Noventa e sete homens mortos em quatro anos. Mais de 24 vidas sob a custódia do estado exterminadas por ano. O número rendeu ao Complexo Penitenciário do Curado, na Zona Oeste de Recife (PE), o título de o pior do Brasil, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2011. E mais: motivou a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, órgão da Organizações dos Estados Americanos (OEA), a determinar, na época, que fossem adotadas medidas para proteger a vida, a integridade e a saúde dos detentos. Cinco anos se passaram e, diante de denúncias de que não houve melhoras, juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos vieram de San José da Costa Rica vistoriar o local, em 8 de junho: saíram daqui, dois dias depois, usando palavras como “lastimável’, “grave” e “alarmante”. O parecer da Corte, diante de tanto desrespeito aos direitos humanos, pode resultar na expulsão do Brasil da OEA.
[g1_quote author_name=”Luiz Emmanuel Barbosa” author_description=”Advogado e membro da ONG José Ricardo” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O caso já extrapolou a alçada da Comissão Interamericana de Direitos Humanos quanto às medidas de proteção pessoal. A Comissão deu medidas cautelares em 2011. Como o Estado brasileiro não respondeu satisfatoriamente, então a CIDH pediu medidas provisórias à Corte, com o mesmo o objetivo de proteção pessoal, porém ordenadas por um órgão jurisdicional (Corte). Com mais peso e mais difícil de ser ignorado.
[/g1_quote]Impossível não fazer o trocadilho: o Curado foi fundado em 1979 para curar uma ferida aberta em muitos estados brasileiros, a superlotação. O objetivo era “humanizar” e reorganizar a população carcerária, desafogando delegacias e presídios, e abrindo 1.200 vagas para os detentos do estado. Este número até agora só fez subir, e hoje está em inacreditáveis sete mil presos, compactados em situação irrespirável. Segundo dados da CPI do Sistema Carcerário da Câmara dos Deputados (2015), Pernambuco tem uma população atrás das grades de 29.542 para 9.099 vagas, ou seja, um excedente de 20.443 pessoas.
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Veja o que já enviamosUm mês depois de os juízes da Corte terem visitado o Presídio Aníbal Bruno, mais uma prova da situação calamitosa: uma nova rebelião sacudiu a penitenciária, deixando um morto e cinco feridos, no sábado, dia 1º de julho, por volta das 20h30. A revolta começou no campo de futebol, mas poderia ter se iniciado em qualquer canto do complexo, um verdadeiro barril de pólvora.
Resultado: além de um detento morto, havia outros cinco feridos. Um deles foi levado para o Hospital da Restauração (HR) com um tiro na testa; outro foi encaminhado para o Hospital Otávio de Freitas com ferimento de arma branca na perna. A confusão, na versão dos presos, foi motivada pela transferência de colegas para outra unidade do sistema, devido a uma delação, feita pelo “chaveiro” que, por isto, teria levado um tiro na boca disparado por detentos.
A figura do “chaveiro” já havia chamado a atenção da Corte, em 2011, pois se trata de uma verdadeira aberração. Um detento de confiança assume o lugar de carcereiro, por falta absoluta de pessoas contratadas para a função, e ganha o título. Uma das exigências das medidas provisórias era de que fossem contratados mais agentes penitenciários.
Ineficácia do estado
“Na verdade, o caso já extrapolou a alçada da Comissão Interamericana de Direitos Humanos quanto às medidas de proteção pessoal. A Comissão deu medidas cautelares em 2011. Como o Estado brasileiro não respondeu satisfatoriamente, então a CIDH pediu medidas provisórias à Corte, com o mesmo o objetivo de proteção pessoal, porém ordenadas por um órgão jurisdicional (Corte). Com mais peso e mais difícil de ser ignorado”, detalha o advogado Luiz Emmanuel Barbosa, que atua na ONG José Ricardo.
Para ele, mestre em Direito, a inspeção feita pela corte traz esperança, mas revela as dificuldades das autoridades locais em cumprir as medidas determinadas para melhorar as condições dos presos. “A visita da Corte, em si, não aponta para nada de concreto a ser a posto em prática em relação ao já apresentado, mas chama a atenção, mais uma vez, para o problema”, enfatiza, listando as mazelas que persistem – agentes penitenciários, superlotação, atendimento médico inadequado, entrada de armas e drogas. “Pelo menos, a visita vexatória parou”, destaca, apontando como soluções um concurso para agentes penitenciários, a finalização de obras de novas penitenciárias e a contratação de profissionais de saúde.
Para o ativista da ONG José Ricardo, organização que atua na defesa dos Direitos Humanos em geral, mas foca na população carcerária LGBT, a mais vitimada pela violência atrás das grades, a posição do governo do estado é, no mínimo, contraditória. “Mais gera problemas do que de fato resolve os existentes.” Um exemplo: o governo anunciou o reforço do muro do presídio e a criação de uma zona de segurança. Mas, para torná-la possível, planeja a retirada dos moradores do entorno. “Agora, além de toda a insegurança com que convivem, esses moradores ainda têm de se defender do governo, que os ameaça com a remoção. Para agravar a situação, os novos estabelecimentos prisionais que vinham sendo construídos para desafogar as atuais unidades, estão com as obras paralisadas”, denuncia.
Fora da OEA
A situação no Complexo de Curado leva o Brasil a ser ameaçado de expulsão da OEA por descumprir o Pacto de San José da Costa Rica, assinado em novembro de 1969, e do qual, o país é signatário. O pacto – a Convenção Americana dos Direitos Humanos – é um tratado internacional entre os 35 países-membros da OEA e foi subscrita durante a Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de San José, daí ter levado o seu nome. O pacto é uma das bases do sistema interamericano de proteção aos Direitos Humanos.
O bacharel em Direito e em Ciências Políticas e mestre em Ciências Políticas, Manoel Moraes, da ONG José Ricardo, lembra que o Brasil já foi condenado pela Corte, a partir do caso Gomes Lund (que julgou o caso de Guilherme Gomes Lund, morto na Guerrilha do Araguaia, em 1973, e ampliou a condenação para todos crimes cometidos contra os guerrilheiros do Araguaia), mas a sentença não foi definitiva, está em fase de monitoramento. No caso da situação prisional de Pernambuco, segundo Moraes, será.