Há algumas semanas, ao me preparar para um evento em São Paulo sobre mobilidade urbana, me deparei com a seguinte pergunta: “Existe espaço para mais carros na cidade?”.
Fiquei surpresa com a pergunta, pois normalmente me perguntam se há espaço para bicicletas, jamais para carros. O espaço para carros muitas vezes é percebido como direito adquirido dos seus donos. Já no caso das bicicletas, o questionamento é comum visto que muitas das principais ruas em nossas cidades já contam com tráfego pesado e incluir a bicicleta no tecido viário, ao reduzir o espaço para carros, aumentaria o congestionamento. Neste caso, via de regra, digo que a resposta não é de cunho técnico. Tecnicamente, temos espaço para o que quisermos. A decisão sobre a destinação deste espaço, no entanto, é absolutamente política: o que queremos que caiba e para quem será dada prioridade? O mesmo se aplica para a reflexão se há espaço para carros.
Nos últimos 60 anos, planejadores urbanos e engenheiros deram total prioridade à construção de infraestrutura para automóveis particulares nas cidades brasileiras. A massa crítica em torno das externalidades deste modelo de urbanização só começou a se consolidar formando uma reação em cadeia nos últimos anos. São muitos os impactos negativos causados pelo excesso de carros na cidade.
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Veja o que já enviamos- A poluição do ar é responsável por mais de 3 milhões de mortes prematuras no mundo todos os anos. Segundo o terceiro Relatório Global sobre a poluição urbana, lançado recentemente pela Organização Mundial de Saúde, as cidades brasileiras já ultrapassam níveis recomendados de qualidade do ar.
- Os acidentes de trânsito também contribuem para este cenário desolador em termos de saúde pública. Segundo o IPEA, o custo dos acidentes é de R$ 40 bilhões ao ano. Estudos já comprovam que colisões entre pedestres ou ciclistas e veículos motorizados acima de 60 km/h resultam em morte certa. No entanto, esta é a velocidade permitida na maioria das cidades brasileiras, fazendo do Brasil o quinto país no mundo em mortes por acidentes no trânsito.
- O transporte individual motorizado também é um dos grandes vilões no que tange o processo de aquecimento global e mudanças climáticas. Para atingirmos as metas ambiciosas de abatimento na emissão de gases de efeito estufa comprometidas pelo governo brasileiro em Paris (37% até 2025 e 43% até 2030), precisamos efetivamente migrar para um modo de deslocamento de baixo carbono.
- Além disso, vale lembrar que os congestionamentos causam grande impacto econômico na cidade. A FIRJAN estimou que a Região Metropolitana do Rio de Janeiro perdeu R$ 29 bilhões no ano de 2013 devido aos congestionamentos.
- Por fim, temos o impacto no espaço público. Com o aumento dos carros nas ruas, a disputa pelo espaço público se acirrou, e o carro é quem mais tem vencido este embate. Obviamente, em termos de deslocamento, o pedestre é quem ocupa menos espaço. Seguido pelo ciclista e dos passageiros de ônibus. Ou seja, um passageiro em um ônibus com ocupação ideal ocupa o mesmo espaço que um ciclista. Os passageiros em um carro cheio, com 5 pessoas, infelizmente situação rara no nosso mar de carros, ocupam 25 vezes mais espaço do que um pedestre. Já uma pessoa em um carro, como vemos diariamente nas ruas, com menos de 2 pessoas, ocupa 15 vezes mais do que um passageiro de ônibus ou um ciclista e 75 vezes mais espaço do que um pedestre.
A forma como usamos o carro é uma das formas mais radicais de privatização do espaço público que permitimos ao indivíduo fazer diariamente.
Indo na contramão desta privatização permissiva do espaço, estão experiências em diversas cidades do mundo que buscam retirar o espaço do carro. Enquanto nós estamos aqui começando a discussão, os europeus já estão há mais de uma década discutindo o impacto da redução de espaço para carros e a retomada do uso das ruas para pedestres, ciclistas e usuários de transporte público.
Um estudo da Comunidade Européia Reclaiming city streets for people Chaos or quality of life? explora casos de oito cidades na Finlândia, Inglaterra, Alemanha, França e Bélgica, que podem ser somados aos casos da pedestrianização da Broadway, em Nova Iorque e de Cheonggyecheon, em Seoul, na Coréia do Sul. O que há de comum em todas estas experiências?
