Livres da cadeia e condenados ao desemprego

A inserção de ex-detentos no mercado de trabalho é um desafio que o país não enfrentou

Por Liana Melo e Maria Fernanda Delmas | ODS 1 • Publicada em 31 de janeiro de 2017 - 09:00 • Atualizada em 2 de fevereiro de 2017 - 11:13

Agência de emprego Segunda Chance. Foto André Santos/AfroReggae
Agência de emprego Segunda Chance. Foto André Santos/AfroReggae
Na agência de emprego do AfroReggae, a Segunda Chance, ex-detentos e desempregados entram na fila à procura de uma vaga de emprego. Foto André Santos/AfroReggae.

Uma interceptação telefônica da Polícia Federal levou à prisão em flagrante da carioca Evanir Gomes, acusada por associação ao tráfico de drogas. Enquadrada nos artigos 35 e 36, foi presa enquanto dirigia uma moto, na altura de Xerém, na Baixada Fluminense. Ela conduzia dois homens, ambos do Paraná, que viajavam para o Rio de Janeiro e estavam a bordo de um carro abarrotado de ‘mercadorias’. As drogas estavam a caminho da Rocinha.

Naquele mesmo ano, em 2008, o paulistano Leonardo Precioso foi preso, enquanto ‘negociava’, em um telefone público da capital paulista, o valor do resgate de uma vítima de sequestro. Seu envolvimento com o crime se estendia ao tráfico de drogas, que lidera a lista de delitos que mais geram prisões no país e que levou Evanir à cadeia. Ele também foi flagrado por um grampo telefônico da PF, deixando para atrás uma vida de jogador de futebol que parecia promissora.

Em liberdade desde 2015, os dois conseguiram entrar para as estatísticas de inserção de egressos (como são chamados os ex-detentos) no mercado de trabalho – um dos grandes desafios de políticas públicas que o Brasil ainda não enfrentou, e que é urgente, porém complexo. A sociedade costuma virar o rosto para pessoas nesta condição e se conta nos dedos o número de empresas no país que contratam quem tem ficha suja na Justiça. E, quando as empresas contratam, geralmente omitem dos outros funcionários a condição de egresso do novo empregado. É um trabalho, portanto, invisível.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

Enfrentar o preconceito da sociedade e a precarização do trabalho, especialmente porque os ex-detentos têm baixa qualificação, são barreiras muitas vezes intransponíveis. Voltar para o mundo do crime é o caminho mais curto, rápido e fácil para ganhar dinheiro. Não à toa, a reincidência criminal no Brasil é uma das maiores do mundo: sete em cada dez presos que deixam o sistema penitenciário retornam para os presídios. Evanir e Precioso são exceção à regra.

Sem passado

É grande a procura por uma vaga de emprego na Segunda Chance, na Lapa, centro do Rio. Foto André Santos/AfroReggae

“Não minto sobre o meu passado, mas omito as informações. Nunca contei para os meus colegas de trabalho que já estive presa. As pessoas costumam ter medo de conviver com ex-presidiários”, conta Evanir, admitindo achar normal o temor alheio. “Mas dói”, confessa ela, que trabalha como auxiliar administrativa no Sesc de Duque de Caxias, após passar em uma seleção disputada por 40 candidatos. Entre os concorrentes, desempregados com ficha limpa.

[g1_quote author_name=”Gisele Chaves” author_description=”assistente de projetos do Pró-Egresso” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Já houve caso de colocarem a culpa de delitos em cima de um egresso. A sorte é que a gravação de uma câmera de segurança mostrou que o egresso não tinha culpa alguma

[/g1_quote]

Nas conversas do programa Pró-Egresso, do governo de São Paulo, com as empresas contratantes, a orientação é que a condição do ex-detento fique restrita à área de Recursos Humanos. “Já houve caso de colocarem a culpa de delitos em cima de um egresso. A sorte é que a gravação de uma câmera de segurança mostrou que o egresso não tinha culpa alguma”, explica Gisele Chaves, assistente de projetos do Pró-Egresso. “O egresso já levou tanto ‘não’ que quando consegue um trabalho, ele se esforça ao máximo”.

