Ser mãe e universitária é padecer na ilha do Fundão

Com mais de 30 mil alunos, maior campus da UFRJ tem uma única creche e apenas um fraldário

Por Barbara Lopes | ODS 1ODS 2 • Publicada em 11 de maio de 2019 - 15:51 • Atualizada em 5 de junho de 2019 - 03:30

Faculdade de Letras da Ilha do Fundão tem o único fraldário do campus com mais de 30 mil alunos (Foto Bárbara Lopes)
Faculdade de Letras da Ilha do Fundão tem o único fraldário do campus com mais de 30 mil alunos (Foto Bárbara Lopes)
Faculdade de Letras da Ilha do Fundão tem o único fraldário do campus da UFRJ com mais de 30 mil alunos (Foto Barbara Lopes)

Muitas mulheres têm o sonho de ser mãe, outras o de cursar a universidade. Algumas realizam ambos ao mesmo tempo – e, em conjunto, esses sonhos acabam não sendo tão doces assim. Com poucas políticas para criação de medidas assistenciais ou espaços parentais na universidade, alunos com filhos pequenos precisam se desdobrar para dar conta de suas obrigações escolares e familiares. Geralmente são as mães que carregam o peso maior nessa divisão de responsabilidades. No principal campus – na Ilha do Fundão – da maior universidade do país, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, há apenas um fraldário, inaugurado no ano passado, e uma única creche, apesar de estarem matriculados ali mais de 30 mil alunos.

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Ano passado fiz uma pesquisa sobre planejamento urbano e o tema foi ‘O Direito da Mulher Mãe à Cidade’. Entrevistei outras mães, muitas que nem ao menos conseguiram entrar na universidade por não conseguirem estudar e conciliar com a maternidade

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Aluna do 8º período de licenciatura em Geografia na UFRJ, e mãe das gêmeas Lorena e Valentina, de 9 anos, e Elis, 7, Mithaly Corrêa, é uma das criadoras do grupo Mães da UFRJ, um coletivo criado para as mães conseguirem dar assistência umas às outras e lutarem juntas por mais direitos na universidade. Em 2010, a aluna cursava Jornalismo na PUC através de bolsa do PROUNI (Programa Universidade para Todos), mas quando ficou grávida teve de abandonar o curso. Em 2013, tentou voltar à Universidade, dessa vez no curso de Geografia, na UFRJ. Suas gêmeas estavam com 2 anos e a filha menor com 6 meses; o curso era em horário integral. Acabou tendo de abandonar novamente o sonho da universidade. Voltou para a UFRJ em 2015, dessa vez para o curso noturno de Geografia. Sua luta para conseguir levar adiante seu curso universitário demonstra um pouco das dificuldades enfrentadas pelas mães alunas.

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Mithaly, hoje com 28 anos, explica que sua motivação para criar o grupo foi a invisibilidade que as mães têm no ambiente acadêmico e a falta de movimentação da Universidade quanto às demandas dessas alunas. “Ano passado fiz uma pesquisa sobre planejamento urbano e o tema foi ‘O Direito da Mulher Mãe à Cidade’. Entrevistei outras mães, muitas que nem ao menos conseguiram entrar na universidade por não conseguirem estudar e conciliar com a maternidade. Esse ano vi a movimentação do coletivo de mães da UFF e conversei com as meninas de lá também, tinha a intenção de fazer um núcleo na UFRJ, então esse conjunto de coisas me levaram a criar o grupo e engendrar o nosso coletivo”, diz.

Mithaly, estudante de Geografia, e as filhas: ‘A questão da maternidade é ignorada pela comunidade acadêmica’ (Foto Arquivo Pessoal)

Na primeira reunião do grupo de mães, no fim de abril, elas promoveram uma roda de conversa sobre as dificuldades enfrentadas. A reivindicação mais importante, feita por todas as alunas, foi a criação de um espaço para os filhos ficarem durante o horário de aulas, já que muitas mães estudam em horário integral, ou à noite. Outra demanda das mães é a inclusão do assunto “maternidade” na universidade, pois, segundo elas, falta empatia tanto dos docentes, quanto dos alunos. “Essa questão é ignorada por toda comunidade acadêmica. Essa falta de empatia afeta o rendimento das mães, algumas abandonam a universidade, tem que trancar o período porque o filho adoeceu ou porque a escola do filho entrou em greve. Aqui entra outra demanda que seria o trancamento especial para mães nesses casos específicos”, afirma Mithaly.

