Doutores em diversidade

A partir do segundo semestre, todos os cursos de pós-graduação da Ufba vão reservar vagas para negros. Foto: JAG IMAGE/Cultura Creative/AFP

Sistema de cotas para negros e transexuais na pós-graduação

Por Thais Borges | ODS 1 • Publicada em 3 de abril de 2017 - 20:08 • Atualizada em 7 de abril de 2017 - 12:07

A partir do segundo semestre, todos os cursos de pós-graduação da Ufba vão reservar vagas para negros. Foto: JAG IMAGE/Cultura Creative/AFP
A partir do segundo semestre, todos os cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia vão reservar 30% das vagas para negros. Foto: JAG IMAGE/Cultura Creative/AFP

Quando a produtora cultural Geise Oliveira, 27 anos, ingressou no mestrado em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia (Ufba) encontrou um cenário que parecia não ter nenhuma conexão com a sua realidade. Negra e moradora do bairro de Fazenda Grande do Retiro – na periferia da capital baiana, onde 86% dos moradores se declaram pretos ou pardos, de acordo com o último Censo do IBGE (2010), Geise foi parar em um ambiente que tinha, no máximo, 25% de pessoas com a sua cor. A realidade não é muito diferente nos outros cursos de pós-graduação da universidade. “Alunos negros são minoria. Professores, então, nem se fala”, diz Denise Carrascosa, que leciona no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura, do Instituto de Letras. Esse quadro está prestes a ganhar um novo colorido. Em janeiro, a Ufba aprovou o sistema de cotas para todos os processos seletivos nos cursos de mestrado e doutorado da universidade. Mais: a universidade é a primeira do país a reservar vagas para trans (transgêneros, transexuais e travestis). Também estão incluídos no sistema de cotas quilombolas, indígenas e pessoas com deficiência.

Todos os cursos de doutorado e mestrado passarão a adotar a reserva de vagas já nas próximas seleções, no segundo semestre de 2017. Pela resolução do Conselho Acadêmico de Ensino (CAE), serão reservadas, no mínimo, 30% para candidatos que se declarem pretos ou pardos, e uma vaga a mais em relação ao total ofertado nos cursos para as outras minorias citadas acima. Hoje, a Ufba tem 87 programas de pós-graduação, com 126 cursos. Em toda a universidade, são cerca de 5,5 mil pós-graduandos. “Nossa política de cotas para negros na pós é de piso, não de teto. Ou seja, queremos o mínimo de 30%, não o máximo. E a não deixaremos o mérito de lado”, diz o professor Ronaldo Oliveira,  coordenador de Ensino de Pós-Graduação. Ele explica que, se em um determinado programa foram oferecidas 10 vagas, as três últimas serão preenchidas por afro-descendentes. Isso mesmo que entre os sete primeiros colocados já haja algum candidato que tenha se declarado negro.

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Quando defendemos as cotas raciais, estamos falando sobre a possibilidade de gerar equidade em um lugar elitizado como a pós-graduação

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Com essa decisão, a Ufba passa a ser a segunda universidade do país a atender a uma portaria do Ministério da Educação (MEC) publicada em maio de 2016. De acordo com ela, as universidades e os institutos federais deveriam apresentar propostas para a inclusão de negros, indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de mestrado e doutorado. Antes da Universidade Federal da Bahia,  só a Universidade Federal de Goiás (UFG) havia aprovado o sistema de cotas raciais na pós-graduação. Como a portaria do MEC não estipula o percentual de vagas, cada universidade tem autonomia para  adotar o sistema da forma que julgar mais adequada. Na UFG, 20% das vagas de cada curso são oferecidas para candidatos pretos, pardos e indígenas.

Geise Oliveira comemora as cotas na pós: plano de fazer doutorado. Foto de acervo pessoal

Na Ufba, a decisão começa a valer para todos os cursos no segundo semestre de 2017. Mas alguns se anteciparam e passaram a aplicar o sistema já na seleção de dezembro de 2016.  É o caso do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura. “Parece que foi uma determinação de cima para baixo, mas não foi. Essa era uma demanda dos professores, dos técnicos-administrativos e dos alunos negros. E o epicentro foi aqui, no Instituto de Letras. Começamos a fazer um movimento dentro da universidade”, conta a professora Denise Carrascosa. Logo após a publicação da portaria do MEC, em maio, os professores negros do instituto escreveram um manifesto a favor das cotas. “Quando defendemos as cotas raciais, estamos falando sobre a possibilidade de gerar equidade em um lugar elitizado como a pós-graduação”, diz Gabriel Nascimento, secretário-geral da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).

[g1_quote author_name=”Marcos Palacios” author_description=”Professor da Faculdade de Comunicação” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Para ser minimamente aceitável, o regime na pós deveria, por questão de coerência, restringir o acesso às vagas reservadas àqueles que cursaram a graduação através do sistema de cotas. Todos, obrigatoriamente, advindos de escolas públicas

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A produtora cultural Geise Oliveira foi uma das vítimas dessa desigualdade. Quando entrou  para o  mestrado em Cultura e Sociedade da universidade, encontrou pouquíssimos negros numa turma de 30 alunos. “Eu, negra, oriunda de escola pública e de bairro periférico passei a frequentar determinados espaços para ser aceita. Tive que aprender a falar inglês. Mas o que prevaleceu o tempo inteiro foi falar da questão racial”, diz. “Virei  a chata do discurso racial. ‘Ah, lá vem Geise’. Claro que incomoda,  mas a gente sabe que esse debate é importante”.  Ela terminou o mestrado em 2015 e planeja fazer doutorado para, no futuro, ajudar a aumentar a estatística de professores negros na universidade.

Nem todos festejaram o modelo de cotas adotado na pós da Ufba. Ele sofreu resistência de alguns professores, como Marcos Palacios,  da Faculdade de Comunicação. “Considero que, havendo passado por um curso de graduação e tendo sido aprovado, qualquer indivíduo tem condições de concorrer, por mérito, a uma vaga na pós-graduação”, diz. Palacios critica principalmente o fato não haver recorte de renda.  “Para ser minimamente aceitável, o regime na pós deveria, por questão de coerência, restringir o acesso às vagas reservadas àqueles que cursaram a graduação através do sistema de cotas. Todos, obrigatoriamente,  advindos de escolas públicas. Dessa forma, estaria sendo observado o princípio da inclusão dos menos favorecidos em termos socioeconômicos”.

Embora tenha “sérias reservas” aos sistemas de cotas na pós,  Palacios admite que a experiência na graduação foi positiva. “Houve, de fato, avanços no sentido da inclusão social através de sua implementação, justificando seu uso em nossas circunstâncias de desigualdade”, afirma o professor, ressalvado que a medida deveria ser considerada “paliativa e provisória”.

[g1_quote author_name=”Ronaldo Oliveira” author_description=”Coordenador de Ensino de Pós-Graduação da Ufba” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

As pessoas trans são extremamente marginalizadas na sociedade. Muitas não conseguem avançar no Ensino Médio ou chegam à graduação com muita dificuldade

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Foram dois ou três meses de discussões antes que a resolução fosse aprovada por uma comissão. “Ninguém questionava que deveríamos ter cotas na pós. A questão era como fazer esse processo, já que a pós é um ambiente muito heterogêneo. Existem muitas diferenças entre um programa e outro, processos seletivos variados… Não desmerecemos o trabalho pioneiro da UFG, mas não podemos deixar de observar que o caso da Ufba é mais desafiador, porque estamos inseridos em uma cidade em que 80% da população é negra”, diz o Coordenador de Ensino de Pós-graduação Ronaldo Oliveira.

Ronaldo também explica a decisão, pioneira no país,  de ampliar as cotas para transexuais. “São pessoas extremamente marginalizadas na sociedade”, diz. “Muitas não conseguem avançar no Ensino Médio ou chegam à graduação com muita dificuldade. As estatísticas mostram que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Precisamos mudar isso. A Ufba é pioneira nos estudos de gênero no país, então não poderia ser diferente”, defende.

Mestra em Cultura e Sociedade, Viviane Vergueiro, 32, não conheceu nenhuma trans, como ela, nos dois anos em que cursou o metrado na Ufba, entre 2013 e 2015. Ela comemora a implantação das cotas. “Elas não são apenas desejáveis como necessárias para que a gente, efetivamente, possa pensar em ter pessoas trans na universidade. Além de garantir o acesso, temos que criar condições,  repensar currículos com características transfóbicas…  Temos várias críticas ao que tem sido produzido sobre as comunidades trans na academia. Então, ter essas pessoas na pós-graduação, nas diferentes áreas do saber, é muito importante”, diz Viviane, que agora é candidata a uma vaga no doutorado. “Mesmo dentro dos espaços voltados aos temas LGBT, falta um debate crítico sobre as questões trans,  uma escuta mais ativa. É uma sensação de invisibilidade”.

[g1_quote author_name=”Abraão Santana” author_description=”Estudante de História, cadeirante” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Estar na universidade é muito difícil para uma pessoa com deficiência. Por isso, você vê poucas. Pelos processos de seleção, elas podem até entrar, mas permanecer é o maior problema

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O estudante de História Abraão Santana, 33, está no quarto semestre da graduação e faz planos de cursar mestrado e doutorado na Ufba. Cadeirante, tem uma doença chamada osteogênese imperfeita, que provoca fragilidade nos ossos. Com fraturas frequentes, deixou de andar aos 15 anos. Como não tem carro, vai para a faculdade de ônibus.  Ele sabe que não vai ser fácil continuar na universidade. Mesmo na graduação, já pensou em desistir. “A pós-graduação afunila cada vez mais, porque vai cobrando determinadas posturas do estudante que eles às vezes não tem condição de manter, como o conhecimento de outras línguas”.

Apesar de ver as cotas como positivas, ele defende que elas venham com medidas para garantir a permanência. “Estar na universidade é muito difícil para uma pessoa com deficiência. Por isso, você vê poucas. Pelos processos de seleção, elas podem até entrar, mas permanecer é o maior problema”, diz Abraão, que destaca a falta de elevadores e, principalmente, de um transporte específico para as pessoas com mobilidade reduzida.

Promover a permanência dos estudantes é uma preocupação dos professores. Segundo a professora Denise Carrascosa, a equipe do programa de Literatura e Cultura, inclusive, já está escrevendo uma resolução para que a distribuição de bolsas não seja feita critérios meritocráticos, mas pelas cotas. “Já estamos produzindo uma discussão dentro da universidade para que ela reconheça uma demanda dos alunos. Não adianta colocar o aluno dentro do mestrado e do doutorado sem a bolsa. Essa é outra luta em que estamos entrando a partir de agora”.

 

Thais Borges

Thais Borges é jornalista e baiana. Trabalha no Correio*, em Salvador, e gosta de escrever sobre o cotidiano.

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