Longa viagem em direção à mobilidade

Legado olímpico na área de transportes ainda reserva dúvidas para o futuro

Por Aydano André Motta | Mobilidade UrbanaODS 16Rio 2016 • Publicada em 14 de julho de 2016 - 08:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:00

Os BRTs chegam às Olimpíadas funcionando em três corredores: o Transoeste, o Transcarioca e o Transolímpica
Os BRTs chegam às Olimpíadas funcionando em três corredores: o Transoeste, o Transcarioca e o Transolímpica
Os BRTs chegam às Olimpíadas funcionando em três corredores: o Transoeste, o Transcarioca e o Transolímpica

O sol ainda ilumina com sua luz enviesada as montanhas cobertas de Mata Atlântica, quando Sheila Cristina da Conceição Braga chega à estação Mato Alto do BRT Transoeste para sua segunda condução do dia. Passa um pouco de 7h, e a empregada doméstica conta uma batalha vencida no desafio diário de chegar ao trabalho. Ela acaba de desembarcar do 866 (Pedra de Guaratiba-Campo Grande) apinhado, após quase uma hora de espera no ponto. “Agora, vem a parte fácil”, prevê, à porta do ônibus articulado, joia da coroa do sistema de transporte do Rio.

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Há décadas o planejamento de transporte tradicional tem sido centrado na melhoria das condições para os automóveis particulares às custas de transportes públicos, calçadas seguras e agradáveis e redes cicloviárias.

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Sheila mora em Guaratiba, trabalha no Novo Leblon, na Barra, e serve de exemplo para a odisseia carioca em direção à mobilidade urbana. Usa diariamente o BRT (Bus Rapid Transit, ou Transporte Rápido por Ônibus) Transoeste, como outros 230 mil moradores daquele imenso pedaço da cidade. “Às vezes, demoro mais tempo no ponto do que no BRT. Certo seria pegar o alimentador (ônibus que leva ao corredor expresso), mas ou passa lotado ou o motorista não para”, relata a empregada. “Aí, tem de ser o 866 ou a van, que custa mais R$ 3,50”.

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Sheila Cristina da Conceição ao final da sua viagem diária de Guaratiba, onde mora, até o seu trabalho, na Barra da Tijuca

E olha que podia ser pior. O povo que sai de Bangu cumpre jornada mais longa e desconfortável até a Estação Mato Alto, para de lá chegar à Barra. Funciona mesmo para os passageiros que embarcam em Santa Cruz e fazem uma viagem só. “A baldeação é que mata”, constata Sheila, que reclama do terminal onde pega o BRT, “sem banheiro nem cobertura para esperar”. “Eu preferia no tempo do 853, do 883 e do 854, que me deixavam na direto na Barra”.

Noves fora o conservadorismo decorrente da rotina, a empregada desfia reclamações pertinentes – tanto que a Secretaria Municipal de Transportes planeja ajustar o BRT da região. Estão previstos a ampliação estrutural da estação Magarça, a construção dos terminais para as linhas alimentadoras junto à estação Mato Alto (reivindicadas pela passageira) e o aumento do terminal de Santa Cruz, com mais posições para ônibus e espaço para os passageiros. Além da construção de um novo terminal, chamado Curral Falso.

Haverá ainda a integração com a estação Jardim Oceânico, da Linha 4 do metrô, através do Lote Zero, ampliação do BRT Transoeste a partir do Terminal Alvorada. Serão oito estações distribuídas em seis quilômetros, e o plano de reduzir à metade o tempo de viagem, com a circulação estimada de 30 mil passageiros nos horários de pico somente naquele trecho.

Alívio para um serviço que, em apenas quatro anos de funcionamento, causou algumas decepções, a maioria decorrente do padrão da obra. O desgaste dos veículos provocado pela pavimentação em asfalto, de qualidade inferior ao concreto, resultou numa frota operante menor do que a necessária, turbinando a superlotação. Ainda em abril do ano passado, o ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento) apontava, num relatório, a necessidade das mudanças agora previstas pela Secretaria. “O Rio apresenta uma desigualdade territorial acentuada, particularmente na região atendida pelo corredor. A extrema Zona Oeste concentra moradia, mas carece de empregos. A maioria de seus moradores se utiliza do sistema de transporte público para acessar as longínquas oportunidades da cidade, tornando o BRT Transoeste extremamente pendular”, diagnostica o documento.

