Terras indígenas na mira da mineração

Manifestacao indigena em frente ao Ministerio da Agricultura. Foto de Mateus Bonomi/ Agif/ AFP

Deputados que tiveram campanha financiada por mineradoras tentam aprovar projeto de lei que libera a exploração de terras indígenas

Por Liana Melo | FlorestasODS 15 • Publicada em 15 de fevereiro de 2019 - 08:00 • Atualizada em 19 de fevereiro de 2019 - 15:20

Manifestacao indigena em frente ao Ministerio da Agricultura. Foto de Mateus Bonomi/ Agif/ AFP
Manifestacao indigena em frente ao Ministerio da Agricultura. Foto de Mateus Bonomi/ Agif/ AFP
Manifestação indígena em Brasília, em frente ao Ministério da Agricultura (Foto de Mateus Bonomi/ Agif/ AFP)

A tropa de choque de deputados eleita com doações das mineradoras, a chamada bancada da lama, quer liberar a exploração mineral em terras indígenas. Sobre a mesa do presidente da Agência Nacional de Mineração (ANM) estão 5.675 processos de exploração mineral, que vão da pesquisa a autorização de lavra, segundo estudo do WWF-Brasil. Tudo na Amazônia. Os projetos foram apresentados por mineradoras e, muitos deles, mas não todos, contam com o apoio dos parlamentares.O sonho do setor é transformar aldeias em futuras barragens. Se a tragédia de Mariana não foi suficiente para reforçar a regulamentação e a fiscalização no país, e evitar, três anos e três meses depois, que a lama da Vale matasse 165 pessoas em Brumadinho, sem contar os desaparecidos, o que esperar da atividade minerária no meio da floresta?

“Esses políticos não têm pudor”, denuncia Jarbas da Silva, secretário-geral do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração, organização criada por 110 entidades, entre ONGs, grupos de pesquisa, movimentos sociais, igrejas, centrais de trabalhadores, movimentos indígenas e quilombolas. No front de batalha, duas ameaças latentes. Primeiro: a tentativa de parlamentares de, enfim, aprovar o projeto de lei de Romero Jucá, o PL 1.610, que trata da regulamentação da mineração em terras indígenas. Os parlamentares da lama estão apostando que Brumadinho cairá no esquecimento com a mesma rapidez com que Mariana passou a ser lembrada apenas anualmente, na data do desastre. O tema deve entrar na pauta ainda no primeiro semestre. Segundo: a pressão para instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de Brumadinho, como defendem Davi Alcolumbre, no Senado, e Joice Hasselmann, na Câmara de Deputados. Autora da CPI, Joyce já expressou seu temor de a relatoria da comissão ir parar nas mãos de um dos parlamentares da “bancada da lama”. Sua proposta já foi aceita pelo presidente da casa, Rodrigo Maia.

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Duas CPIs no Congresso para discutir Brumadinho é uma estratégia muito inteligente, porque trava todo o processo de discussão, blinda o governo e ainda passa a ideia para a sociedade de que estão querendo resolver o problema

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“Duas CPIs no Congresso para discutir Brumadinho é uma estratégia muito inteligente, porque trava todo o processo de discussão, blinda o governo e ainda passa a ideia para a sociedade de que estão querendo resolver o problema”, critica Silva, defendendo que uma CPI da Mineração seria o fórum ideal para discutir as questões de (in) segurança do setor. A sucessão de desastres – Mariana (2015), vazamentos de rejeitos em Barbacena (2017), rompimento do mineroduto da Anglo American (2018) e Brumadinho (2019) – e sua nítida correlação com fragilidades na regulamentação e na fiscalização são, por si só, justificativas mais do que suficiente para a instaurar uma CPI ampla e não restrita ao desastre mais recente.