Criado em 2009, o Pró-Egresso – parceria entre as secretarias de Administração Penitenciária, Emprego e Relações de Trabalho e Desenvolvimento Econômico – ganhou corpo em 2011. Desde então, houve 972 admitidos no sistema, contratados com carteira assinada. Os empregadores são empresas que prestam serviço ao governo paulista. Tudo depende de o órgão público que vai contratar esse prestador de serviço aderir a um decreto que estipula uma cota de 5% de egressos no corpo de funcionários. O programa também dá qualificação e apoio psicológico.

Evanir chegou a uma das instituições do Sistema S (Sesc e Senac, Sesi e Senai) através de outro programa, o Segunda Chance, agência de empregos do grupo AfroReggae. Criada em 2008, nasceu como Projeto Empregabilidade e, no começo, só atendia ex-detentos. Os altos índices de desemprego no Brasil – a 7ª maior do mundo em termos percentuais, segundo a Austin Rating – levaram o projeto a ampliar o foco. Desde então, os egressos passaram a disputar oportunidades de emprego com uma legião de desempregos que passou a frequentar a agência, na Lapa, no centro do Rio.

“Qual a diferença de um traficante para um criminoso de colarinho branco, por exemplo?”, questiona o ex-traficante João Paulo Garcia, o JP, que está à frente do Segunda Chance, onde todos os envolvidos no projeto são ex-presidiários. Dos 3.941 egressos que passaram pela agência de 2012 até o final de 2016, apenas 789 conseguiram emprego. Um número ínfimo, que comprova a tese de que o processo de ressocialização é para poucos. “As empresas preferem dar emprego para familiares de ex-detentos. Não para eles”, diz JP.

Quando trabalhou com serviços gerais na Cedae, uma das poucas empresas no Rio de Janeiro que, junto com o Tribunal de Justiça, contrata ex-detentos, Evanir cumpria regime de prisão semiaberto. À época, passou por situações constrangedoras. Era impossível esconder seu passado, já que a tornozeleira denunciava a vida pregressa. “Alguns funcionários viravam a cara e outros nem me davam bom dia”.

O banho de sangue que irrompeu em prisões no Amazonas, em Roraima e no Rio Grande do Norte nas primeiras semanas do ano, ajuda a reforçar estereótipos e discursos de ódio, pautado pela lógica “bandido bom é bandido morto”.

Déficit de oportunidades

Leonardo Precioso começou a mudar de vida ainda na cadeia. Após cumprir pena, passou a trabalhar no Instituto Gerando Falcões. Foto de Divulgação/ Gerando Falcões

Foi ainda na cadeia que Precioso começou a mudar de vida. A oportunidade chegou a ele pelas mãos da mãe, que, durante uma visita, levou um livro de presente. Na folha de rosto, uma dedicatória de Eduardo Lyra, um amigo de infância: “Todo mundo pode, basta querer”. As conversas continuaram por cartas.

Envolvido com o mundo do crime, Precioso começou a enxergar outras possibilidades na vida e Lyra, por sua vez, a vislumbrar a possibilidade de levá-lo para o Instituto Gerando Falcões – ONG que transformou o jovem, então com 28 anos, em um dos 30 jovens mais influente do país, segundo lista da revista Forbes Brasil. Os dois trabalham juntos no projeto “Recomeçar”, que encaminha ex-presidiários ao mercado de trabalho.

Lei só no papel

Criada em 1984, a Lei de Execução Penal nunca saiu do papel, ainda que defina o conjunto de direitos e deveres dos detentos. Ela prevê, por exemplo, que todo preso condenado tem a obrigação de trabalhar na cadeia.  Só que apenas 22% da população carcerária está inserida em programas de laborterapia, trabalho e cursos dentro das unidades penitenciárias, segundo levantamento do Banco da Providência. No programa Frente de Trabalho, também do governo de São Paulo, são criadas 600 a 700 vagas por ano para os presos do regime semiaberto prestarem serviços às prefeituras. A cada semana, durante nove meses, são quatro dias de trabalho e um de curso, com uma bolsa de R$ 390 mensais.

