até no jornal “The New York Times” por conta dessa abordagem. A trama, que termina nesta sexta-feira (20 de outubro) é a de maior sucesso dos últimos cinco anos da Globo. Mas afinal, que  legado ela deixa para a sociedade em relação à aceitação das diferenças?

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Carol e o trans Lam Matos, que prestou consultoria para a atriz (Foto: Arquivo pessoal)

Para Lam Matos, o resultado foi positivo. Ele tem propriedade para opinar. Homem trans de 34 anos,  Lam fez parte do grupo que prestou consultoria para a produção da novela e para a própria atriz que interpretou Ivana/Ivan. A novela mostrou todo o processo de transformação da personagem. Da descoberta da transexualidade à aceitação, passando pelas transformações físicas, uso de hormônios, rejeição familiar e transfobia. “Tive retornos positivos de pessoas transexuais que criaram coragem para se abrir com suas famílias, com colegas os de trabalho, com os amigos. E sentiram um pouco mais de aceitação e menos violência”, diz.  “Moro na Zona Leste de São Paulo, numa área mais periférica da cidade, e observei as pessoas conversando sobre a novela. Grande parte delas conseguiu entender essas outras possibilidades de identidades de gênero de uma forma mais aberta”.

Na opinião do pesquisador de teledramaturgia Guilherme Fernandes, Glória Perez foi feliz no desenvolvimento da temática. “Eu avalio positivamente, como pesquisador e como espectador. Confesso que temia uma rejeição do público, mas não aconteceu, a trama foi um grande sucesso”.

Ivana (Carol Duarte) corta os cabelos, após revelar para família que é um homem trans (Foto: Globo/Estevam Avellar)

Mas como nem tudo são flores… Cristina Brandão, também pesquisadora em teledramaturgia, lamenta que o tema tenha sido tratado em horário nobre justamente quando o país atravessa um momento político conturbado e é invadido por uma onda conservadora. “Apesar da abordagem minuciosa e cuidadosa da autora, a temática, ao meu ver, chegou em hora errada. O momento político provoca  transtornos na população. Quando o cidadão liga a TV e assiste a uma personagem em processo identitário, acaba agredindo a emissora por lançar tal discussão e começa uma avalanche de comentários negativos”.

[g1_quote author_name=”Lam Matos” author_description=”Homem trans, coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

É de uma grande ousadia colocar o assunto da transmasculinidade de forma tão completa. A novela atinge uma parte da população onde o movimento social não consegue chegar

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Guilherme Fernandes discorda.  “Sem dúvida, a abordagem veio em bom momento. Nossa sociedade está careta. Existe uma onda conservadora muito grande, uma rejeição ao diferente. Toda tentativa de inclusão é importante. Se ao menos um pai ou mãe passar a aceitar melhor a orientação de gênero do filho (a) a partir da novela, para mim ela já cumpriu sua missão”, diz. “A transexualidade não é algo que a sociedade ainda não saiba que existe, mas é algo que ela não compreende, não entende o porquê. Com a abordagem na trama, isso pode se modificar. Mesmo que os conservadores não entendam ou achem que é uma doença, loucura, sei lá, eles, ao menos vão ter a noção do processo”, completa o pesquisador.

Novelas com causa

Glória Perez, aliás, foi a autora que introduziu as campanhas sociais na teledramaturgia nacional. E acreditem: já foi chamada de louca por suas narrativas, digamos, fora do padrão novelesco. “A Glória está mesmo à frente desse nosso Brasil bem arcaico”, acredita Cristina Brandão.

Em 1987, com a novela “Carmem”, na TV Manchete, Glória já tentava desconstruir o preconceito contra pessoas vivendo com HIV. Falou sobre bebês de proveta em “Barriga de aluguel”, clonagem humana em “O clone”, mostrou o drama das famílias de desaparecidos em “Explode coração”, dos imigrantes ilegais, em “América”, e denunciou o tráfico internacional de pessoas, em “Salve Jorge”. Ela também tratou de temas como a esquizofrenia, em “Caminho das Índias”, e mostrou realidade dos deficientes visuais, também em “América”. Agora, chegou a vez da transexualidade.

“É de uma grande ousadia da Glória colocar o assunto da transmasculinidade de maneira tão completa”, elogia Lam Matos. “De forma geral, a abordagem foi muito boa, real. E importante, pois mostrou todas  as dificuldades que um homem trans passa. Eu me senti representado”, afirma. Ele também ressalta a força que o tema ganha quando é tratado em um folhetim visto por milhões de pessoas. “A novela atinge uma parte da população onde o movimento social não consegue chegar”.

Keila Simpson, presidente da ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transexuais, endossa o discurso de Lam. “Como é uma novela de um canal de grande penetração na sociedade, muita gente a assiste. Para o bem ou para o mal, as pessoas, queiram ou não, estão de frente com essa temática. Para nós, é bem importante que a sociedade como um todo conheça coisas que a gente já vive há muito tempo. O debate está aberto, às vezes nem sempre é favorável como gostaríamos que fosse, mas é importante que esteja sendo pautado. Experimentou-se em cadeia nacional essa visibilidade que a população trans precisa e merece”, avalia.

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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