As negociações com os partidos de oposição estão caminhando, mas Silva admite que a briga não vai ser fácil. Seus opositores no Congresso tem uma dívida milionária com as mineradoras e o risco de não pagá-la é zero. Por trás dos parlamentares da lama está um conjunto de empresários que mobilizam uma quantidade de recursos financeiros, que, em algumas situações, é superior ao orçamento de muitos municípios, incluindo aí as cidades que abrigam minas. “Não à toa, as mineradoras vêm emplacando representantes no governo e na burocracia estatal”, complementa Bruno Milanez, professor da Universidade de Juiz de Fora. Ele faz parte do grupo de pesquisadores que trabalha com o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.

O maior expoente é o ex-deputado Federal Leonardo Quintão. O emedebista mineiro não foi reeleito, mas está despachando no quarto andar do Palácio do Planalto e sua atribuição é tratar de projetos de interesse do governo no Congresso. A regulamentação da exploração mineral em terra indígena é uma de suas atribuições. Quintão chegou a ser cogitado para a Secretaria Especial da Casa Civil para o Senado, mas sua indicação foi abortada em tempo de tirá-lo dos holofotes. Além de relator do Código de Mineração na Câmara, o ex-parlamentar liderou a lista dos candidatos patrocinados pelas mineradoras. Nunca escondeu ter sido financiado pelas mineradoras, chegando a declarar publicamente que “sou parlamentar, sou financiado, sim, legalmente pela mineração“. As mineradoras bancaram 42% da sua campanha eleitoral de 2014, repassando um montante de R$ 2,08 milhões.

Com padrinhos ricos e poderosos, Quintão alimenta a política do toma lá, dá cá. E o pior, influencia as decisões e regras do setor mineral no Brasil. “A política mineral vem sendo exercida a serviço das empresas, e não dos interesses do país”, analisa Milanez.

As mineradoras estão de olho nas reservas de ouro, diamante e nióbio, entre outros minerais valiosos, que repousam sob terras demarcadas.  Só que é proibido pela Constituição explorar nessas áreas. O artigo 231, no seu parágrafo segundo, afirma que as “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. O quarto é ainda mais contundente: “As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre, imprescritíveis”. A Constituição parece não ser um empecilho intransponível. O atual governo já sinalizou a intenção de, via decreto, liberar uma regulamentação para liberar atividades do agronegócio dentro de terras demarcadas. Daí para liberar a exploração mineral é um pulo.

O risco é tão iminente que o Ministério Público Federal (MPF) da Amazônia encaminhou uma ação civil pública pedindo à Justiça que obrigue a Agência Nacional de Mineração (ANM) a negar todos os pedidos de exploração mineral nas terras indígenas. A alegação é que o “presumido impacto ambiental de grande porte da atividade em causa e o risco que ela representa ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se indevidamente manejada, o que é acentuado na hipótese de terras indígenas, pela proteção especial que recebem essas áreas em função de sua relevância biocultural”. A ação foi impetrada no início de fevereiro, menos de dez dias depois do desastre de Brumadinho. Segundo o estudo do WWF-Brasil, no qual o MPF da Amazônia se baseou para sustentar a ação cível pública, é justamente a Terra Indígena Yanomami, na fronteira com a Venezuela. Quase cem pedidos alcançam uma área de 11 mil quilômetros quadrados, pouco mais de 10% do território homologado em 1992 e onde já foi detectada a presença de garimpo ilegal.

Foi na gestão de Romero Jucá à frente da Fundação Nacional do Índio (Funai), durante o governo Sarney, em 1986, que o autor do PL 1.610 estimulou a invasão garimpeira em terras dos Yanomami. A denúncia consta do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Pouco mais de três décadas depois, o domínio dos garimpeiros está provocando um verdadeiro caos social na terra indígena. Em ofício encaminhado ao presidente da Funai, em 4 de fevereiro último, a Associação dos Povos Yanomami de Roraima (Hwenama) denuncia a “arregimentação de homens adultos para o trabalho na extração de ouro, em condições análogas a de escravo, o que leva ao abandono das roças e das atividades de caça e pesca. Em paralelo, os garimpeiros promovem a prostituição de mulheres e crianças, em troca de alimentos“.

 

 

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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