Em todos os casos, para lidar com o congestionamento foi retirado espaço do carro (seja para circulação ou de estacionamento), destinando-o aos usuários de transportes ativos e transporte coletivos. E em todos houve o fenômeno chamado de “evaporação do tráfego”. Ou seja, diminuindo a capacidade dentro do sistema viário, o trânsito de automóveis em geral diminuiu.
Este fenômeno é exatamente o inverso da prática default dos engenheiros de tráfego e planejadores urbanos: para lidar com congestionamento, aumenta-se a capacidade viária, aumentando por sua vez a demanda, o que chamamos de “demanda induzida”.
O que estes estudos mostram é que quando há mudança na oferta, os motoristas efetivamente mudam suas viagens. E estas mudanças nem sempre são previstas nas modelagens, nas fases de planejamento, que capturam somente o mais óbvio: os motoristas vão buscar uma rota alternativa na mesma área (ruas paralelas, por exemplo) ou farão viagens específicas em outros horários. Ficam de fora das modelagens a mudança de modal por parte dos motoristas, a otimização de viagens e a revisão da necessidade em si da viagem. Ou seja, as modelagens não capturam a complexidade na tomada de decisão a respeito da viagem, tampouco a capacidade de adaptação dos indivíduos, limitando-se a achar que a mudança não será possível.
Um estudo feito pela University College London mostrou que estratégias para redução do uso do carro em Londres, com foco em 62 trechos reduziu em 22% o tráfego no entorno. Copenhagen, bastante avançada desde 1960, reestruturou seu centro histórico em uma área total de 96 mil m2, fazendo com que hoje, 80% das viagens sejam a pé e 14%, de bicicleta. Estas reestruturações incluíram medidas restritivas ao uso de automóvel, como:
- Limitação de vagas nas ruas
- Custo alto de estacionamento nas vias
- Redução de faixas de rolamento nas principais vias
- Faixas exclusivas para ônibus
- Restrição à circulação em áreas específicas
- Investimento em transporte público
- Investimento em infraestruturas cicloviárias
No Brasil, nossa discussão é ainda incipiente, e o direito entendido como adquirido pelos usuários de carro permanece salvaguardado. Em São Paulo, as políticas de desestímulo ao uso do carro são constantemente questionadas pela mídia e por profissionais que ainda acreditam que a prioridade dos investimentos deva ser em obras para carros. Nesta semana, o debate gira em torno dos calçadões no centro de SP que agora serão vetados para carros.
O prefeito Fernando Haddad, no entanto, avança com afinco implementando medidas que reduzem o espaço destinado ao automóvel, revertendo-o para pedestres, ciclistas e usuários de transporte público.
O resultado imediato? A cidade caiu de 7ª para 58ª posição no ranking mundial de congestionamentos, atrás de Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Fortaleza. A rede cicloviária da cidade continua sendo ampliada, com meta de 400km até o final de 2016. Dados divulgados esta semana demonstram que a cidade teve 66% de aumento de ciclistas e redução de 34% nas mortes (veja aqui o relatório do ITDP com análise técnica e recomendações). A redução de velocidade nas marginais Tietê e Pinheiros também resultou na redução do número de mortes em 32,8%.
As faixas exclusivas para ônibus têm sido ponto chave da política de mobilidade urbana do prefeito, e estima-se que já resultam numa redução de quatro horas por semana nas viagens dos passageiros entre casa e trabalho. A estrutura segregada para ônibus melhora consideravelmente a operação do sistema de transportes coletivos, com aumento de velocidade e frequência. Além disso, estudos demonstram que há redução significativa no consumo de combustível e na emissão de poluentes.
A batalha do Prefeito Haddad não é uma batalha técnica – é simbólica. Por trás das decisões de Haddad, está um político que aceitou o papel de liderança na mudança de paradigma sobre a mobilidade urbana. Um político que aceitou questionar o status quo que entende o espaço no tecido urbano como direito adquirido dos donos de carro. Um político que acredita que é preciso travar esta batalha para promover uma cidade mais limpa, de baixo carbono, mais segura, com espaço distribuído de forma justa.
Avançamos, assim, numa nova forma de qualificar “cidade eficiente”. Uma forma mais humana, bem diferente da eficiência da cidade máquina, fluída e veloz proposta pelos modernistas. No fim desta batalha, reconquistaremos nossas ruas, nosso espaço, nosso ar, nosso tempo. Isso, sim, é eficiência.
A matéria é mais que pertinente pelo impacto negativo da politica de fomento ao uso de transporte individual adotada no país, que gera reflexos sobre a qualidade de vida coletiva. É muito importante trazer este tema ao debate, fazendo-o com a riqueza de dados exposta.