Diretora-executiva do ITDP, Clarisse Linke oferece números para comprovar o retrato. O corredor serve uma região distante 50 quilômetros do Centro, endereço da maioria das oportunidades de trabalho. “A Zona Oeste tem 27% da moradia do município e 8% de emprego. O Centro, 38% de emprego e 4% de moradia. A maior parte dos empreendimentos do Minha Casa Minha Vida se deu na Zona Oeste, por decisão das construtoras que usaram terra de valor mais baixo. Isso é uma loucura – estamos produzindo habitação onde tem pouco de cidade!”, alerta. “Ou seja, implantar transporte sozinho não dará conta dos problemas, das desigualdades territoriais. Falta planejamento integrado: rever uso e ocupação do solo, pensar em mobilidade, emprego e moradia de forma indissociável. Na Zona Oeste, nem trem-bala resolveria”.

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Os sistemas de trilhos têm uma história centenária, que remonta a uma época em que o custo de desapropriação fundiária não era tão expressivo. Devido à valorização dos terrenos e ao seu maior custo de implantação, a expansão dos trilhos foi contida na segunda metade do século XX.

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Orgulho maior – e bibelô eleitoral – do prefeito Eduardo Paes, os BRTs chegam às Olimpíadas funcionando em três corredores, prometidos no Plano de Políticas Públicas para os Jogos. Inaugurado em 2012, o Transoeste espalha 57 estações por 52 quilômetros, de Santa Cruz ao Terminal Alvorada, na Barra; o Transcarioca entrou em operação às vésperas da Copa do Mundo de 2014, e vai do Alvorada ao Aeroporto Internacional Tom Jobim, trajeto de 39 quilômetros, 47 estações e cinco terminais, para benefício de 230 mil passageiros, distribuídos por 27 bairros; por fim, o Transolímpica, ligação da Barra a Deodoro (onde também haverá competições).

Um dia, no futuro, este último corredor ostentará 18 estações e três terminais em funcionamento – mas na temporada olímpica haverá somente três paradas possíveis, nos terminais do Recreio e Parque Olímpico da Barra e na estação de Magalhães Bastos. (Ao lado do Transolímpica corre uma via expressa – daí o nome no feminino – que terá cobrança de pedágio.) Quando estiverem operando completamente, os três corredores responderão pelo vaivém de aproximadamente meio milhão de pessoas por dia.

No caso carioca, a estrela da companhia viverá ainda mais um pouco no amanhã. Os responsáveis pelo setor de transportes na administração municipal apostam todas as fichas no quarto BRT, o Transbrasil, a ser inaugurado, segundo as previsões, em 2017. Investimento extra que a Prefeitura carioca realiza a reboque das melhorias olímpicas, o corredor emergirá das obras que há anos sufocam o trânsito da Avenida Brasil, principal acesso rodoviário da Zona Norte ao Centro. O BRT caçula atravessará o subúrbio, a partir de Deodoro, e será capaz de levar 820 mil pessoas por dia, materializando o total de 1,4 milhão de passageiros a cada 24 horas no novo sistema.

Os corredores rodoviários expressos foram a opção possível, numa cidade e num país que perdeu a oportunidade, mais de meio século atrás, de optar pelo transporte ferroviário. Na comparação com Nova York, Londres, Paris e Tóquio, o Rio e as outras metrópoles brasileiras terão de conviver para sempre com o aforismo do Capitão Nascimento (de “Tropa de elite”): “Nunca serão”. Obras para implantação de trens urbanos e metrô tornaram-se inviáveis, por caras e complicadas demais – e a penosa construção da Linha 4, que levou o metrô até a Barra, serve de referendo.