A estudante Raphaela Ribeiro, 31, do curso de Terapia Ocupacional, na UFRJ, também no Fundão, sabe bem a falta que uma boa assistência causa na vida das mães alunas. Mãe do pequeno Arthur, de três anos, passou a maior parte de sua vida acadêmica com o filho ao seu lado nas aulas. “Passei toda a minha gestação aqui, logo tive o Arthur e em três meses já o estava trazendo para as aulas. Eu o trouxe até o ano passado e, quando ficou insustentável, consegui a creche”, diz. A aluna conseguiu matricular seu filho em uma creche municipal na metade de 2018, depois de quase três anos tentando uma vaga.

As creches, ou melhor, a falta delas, são a grande queixa das mães universitárias. A única creche da UFRJ não é nova: inaugurada em 1981, a Escola de Educação Infantil (EEI) da UFRJ somente atendia aos filhos dos servidores. Em 2013, passou a reconhecer o direito de todas as crianças à Educação Infantil. O acesso da criança passa, então, a ser realizado através de sorteio para toda a comunidade, sem preferência para servidores ou alunos. A quantidade de vagas, entretanto, não é suficiente para suprir as crianças inscritas: no processo seletivo de 2019, foram 159 crianças para 16 vagas. Poucas alunas conseguem. “Então eu fico pensando: nosso filho tem que contar com a sorte de conseguir. É sorte ter acesso a cuidado e atenção! É uma questão de sorte!”, protesta Raphaela.

Raphaela, aluna de Terapia Ocupacional, está desistindo da UFRJ. após criar Arthur até os 3 anos dentro da universidade: ‘estou cansada, quero ir pra casa’. (Foto: Barbara Lopes)

O apoio para as mães não é visto como prioridade para a Instituição, mas cada departamento lida com a questão de forma diferente. A experiência de Raphaela no curso de Terapia Ocupacional foi acolhedora: “No meu curso, os docentes e os discentes me protegeram. Eu tenho um carrinho que ganhei da turma; hoje fica aqui na sala do CA para quem precisar. Os professores ficam com nossos filhos quando é preciso fazer um trabalho dentro da sala de aula. O que eu precisei em relação a professores e colegas, eu tive. As pessoas do meu departamento me fizeram ver que esse lugar é meu sim, esse acolhimento foi muito importante”, acrescenta.

Entretanto, em outros ambientes, o acolhimento não é uma regra. Raphaela conta que, muitas vezes, se retira da sala, quando o filho está inquieto, para não atrapalhar a aula, mas ainda assim, foi convidada a se retirar da sala por um professor de outro curso. “Eu entendo e não entendo. O Arthur estava fazendo uns castelinhos, não estava incomodando, mas é criança, não consegue ficar sentado. As pessoas não estavam incomodadas, porque elas já estão acostumadas a assistirem aula com o Arthur, e não só como ele, tem outras mães com filhos na aula. E o professor começou a bufar, bufar e disse: ‘Infelizmente não vai dar, vou pedir para você se retirar’. Eu vi que ele estava tentando, mas não estava conseguindo”. Em casos assim, não há obrigatoriedade por parte das instituições de ensino de permitir que as mães assistam aulas com seus filhos, fica a critério da própria instituição e do professor.

Arthur cresceu e se desenvolveu na universidade, em ambiente inadequado para um bebê: “O apoio para ele começar a andar foram as carteiras da sala de aula. Ele se arrastava no chão, ficava podre de sujeira. O banheiro dele era o tanque da sala de arte e criação e seu fraldário, a bancada”. Após anos atravessando a cidade com o filho pequeno, em ônibus lotados, Raphaela decreta que está na hora de sair da faculdade. “Meu TCC seria sobre ‘Mães Universitárias’ e iria tratar de ‘Cotidiano e Ocupação’, mas levantar a pesquisa iria demandar muito tempo. Quero ir embora daqui o mais rápido possível. Quero sair para trabalhar, não aguento mais ficar aqui dentro”, desabafa.

