Jogadores caem no conto alemão

Jovens investem o dinheiro que não têm em busca do sonho de jogar na Europa

Por Fernando Molica | ODS 1 • Publicada em 1 de agosto de 2016 - 08:00 • Atualizada em 2 de agosto de 2016 - 13:04

Pelo contrato assinado, Igor Faria ficaria com apenas 20% do que viesse a receber como jogador, incluídos salários e direitos de imagem
Pelo contrato assinado, Igor Faria ficaria com apenas 20% do que viesse a receber como jogador, incluídos salários e direitos de imagem

Para alguns jovens brasileiros, a experiência com o futebol alemão é bem mais dolorosa do que as fotografias do 7 a 1 grudadas na parede da nossa memória coletiva. Eles são jogadores de futebol que deram dinheiro para intermediários e compraram as próprias passagens para embarcar num sonho que terminaria logo depois da aterrissagem na Europa.

Animados com promessas de vagas em clubes das terceira e quarta divisões do país campeão do mundo, esses atletas juntaram economias, venderam bens, arrumaram empréstimos e chegaram a deixar empregos para viabilizar suas viagens.

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Os problemas são tantos, que o Itamaraty colocou em seu site o guia ‘Orientações para o trabalho no exterior’, voltado, principalmente, para jogadores de futebol, modelos, professores de capoeira e dançarinos. A Tunísia é um dos países onde há mais irregularidades envolvendo atletas brasileiros.

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Ao invés de assinar contratos com times profissionais, eles acabaram escalados apenas para fazer testes em equipes amadoras, da sétima e da oitava divisão. Alguns continuam pulando de clube em clube, outros passam por dificuldades na Alemanha e há os que retornaram para o Brasil e fazem planos para atravessar de novo o Atlântico e tentar retomar a carreira.

Com passagens pelo Trindade, penúltimo colocado no Campeonato Goiano de 2016, e pela base do Goiás, Igor Rego de Faria, de 25 anos, mora hoje de favor em Berlim.  Seus problemas começaram com uma oferta de Luiz Reginaldo Rodrigues de Moraes, ex-jogador que atuou em ligas inferiores na Alemanha e que hoje se dedica ao comércio de gente que tanto marca a história brasileira.

Ao término de uma partida organizada para a observação de jogadores, o intermediário se aproximou de Igor. “Ele disse que tinha um time certo pra mim na Alemanha. Primeiro eu iria treinar num time amador, que me pagaria 300 euros (cerca de R$ 1,1 mil) por mês e me inscreveria num curso de alemão. E, seis meses depois, eu seria contratado por um clube profissional”, conta. Em troca, o intermediário pediu R$ 12 mil, mas depois, aceitou receber R$ 5 mil.   O dinheiro seria para bancar despesas do atleta com moradia e alimentação no exterior.

A cartilha do Itamaraty

Para conseguir um total de R$ 10 mil – ainda precisava bancar a passagem -, Igor, filho de uma cozinheira, recorreu a empréstimos e repassou um crédito referente à compra da parcela de uma casa.  Como comprovante do pagamento, o jogador recebeu um recibo em nome da empresa LLR Moraes que, segundo o site da Receita Federal, está registrada em nome de Luiz Reginaldo e de Laudimila de Moraes. Sua atividade principal é a representação comercial e o agenciamento do “comércio de máquinas, equipamentos, embarcações e aeronaves”.

Fundada em novembro do ano passado, a LLR Moraes, que usa o nome de fantasia LLR Stronkozpte Representações, tem, como atividades secundárias, a representação comercial e o agenciamento do “comércio de madeira, material de construção e ferragens” e o “comércio especializado em produtos não especificados anteriormente”.  A empresa e seus sócios não estão inscritos no Cadastro de Intermediários criado, este ano, pela CBF.

Igor assinou contrato de prestação de serviços que entregava à sua mãe, a cozinheira Maria Rego Gomes, e a Luiz Reginaldo o direito de representá-lo. No fim das contas, o atleta ficaria com apenas 20% do que viesse a receber como jogador, aí incluídos salários e direitos de imagem. Sua mãe embolsaria 30%, o mesmo percentual destinado a Luiz Reginaldo. O contrato é tão precário que os percentuais discriminados somam 80% e não 100%. A multa para o rompimento do compromisso é de 20.000 vezes (isso mesmo, vinte mil) do valor do salário anual do atleta.

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Ele disse que tinha um time certo pra mim na Alemanha. Primeiro eu iria treinar num time amador, que me pagaria 300 euros (cerca de R$ 1,1 mil) por mês e me inscreveria num curso de alemão. E, seis meses depois, eu seria contratado por um clube profissional.

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Especializado em direito esportivo, o advogado Igor Ferreira diz que o percentual de 30% destinado ao intermediário dá margem à anulação do contrato, já que o padrão, nesses casos, costuma ficar em 10%. Ressalta, porém que a Fifa e a CBF recomendam que a taxa de intermediação seja de, no máximo, 3%.

Em janeiro, no auge do inverno no hemisfério norte, Igor embarcou com outros dois aspirantes rumo à carreira de jogador na Alemanha – nenhum deles tinha visto de trabalho. Em Berlim, Igor, T. e J., estes dois últimos não quiseram se identificar,  foram recebidos por Jefferson e seu tio Vragel da Silva – este, um ex-jogador que também atuou na Alemanha.  Foi quando perceberam que a situação era bem diferente da que havia sido apresentada no Brasil. “Vragel disse que o Reginaldo não tinha repassado o dinheiro para eles, que a situação estava difícil”, relata Igor. Os três começaram então um tour por clubes amadores e por pensões de cidades alemãs.

