Quem pensa que só a política está polarizada está enganado. No Rio de Janeiro, polos opostos dividem o entretenimento, mais especificamente, o cenário das festas. Com a alta da inflação, as tradicionais casas noturnas cariocas aumentaram consideravelmente seus preços, tanto das entradas como de suas bebidas e comidas. A elitização desses espaços, que já não eram vistos como “baratos”, levou a uma debandada de jovens de classe média e média alta para locais alternativos, públicos e abertos, outrora abandonados e marginalizados. A cultura da festa de rua, apelidada informalmente de “festa horizontal”, vem atingindo seu auge.
[g1_quote author_name=”Rodrigo Penna” author_description=”diretor do Coletivo Rádio Rua” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A rua é um palco livre, não tem barreiras e nem distinção de público. Vai quem quer, fica quem gosta
[/g1_quote]Despidos de preconceitos, os eventos gratuitos tem ajudado a miscigenar a juventude carioca, independentemente de cor, orientação sexual ou renda. A nova onda “horizontalizou” a night carioca, derrubando hierarquias e colocando frente a frente pessoas que, muito provavelmente, não teriam a chance de se conhecer e de trocar ideias.
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Veja o que já enviamosAntigos locais, por ora até estigmatizados por grande parte da população fluminense, viraram points. Espaços como a Rua do Ouvidor e o bar Porto Pirata, na Vila Mimosa, ambos localizados no centro do Rio, abrigam grande parte das novas nights, que mesclam diferentes tipos e vertentes de música.
Rodrigo Penna, de 38 anos, é diretor do coletivo Rádio Rua (iniciado em 2009), que tem como objetivo principal a ocupação dos espaços públicos. Do movimento, nasceram duas das mais famosas festas gratuitas da atualidade carioca: a La Cumbia (que toca ritmos latinos) e a Bless (especializada em ritmos jamaicanos), ambas coordenadas por Penna. A Cumbia vai fazer dois anos de existência e, desde sua primeira edição, já foi um sucesso. “Tanto a Cumbia quanto a Bless são tentativas de tentar amplificar determinadas culturas, que não são muito conhecidas e difundidas no país. A rua é um palco livre, não tem barreiras e nem distinção de público. Vai quem quer, fica quem gosta”, observa Penna. “E as festas não são só voltadas para o entretenimento. Elas promovem recortes culturais, são bem diferentes dos eventos que reproduzem um repertório mais FM” , afirma Penna, numa clara referência aos eventos fechados, batizados pela juventude de “verticais”.
[g1_quote author_name=”Vinícios Tesfon” author_description=”Produtor da Manie Dansante” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]No início, nosso foco não era as festas de rua, mas fomos percebendo o quão enriquecedor era esse tipo de evento, não só por ser de graça e em espaços abertos, mas porque também rolava uma interação com moradores de rua, ambulantes, crianças
[/g1_quote]Com um estilo totalmente diferente, mas seguindo o conceito da festa de rua, a Manie Dansante tem levado muito eletro swing, new jazz e eletro blues para o asfalto carioca. Vinícius Tesfon, de 29 anos, e Andrei Yurievitch, de 30, tocam o projeto que, no princípio, tinha uma proposta diferente. “No início, nosso foco não era as festas de rua, mas fomos percebendo o quão enriquecedor era esse tipo de evento, não só por serem de graça e em espaços abertos, mas porque também rolava uma interação com as pessoas que frequentavam aqueles locais, como moradores de rua, ambulantes, crianças”, ressalta Tesfon, escocês que veio com apenas seis meses de idade para o Brasil. “Tem um cunho social fazer evento na rua”, afirma ele, sem disfarçar o orgulho.
Para além do encarecimento dos redutos tradicionais de festas no Rio, há a predileção do morador do Rio de Janeiro pelo selo “de graça”. “Carioca não gosta de pagar para entrar nos lugares, vem muito da cultura de praia. A festa de rua apresenta uma efervescência cultural, tem um viés integrador. É a ideia de todo mundo em lugares que antes estariam vazios, desocupados”, analisa Tesfon. Ele aponta outra vantagem: “O próprio preenchimento desses espaços ajuda, não só na movimentação do comércio, mas na segurança desses locais, antes abandonados ou desertos ”.
Festas nas ruas sempre existiram, mas eram pontuais. Yurievitch relembra, saudoso, a festa “embrionária” dos eventos gratuitos, a Nuvem Móvel: “A galera fez um crowdfunding e montou um soundsystem em bicicletas e fazia uma festa itinerante. A partir daí, várias festas de espaços fechados começaram a fazer edições de rua. A Manie faz edições nesse estilo sempre que o caixa permite. É uma forma de agradecer e retribuir a galera que nos apoia”.