Rayssa, com Davi: professores e colegas da Astronomia ajudaram a cuidar da criança (Foto: Arquivo Pessoal)

A aluna Rayssa Feitosa-Bastos, 26, é mãe de Davi Henrique, 4 anos, e conseguiu ganhar a luta de ser universitária e mãe. Cursa o mestrado em Astronomia na UFRJ, mas precisou contar com uma grande rede de apoio familiar e acadêmica para isso. No curso de Astronomia, era a única mãe e não só ela, mas alunos e professores tiveram de aprender a lidar com a situação. “Tive muito apoio da minha unidade e sou muito grata a todos, principalmente à minha orientadora que me acolheu e me ajudou muito nessa jornada. Sinto que posso ajudar outras meninas compartilhando minhas experiências. Mostrar que muitas conseguem terminar a graduação e até começar uma pós, como no meu caso, mas se não conseguir também não tem problema. Cada criança é um indivíduo com suas próprias características, cada mãe vive uma realidade. É muito importante saber que tem várias alunas mães e todas estão em um grupo onde pode compartilhar as experiências, dar dicas e ouvir seus desabafos. Isso é incrível e acho que eu teria aceitado mais no início se conhecesse mais alunas mães”, afirma.

As dificuldades para as mães alunas não se resumem às questões estruturais ou burocráticas no espaço universitário. A falta de empatia de professores e alunos acaba tornando a luta diária ainda mais difícil. Com a filha Clara, de 1 ano e 3 meses doente, Clarissa Almeida, 27, estava no limite de faltas do curso de Enfermagem, na UFRJ. Precisou ir à aula para não ser reprovada e seu marido, Felipe Almeida, 27, a  acompanhou. Ele ficou com a filha enquanto Clarissa estava em aula. Pouco antes do final, saiu da sala assinando a lista de presença. Mas, quando voltava para casa, recebeu uma mensagem da amiga informando que seu nome havia sido riscado da lista por não estar em sala durante a conferência da lista.

Empatia, entretanto, é o que não falta para as alunas de Psicologia da UnB (Universidade de Brasília). Buscando ajudar as alunas com filhos, que não conseguem vagas para as creches da universidade, as alunas Amanda Regis, 22, e Kelly Regina, 35, criaram em março de 2019 a Rede Voa (Rede Voluntária de Apoio Infantil para Permanência Universitária). O objetivo do projeto é reduzir a evasão das alunas com filhos e ficar com eles durante as aulas das mães. O programa chamou tanta atenção que a reitoria decidiu transformá-lo em programa de extensão, abrindo a possibilidade de outros núcleos de extensão participarem. Além disso, o projeto está sendo exportado para outras universidades. Embora o programa já conte com voluntários, ainda não está em funcionamento por falta de local adequado para manter as crianças. Quando conseguirem uma sala, o planejamento do projeto será cuidar de 10 crianças e ter sete voluntários por vez.

É possível que, ao menos na UFRJ, a situação das mães alunas melhore um pouco. A Pró-reitoria de Políticas Estudantis (PR7) aprovou, em março, novas políticas de assistência estudantil – entre elas, as que propõem a criação de espaços parentais com fraldários, sala de amamentação e lugar para brincar.

Com foco nas melhorias para mães e crianças, a aluna Mithaly Corrêa criou um formulário de pesquisa para o grupo Mães da UFRJ. Os dados levantados pelo questionário serão utilizados para a criação de uma carta pedindo apoio e norteando o corpo docente e a Instituição. Dessa forma, foi constatado que 56,6% tiveram que trancar ou abandonar a faculdade por problemas referentes à maternidade. 46,7% tiveram o rendimento acadêmico afetado por conta disso e 91% acreditam que a universidade não atende as demandas das mães universitárias. Ela acredita, entretanto, que o atual momento das universidades federais impede uma ação mais rápida para ajudar as mães universitárias: “O momento agora é de defesa da universidade, estamos articulando com o nosso coletivo ações referentes ao corte de verbas”.<

Barbara Lopes

Formada em Letras/Literaturas pela Universidade Federal Fluminense, carioca que não vai à praia, mas vive na floresta e na selva da cidade. Cursando graduação em Jornalismo na UFRJ. Acredita que a leitura e o diálogo transformam o mundo.

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