O Banco da Providência trabalha com ex-detentos através da Agência da Cidadania. “A sociedade não acredita na mudança e transforma a vida dos egressos em uma sentença de morte”, comenta Clarice Linhares, superintendente da instituição, comentando que considera “uma burrice não investir naqueles que não querem voltar para a cadeia”.

A Pano Social emprega ex-detentos. Foto de Divulgação

Uma pequena empresa de São Paulo, a PanoSocial, de tecidos orgânicos e sustentáveis, emprega ex-detentos com carteira assinada há cinco meses. A experiência com essa mão de obra começou há três anos e meio, quando as contratações eram temporárias, por projeto. Hoje, a confecção tem cinco egressos empregados diretamente e oito indiretamente, nos fornecedores. Eles passam 80% do tempo trabalhando e 20%, em capacitação. Lá, o trabalho dos egressos não é invisível, e Natacha diz que todos os funcionários acreditam muito na causa.

“O egresso é motivado, é um funcionário exímio. Vemos evolução também no círculo familiar”, acredita Natacha Lopes, sócia da PanoSocial. A confecção recorre a programas como o Segunda Chance, mas também já recrutou pelo Facebook. Um post colocado pela empresa teve mais de um milhão de visualizações.

“O sistema prisional brasileiro funciona como um grande funil: temos uma entrada enorme e uma saída diminuta”, compara a socióloga, pesquisadora e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Julita Lemgruber, que, no início dos anos 1990, dirigiu o sistema penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. A relação desproporcional entre a entrada e a saída só faz a população carcerária crescer. Ela pulou de 232 mil presos, em 2000, para 656 mil presidiários em 2016, um incremento de 182%.

Liana Melo e Maria Fernanda Delmas

Liana e Fernanda estudaram na Escola de Comunicação da UFRJ, mas se conheceram na revista Isto É, quando trabalharam na sucursal do Rio e na sede em São Paulo, respectivamente. Especializada em Economia e Meio Ambiente, Liana trabalhou ainda na “Folha de S. Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil” e no “O Dia”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia/ UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. É autora do livro "Beleza Natural - A história da rede de cabeleireiros que levantou a autoestima das brasileiras". Fernanda é especializada em economia, trabalhou em jornais, sites e revistas e é editora no Globo. É autora do livro "Olha quem está poupando", com dicas de orçamento para pais de primeira viagem. Escreve sobre mulheres e carreira.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

9 comentários “Livres da cadeia e condenados ao desemprego

  1. adriana machado disse:

    Sou mãe de um exdetento que esta em condicional não consegue trabalho e estu preocupada pois ele é mecânico tem 23 anos e deseja voltar ao trabalho mas esta sentindo ns pele o preconceito estou sem sabe o q fazer

  2. Douglas de andrade oliveira disse:

    sou ex presidiario e necessito de emprego pois minhas crianças estão passando necessidades e não sei o que fazer

  3. Gleison disse:

    Sou ex presidiário e não consigo um trabalho já estou a quase dois anos livre e estou sofrendo bastante com o preconceito de ser um ex detento.

  4. Patrick dos Santos disse:

    Sou ex presidiário a quase 3 anos, e não consigo emprego, muitas portas se fecham para o caminho digno e muitas se abrem para o crime, preciso de uma ajuda ou direção de algo que me ajuda a co seguir un emprego. Me ajudem. Desde já agradeço a atenção.

  5. Marcelo da Conceição disse:

    Sai da prisão em 2006 já trabalhei tenho registro na carteira o ultimo foi 2017 a 2018 fui muito discriminado rejeitado no café no almoço atenção devida a informação vaso ..foi muito difícil..

  6. adriana disse:

    Somos uma pequena empresa na area juridica, como prestadores de serviços em marcas, estamos com vagas abertas para telemarketing feminino podendo ser sem experiencia, não consegui contato telefonico com nenhuma das entidades para colocar as vagas abertas com vcs. Caso seja possivel, 48583399 nosso telefone.

  7. Ezequiel da Silva Rodrigues disse:

    Eu mudei a minha vida mas estou passando por um processo muito difícil na minha vida pois na minha casa falta alimentação não temos dinheiro para água luz nem muito menos para internet estamos passando quase fome e não tem ninguém que nos ajude somente Deus e mais ninguém

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile