Por Fernanda Baldioti | ODS 1ODS 4 • Publicada em 14 de novembro de 2018 - 13:00 • Atualizada em 29 de abril de 2020 - 19:19

Reportagem: Catarina Barbosa e Fernanda BaldiotiInfográficos: Fernando Alvarus

Por Fernanda Baldioti | ODS 1ODS 4 • Publicada em 14 de novembro de 2018 - 13:00 • Atualizada em 29 de abril de 2020 - 19:19

Reportagem: Catarina Barbosa e Fernanda BaldiotiInfográficos: Fernando Alvarus

“Quando chovia, tinha goteira por todo o lado. Faltavam carteiras e professores para ensinar. Cheguei a ver alunos armados e outros fumando na frente dos professores”, lembra a aluna Núbia Rayra Pereira, 17 anos, sobre como era a Escola Estadual Princesa Isabel, localizada em Ananindeua, região metropolitana de Belém. Com um passado como esse, é fácil entender os altos índices de distorção idade-série da unidade. Em 2007, o percentual de alunos com dois ou mais anos de atraso escolar chegava a 86%. A instituição fechou 2017 com 33,7% dos estudantes com distorção, um número ainda alto, mas que evidencia o esforço de professores e da direção na redução do indicador. A tarefa não é fácil. O Pará tem mais da metade dos estudantes do ensino médio da rede pública (51,2%) com atraso de mais de dois anos. São alunos que não vão terminar o 3º Ano com 17 anos, idade considerada adequada pelo Ministério da Educação (MEC).

Escola Estadual Antônio Teixeira Gueiros

Taxa de distorção idade-série 2017

31
31,3%

Taxa de distorção idade-série 2007

84
84,2%

Escola Estadual Princesa Isabel – Atalaia

Taxa de distorção idade-série 2017

33
33,7%

Taxa de distorção idade-série 2007

86
86,0%

Remando contra a maré, a Princesa Isabel é uma das escolas que, como mostra a série especial do #Colabora em parceria com a agência “Amazônia Real” e com o jornal “Correio”, conseguem resultados surpreendentes apesar de estarem em estados que amargam as piores colocações em determinados índices educacionais do país. Hoje, quem vai ao local, que conta com pouco mais de 900 alunos, encontra uma escola com quadra esportiva, refeitório, área verde e sistema de monitoramento de câmeras em todas as salas e também nos espaços de convivência e ao redor da instituição.

“Isso fez com que a violência dentro da escola se tornasse uma exceção, não regra. Já os casos de furto de celular cessaram, assim como os atos de vandalismo. Hoje, há fila de espera de pais para conseguir uma vaga aqui”, conta a vice-diretora, Heliana da Silva Gabriel, que acredita que a mudança no espaço físico provocou um sentimento de pertencimento nos alunos.

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Há dez anos trabalhando na unidade, que fica na violenta região do Atalaia, ela conta que chegou a fazer, junto com alunos e funcionários, manifestação nas ruas até conseguir a reforma física da escola, conquistada em 2015. Todas as ações são mantidas com recursos do Conselho Escolar, formado por professores e pais de alunos. Na Princesa Isabel, a avó de um aluno fica acompanhando a movimentação no monitor, outros pais ajudam na parte pedagógica.

“É com a verba do conselho, cerca de R$ 16 mil por ano, que a gente faz tudo. Em breve, vamos inaugurar a nossa biblioteca, que ainda não está em funcionamento, porque falta ar-condicionado. O local é tão quente, que à tarde parece um forno. Um laboratório de informática também precisa ser concluído”, afirma Heliana.

Núbia Rayra Pereira, 17 anos, aluna do 3º ano do ensino médio, sabe bem a dificuldade que é não repetir de ano diante de uma vida dura. Logo que nasceu, foi entregue para a avó porque a mãe não tinha condições de criá-la. Mas quando a avó morreu, ela foi morar com o tio. Hoje, vive com a mãe e o padrasto.

“Eu me esforço muito, porque não quero decepcionar a minha mãe. Eu e ela ouvimos dizer que essa era a melhor escola do bairro, então, eu quis vir pra cá. Lembro até que ela teve que pegar senha para que eu pudesse estudar aqui. Mas teve uma vez que um menino explodiu uma privada. Em outra, um aluno ameaçou o professor com uma arma por causa de nota para passar. O professor nunca mais voltou para a escola”, recorda ela, que entrou na escola no 7º ano.

Aluno do 3º ano do ensino médio, André Luiz Silva de Lemos, de 16 anos, também se recorda do passado difícil da escola. Na época da reforma, os estudantes foram transferidos para um centro comunitário. As salas eram divididas por telhas, e os jovens tinham aula semana sim, outra não.

“Era impossível aprender algo, porque a gente sofria com o calor. Essa escola está um paraíso perto do que era. Antes era um matagal, os ventiladores das salas só faltavam despencar nas nossas cabeças”, conta ele, que foi morar com os avós após a separação dos pais e também nunca foi reprovado.

Assim como a Princesa Isabel, a Escola Estadual Antônio Teixeira Gueiros, que também fica em Ananindeua, é outra que conseguiu a reduzir o seu índice da distorção idade-série: foi de 84,2%, em 2007, para 31,3%, em 2017. No espaço, além da falta de estrutura, a direção também teve que lidar com o tráfico de drogas e até prostituição infantil.