Luiz Reginaldo apareceu na Alemanha, mas isso não melhorou em nada a vida do grupo – os rapazes chegaram a ficar dois dias sem comer. “O Vragel disse que não tinha como nos manter, que a encrenca era do Reginaldo”, lembra Igor. Ele afirma que chegou a ficar hospedado com outros dois brasileiros, menores de idade, num apartamento arranjado pelos intermediários, mas o aluguel venceu – e eles tiveram que sair. Os adolescentes voltaram para o Brasil, e Igor conseguiu um quarto emprestado para morar.

A situação dele é delicada: sua passagem de volta já caducou, ele não dispõe de dinheiro para comprar uma outra, a Embaixada Brasileira disse que não tem como ajudá-lo a retornar. Pior, seu prazo de permanência na Alemanha – ele entrou como turista – já venceu, ele não pode continuar por lá e corre o risco de ser deportado.

A história de J. é parecida. Ele conta que recebeu de Luiz Reginaldo a promessa de um contrato com um time da quarta divisão em troca de um adiamento de mil euros (cerca de R$ 3,6 mil). Mas ele e T. foram levados por Jefferson e Vragel para fazer testes no TSV Wichmannshausen, um clube amador da sétima divisão.

Em troca de uma ajuda de custo de 300 euros e de moradia, ele e T. chegaram a disputar alguns jogos, mas, por falta do visto de trabalho, tiveram que voltar para o Brasil. Ele e o colega querem retornar para a Alemanha – sonham em chegar a uma equipe da quinta divisão, em que teriam um salário de aproximadamente 800 euros (R$ 2,9 mil).

Luiz Reginaldo nega que tenha dito aos jovens que seriam contratados por times profissionais. “A gente se compromete a levá-los para uma avaliação”, diz. Não explica, porém, o que levaria um jogador a investir tempo e dinheiro para participar, sem qualquer garantia de emprego, de uma peneira na Europa. “Uma pessoa vai deixar sua vida no próprio país e arriscar num futuro incerto, sem ter qualquer certeza? Eu iria pagar para fazer teste em um clube amador? “, rebate Igor.

O intermediário diz que o contrato assinado com os atletas prevê apenas a participação nas tais avaliações, mas o documento assinado por Igor trata apenas da nomeação de seus representantes. Luiz Reginaldo afirma que faz este tipo de intermediação desde 2014 e que já levou entre dez e 12 atletas para a Alemanha. Apesar das dificuldades enfrentadas pelos jovens, ele se abstém de qualquer responsabilidade. “Não tenho como mantê-los por lá”, afirma.

Itamaraty fala em tráfico de pessoas

O Ministério das Relações Exteriores diz que a oferta enganosa de contratos em clubes de futebol é “incomum na Alemanha”, mas que casos parecidos têm sido registrados em diversos países.  O governo chega a classificar o problema como “uma das formas contemporâneas de servidão”. Segundo o Itamaraty, há cerca de seis mil jogadores brasileiros no exterior –  são registradas em torno de mil transferências por ano.

Os problemas são tantos, que o Itamaraty colocou em seu site o guia ‘Orientações para o trabalho no exterior’, voltado, principalmente, para jogadores de futebol, modelos, professores de capoeira e dançarinos.  A Tunísia é um dos países onde há mais irregularidades envolvendo atletas brasileiros.

De acordo com o guia, a viagem para teste em clubes estrangeiros “mascara com frequência o que se chama de tráfico de pessoas – arregimentação baseada na fraude e no engano, com o objetivo de exploração trabalhista.”

Os relatos de Igor e de J. se encaixam nas situações descritas no documento do Itamaraty. O texto fala na atuação de “agentes inescrupulosos, intermediários de propostas tentadoras que escondem armadilhas para o jogador. ”

O guia lista os cuidados que os jogadores devem tomar antes de aceitar esse tipo de oferta:

– As transferências devem ocorrer, preferencialmente, pelo sistema TMC ou pelo ITC, regulamentados pela Fifa.

– É fundamental que o jogador apure detalhes sobre o clube. Verificar se o intermediário é registrado na Fifa ou na CBF.

– É importante obter visto de trabalho ou de negócios.

– No caso de viagem de teste, o atleta deve exigir que o contrato estabeleça as responsabilidades do intermediário relacionadas a passagens, alimentação e hospedagem.

– Quem recebe uma proposta deve conversar com outros atletas que tenham sido agenciados pelo mesmo intermediário.

– Vale anotar, antes de sair do Brasil, contatos das representações diplomáticas brasileiras no país de destino.

– O contrato com o intermediário só deve ser assinado com orientação de um advogado.

– O atleta deve exigir que o contrato com o clube estrangeiro seja registrado na federação local e seja redigido e assinado também em inglês e português. Ele deve receber uma cópia do documento assim que ele foi firmado.

– É fundamental desconfiar de intermediários que pedem dinheiro. A remuneração do agente deve vir de uma comissão sobre o contrato com o clube.

– O jogador deve fazer um seguro que cubra a compra de passagem aérea de volta para o Brasil caso o empresário, em contrato, não se responsabilizar por esta despesa.

Fernando Molica

É carioca, jornalista e escritor. Trabalhou na 'Folha de S.Paulo', 'O Estado de S.Paulo', 'O Globo', TV Globo, 'O Dia', CBN, 'Veja' e CNN. Coordenou o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira da Fundação Getúlio Vargas. É ganhador de dois prêmios Vladimir Herzog e integrou a equipe vencedora do Prêmio Embratel de 2015. É autor de seis romances, entre eles, 'Elefantes no céu de Piedade' (Editora Patuá. 2021).

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