Como não poderia deixar de ser, o principal estilo musical do Rio de janeiro não ficou de fora do movimento. Goranmo, Luquinhas, Edson, Jimmy e Cochi são os responsáveis pelo Baile do Ademar, que toca, além de funk, outros estilos de black music (como hip hop e charme). “Nossa festa começou em 2009, em um ponto de encontro da galera do skate, que estava carente de um local para praticar o esporte. A regulamentação de um espaço na Praça XV, conquistada pelo coletivo I Love XV, permitiu que fizéssemos o Baile do Ademar lá”, conta Goranmo, de 34 anos, Dj e idealizador do baile. “Não é só diversão, mas cultura urbana, skate, grafite, dança e ações sociais, como arrecadação de peças usadas de skate, manutenção da escolinha de skate local e donativos para os mais necessitados”, afirma ele. O DJ faz questão de ressaltar que a festa é inteiramente independente, sem qualquer tipo de financiamento de autoridades ou grandes marcas privadas: “É realizada na base do empenho e luta dos organizadores”
Embora não dependa do poder público, Goranmo torce para que as autoridades competentes incentivem a cultura “no asfalto”. “A festa na rua ajuda a encurtar esse abismo social em que vivemos em nosso país ”, acredita. “Esperamos que as autoridades enxerguem a necessidade de facilitar o acesso à cultura para a população, criando mecanismos para a desburocratização e meios de incentivo aos movimentos culturais e artísticos sérios”, afirma.
O Baile CLAPS, organizado pelos Djs Raoni MouChoque e Leandro Baré (juntos, eles formam a dupla Ritmo de Favela), também segue pelo caminho do funk. Residentes da famosa festa “Eu Amo Baile Funk”, a dupla só foi estrear na rua na quinta edição da CLAPS, quando montaram suas picapes ao lado do bar Porto Pirata, na Vila Mimosa. “Fazer baile na rua é ótimo, mas não é fácil. O ponto mais posivito que eu vejo é a questão de revitalizar os espaços, levar lazer, cultura e diversão gratuita, interagir com os moradores e artistas locais, fomentar e movimentar a economia de lá, gerar renda e trabalho”, pontua Raoni. (veja fotogaleria das festas abaixo)
Quanto custa para não ter custo?
A rua é pública e o som também, mas para fazer uma festa de rua é preciso apoio financeiro. A implementação de um “bar oficial” da festa, cujo lucro reverte diretamente para a manutenção do evento, é adotada por quase todos os produtores de baladas gratuitas. No caso da Manie Dansante, La Cumbia e Bless, os eventos fechados contribuem para os abertos, com o dinheiro da bilheteria sendo utilizado para a realização das festas gratuitas. Outras formas de arrecadação são a Vakinha Virtual (crowdfunding) e o patrocínio de pequenos empresários. Vale até passar o chapéu pedindo a contribuição dos frequentadores.
“Tem o aluguel de som, transporte, eletricista, montador… No caso da CLAPS, eu ainda chamo duas pessoas para fotografarem, duas pra filmarem. Além disso, tem o pessoal que vende hambúrguer, drinks, a galera que corta o cabelo… São as partes mais complicadas: arrecadar dinheiro e conseguir autorização”, afirma Raoni.
Citado como problema entre todos os entrevistados, a autorização para realizar as festas em espaço público ainda carrega o pesado complicador da burocracia. Só a autorização da polícia pode demorar 40 dias, afirma Tesfon. “Teríamos capacidade de organizar o evento em uma semana, mas não conseguimos devido à morosidade do processo. São diversas instâncias que não se comunicam: Prefeitura, PM, Corpo de Bombeiros”, queixa-se ele.
A Radio Rua já não tem tantos problemas quanto a isso. Os organizadores tem a chancela da Prefeitura do Rio, devido a um edital do qual participaram. “Temos feito muitas coisas em parceria com os comerciantes locais, que já tem toda a estrutura e o trato com o governo de uma forma geral, o que já ajuda na hora de conseguir a autorização ”, diz Penna.
E a galera?
Ana Carolina Andreatta, de 20 anos, estudante do Instituto de Economia da UFRJ, costumava frequentar as nights fechadas do Rio. Com a subida de preços, as festas gratuitas se tornaram uma alternativa viável e com um estilo diferente. “Acho que a principal diferença é a vibe. Festa na rua passa uma energia muito mais receptiva do que festa fechada. O fato de não ter que pagar traz pessoas de todos os lugares e eu, pelo menos, acho isso muito mais interessante do que as festas fechadas, onde se vêem sempre os mesmos rostos”, observa.
Para a advogada Rafaelle Barros, de 28 anos, a onda de festas “0800” é, de certa forma, inédita. “A cultura de rua sempre foi forte no Rio, mas não em relação a festas. Esse movimento crescente só tem a somar à cena carioca. Não me lembro de ocasiões no passado em que tivéssemos tantas opções de nights gratuitas. São festas democráticas que unem diversas galeras diferentes com o mesmo intuito: se divertir sem ter que pagar uma fortuna só para estar dentro de um lugar”.
Democráticas, inclusivas, mas nem sempre sustentáveis. Nas festas de rua, a quantidade de banheiros químicos não dá vazão, isso quando eles estão presentes. Na Rua do Ouvidor e na Vila Mimosa, os organizadores fecharam parcerias com os bares locais para a utilização dos banheiros. Em casos de urgência, infelizmente, a rua acaba sendo a opção, apesar de a legislação do Rio prever multa de R$ 510 para punir tal comportamento . Locais para o descarte do lixo também deixam a desejar. O fato de o evento ser na rua faz com que a maioria dos presentes não tenham a preocupação de procurar uma lixeira, o que contribui para as avenidas ficarem ainda mais sujas. Catadores de latinha fazem as vezes de garis, recolhendo as embalagens deixadas pelo caminho. Na Vila Mimosa, além da falta de lixeiras, os vazamentos de esgoto também prejudicam a festa.