“Para acabar com a prostituição, eu batia de bar em bar, conversava com os proprietários, com as famílias e, quando era preciso, acionava a polícia. Hoje, os comerciantes são parceiros da escola”, afirma a diretora, Ana Carla Barbosa, que credita também à aproximação com as famílias, mais um dos componentes do milagre na redução da distorção idade-série: “Quando percebemos que um aluno tem problemas, chamamos os pais. Então, se o pai mantém o aluno aqui na escola, ele sabe que ele vai ser cobrado”.

Ana Carla explica que a escola também recebe jovens que já cometeram algum ato infracional e estão em processo de ressocialização, assim como tem alunos que moram em abrigos e são encaminhados pelo Ministério Público:

“Cerca de 75% dos alunos que cumprem medidas socioeducativas têm um bom desempenho escolar. Eu tenho ex-alunos que terminaram os estudos e hoje têm seu próprio mercadinho”, conta.

Para atrair a atenção dos estudantes, a escola passou a ofertar palestras sobre temas como trabalho escravo, tráfico de drogas e gravidez na adolescência. Alunos da Universidade Estadual do Pará (UEPA) passaram a dar reforço de português e matemática. E a diretora também combinou com os professores que 90% das atividades fossem feitas em sala de aula:

“Nossos alunos, normalmente, não têm acompanhamento em casa. Então, ele precisa aprender na escola”.

Paulo Vitor Cruz Ramos sabe bem disso. Aos 15 anos, o aluno da Princesa Isabel faz parte de um grupo que retomou os estudos por meio do projeto Mundiar, criado pela secretaria de educação do estado, em parceria com a Fundação Roberto Marinho, para reduzir a distorção idade-série. Depois de perder a mãe aos 8 anos, o menino parou de estudar. Hoje, mora com o pai e a madrasta e os dois irmãos, sendo que um deles tem necessidades especiais. Em dias de crise, Paulo chega à escola com os olhos fundos da noite mal dormida. Com esses percalços, ele deve concluir o ensino fundamental com 16 anos, idade que deveria estar cursando o fim do ensino médio.

Criado em 2014, o projeto usa a metodologia das teleaulas. Aliada a dinâmicas ativas em sala de aula, ele busca envolver os alunos por meio de atividades mais lúdicas e interativas que estimulam o debate, a troca de ideias e de informações. Para criar uma relação mais próxima com o aluno, um professor fica responsável por lecionar todas as disciplinas.

“A relação dos professores é como a de um pai com um filho”, avalia Paulo, que sonha tornar-se químico.

Coordenador do programa, Marcos Lopes defende que, para reverter o problema da distorção no estado, é preciso fazer um trabalho de conscientização de toda a rede de educação para que esses alunos não sejam vistos como atrasados, e sim como um cidadão que precisa de uma oportunidade para continuar os estudos:

“A distorção não se deve apenas a fatores educacionais, mas também é reflexo de questões econômicas. Temos alunos que precisam trabalhar muito cedo, jovens que engravidam, que enfrentam uma distância enorme da casa à escola. Ninguém está atrasado porque quer. Por isso, precisamos atuar em conjunto com outros agentes públicos para não só enxugar gelo”, diz ele, explicando que os alunos com defasagem não são obrigados a participar do projeto e que podem seguir no ensino regular, caso prefiram.

Carlos Eduardo da Silva Campos, professor do projeto, ressalta que, mesmo com uma metodologia especial, não é fácil superar os desafios e fazer com que o aluno que não tem ou nunca teve interesse pelo estudo passe a ter, ainda mais os que estão em situação de risco:

“Há pouco tempo, uma aluna saiu da escola porque o avô foi assassinado”, afirma.

Especialista em programas de aceleração de aprendizagem, Maria Amábile Mansutti, coordenadora técnica do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), explica que esses projetos são complexos porque não basta corrigir o fluxo sem garantir a aprendizagem:

“Se não, esse aluno, um pouco mais a frente, cai de novo, e pior, pode acabar abandonando a escola. Por isso, é preciso trabalhar com um acompanhamento refinado, com avaliações constantes”.

Pró-reitor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro da Academia Brasileira de Educação, Antônio Freitas defende que o combate à repetência é importante porque “além de desmotivar o aluno, eventualmente o professor, há um custo enorme para o estado”:

“Por causa de duas disciplinas, o aluno repete o ano todo. É ineficiente e propicia o abandono, e pior, a evasão, que é quando ele não retorna à sala de aula no ano seguinte. Não podemos nos dar o luxo de ter milhões de alunos fora da escola. Eles têm que adquirir uma profissão, para poderem ter renda no futuro”.

Fernanda Baldioti

Jornalista, com mestrado em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), trabalhou nos jornais O Globo e Extra e foi estagiária da rádio CBN. Há mais de dez anos trabalha com foco em internet. Foi editora-assistente do site da Revista Ela, d'O Globo, onde se especializou nas áreas de moda, beleza, gastronomia, decoração e comportamento. Também atuou em outras editorias do jornal cobrindo política, economia, esportes e cidade.

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