“Os sistemas de trilhos têm uma história centenária, que remonta a uma época em que o custo de desapropriação fundiária não era tão expressivo. Devido à valorização dos terrenos e ao seu maior custo de implantação, a expansão dos trilhos foi contida na segunda metade do século XX, sendo retomada a partir dos anos 1990, sobretudo em cidades asiáticas (particularmente as chinesas)”, ratifica Suzy Balloussier, diretora de Relações Institucionais do BRT Rio.

De seu lado, a Prefeitura defende a estratégia com números. Em 2009, apenas 18% da população eram atendidos por transportes de massa e de alta capacidade, até então restritos a trem e metrô. A partir de 2017, 63% dos cariocas poderão embarcar nessa viagem. Dos 160 bairros da cidade, 107 foram contemplados pelos investimentos no setor, em oito anos. Espera-se uma redução nos impactos do transporte sobre o meio ambiente. (Aliás, quando estiver em funcionamento, o Transbrasil carregará má notícia aos amantes dos automóveis: eles estarão confinados a apenas duas pistas centrais da Avenida Brasil. Menos espaço para o transporte individual.)

Pode ser – mas o passivo continua grande. O ITDP concentra o olhar nas regiões metropolitanas brasileiras, onde prosperam os maiores dramas da mobilidade. Nas grandes cidades moram mazelas como o maior tempo de deslocamento casa-trabalho – piorando a vida de gente como Sheila, a empregada lá do início – e níveis mais agudos de emissões e congestionamentos. As situações mais críticas, por óbvio, verificam-se em São Paulo e Rio, cenários de engarrafamentos apocalípticos. O Ipea aferiu, em 2009, que as viagens para o trabalho nas regiões metropolitanas das duas capitais demoravam 31% a mais, comparadas a outras grandes cidades do país.

No caso carioca, a Prefeitura implementou outras medidas, entre elas os BRS, sigla para Bus Rapid Service, ou Serviço Rápido de Ônibus – como se vê, o cacoete dos anglicismos segue mais forte do que qualquer congestionamento. São faixas exclusivas nas principais ruas, por onde só podem trafegar ônibus, táxis com passageiros e transporte escolar. As paradas receberam novo ordenamento (BRS 1, 2, 3, 4 ou 5), para evitar o acúmulo de veículos num mesmo ponto, criando filas duplas e triplas. Ao todo, o Rio possui 17 faixas preferenciais, instaladas em 54 quilômetros de extensão – seis na Zona Sul, quatro no Centro e sete na Zona Norte. Quase metade da frota passa por alguma faixa preferencial, atingindo redução média no tempo das viagens de 21%.

Seja qual for a sigla, um problema mais longevo – e carioca como a Mangueira, o Flamengo e a Floresta da Tijuca – continua torturando a população: o serviço ruim, consequência da baixa qualidade da mão de obra. Os motoristas que não sabem o caminho, não param nos pontos, dirigem de maneira perigosa etc. “É uma das questões críticas”, reconhece Suzi Balloussier. “Temos conseguido minimizar os problemas nos ônibus articulados, com salários maiores e distância do trânsito banalizado. Nas linhas alimentadoras, os ônibus ainda sofrem com a concorrência de outros veículos. Por isso, defendemos a criação de BRS para essas linhas, de modo a ganhar maior fluência”.

Aos esperançosos, um alento. A Prefeitura detectou melhora nos dados registrados na central 1746, de reclamações da população. Entre 2013 e 2015, houve redução de 38% no número de queixas sobre o sistema de ônibus do Rio de Janeiro. A principal delas – motoristas que não param no ponto – caiu 54% no mesmo período.

E os pecados estão, garante a Secretaria de Transportes, doendo no bolso dos donos das empresas de ônibus. De 2010 a dezembro de 2015, foram aplicadas 33.867 multas disciplinares aos quatro consórcios operadores do sistema (Internorte, Intersul, Santa Cruz e Transcarioca) por infrações ao Código Disciplinar dos Ônibus. O total do castigo formou uma montanha de dinheiro: R$ 23.195.811,96.

Suzi Balloussier lembra ainda que os motoristas de ônibus não são diferentes dos particulares, e ainda acabam mais exigidos em horas de direção num trânsito estressante. “A verdade é que o ambiente em que convivemos, nossa cultura urbana, não é muito amigável”, admite, lembrando o assustador número de 40 mil mortes no trânsito registradas no Brasil.

O Rio tem a maior malha cicloviária da América Latina, que deve chegar a 450 quilômetros até o fim do ano

O estresse se alimenta do excesso de carros na rua – e aqui, não há legado olímpico que resolva. A frota de automóveis particulares aumenta rapidamente nos grandes centros urbanos, e em breve atingirá níveis próximos aos países desenvolvidos, afere o ITDP. “Há décadas o planejamento de transporte tradicional tem sido centrado na melhoria das condições para os automóveis particulares às custas de transportes públicos, calçadas seguras e agradáveis e redes cicloviárias”, analisa Clarisse Linke. “No entanto, dados de 2013 da Associação Nacional de Transportes Públicos apontam que na divisão modal, a maioria das pessoas anda a pé para seu trabalho. Aumentar o uso de bicicletas e da facilidade de caminhar está entre as formas mais eficientes para contribuir na redução de emissões de CO2, além de aumentar o acesso a oportunidades econômicas para parcelas da população em condições de vulnerabilidade social”.

O Rio tem a maior malha cicloviária da América Latina, que deve chegar a 450 quilômetros até o fim do ano, mas ainda falta adestrar motoristas de carros e ônibus a respeitar os ciclistas. De qualquer jeito, dados oficiais do PMUS (Plano de Mobilidade Urbana Sustentável) mostram que, em 2015, foram 128.230 deslocamentos feitos diariamente no Rio por bicicleta – ou 2.821.060 viagens nos 22 dias úteis do mês.

A diretora do ITDP enxerga um paradoxo na estratégia carioca, simbolizado pelo Túnel Marcello Alencar, uma das principais obras da renascida Região Portuária da cidade. “Uma Perimetral subterrânea”, compara ela, numa referência ao viaduto horroroso, derrubado para as melhorias na área antes degradada. Clarisse defende a criação de desestímulos ao uso do carro, como cobranças pela circulação no Centro, semelhante ao implementado em Londres.

Há uma diferença preciosa na vida pós-Perimetral: a orla que a cidade ganhou para caminhadas. Uma vista esquecida, da origem do Rio, ressurgiu numa linda alameda e na Praça Mauá repaginada. Ao lado, passa o mágico VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), o trenzinho silencioso que atravessa o Centro até o aeroporto Santos Dumont, de novo à beira da Baía.

Podia ser melhor, aponta Clarisse Linke, ao criticar a substituição do Centro pela Barra como “capital” das Olimpíadas de 2016. “Poderíamos ter como legado propostas mais reais de trazer habitação de interesse social ao Porto, atraindo mais gente para viver próximo ao emprego”, observa. “A parte mais necessitada da região metropolitana não se beneficiou”, lamenta ela.

“Precisamos de ainda mais pressão para os diferentes níveis de governos serem mais céleres e eficientes no planejamento, diálogo com a população para detectar demandas, elaboração de projetos, identificação de fontes de financiamento, execução de projetos de qualidade e monitoramento”, lista Clarisse. “Precisamos criar um ciclo virtuoso para o uso do transporte público”, arremata, para mostrar que a viagem carioca em direção ao olimpo da mobilidade urbana ainda está longe do fim.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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Um comentário em “Longa viagem em direção à mobilidade

  1. Eduardo Perrone disse:

    Parabéns, Aydano, pelo excelente texto, ao qual tive acesso por conta da replicação de Gilberto Scofield, em sua página pessoal do Face.

    Eu concordo com cada linha tua, e as avalizo , baseado em minha experiência pretérita como profissional do setor Ferroviário.

    Infelizmente você está coberto de razão: Perdemos o “trem da história”…

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