Um dos maiores dilemas dos pais de crianças portadoras de deficiência é a inserção nas redes de ensino. Quem procura uma vaga, principalmente na rede privada, em geral, recebe um sorriso amarelo como resposta, ou aquele olhar seco com o célebre “não temos condições de cuidar de seu filho”. Para Ana Paula Vieira não foi diferente. Na primeira escola particular em que tentou matricular seu filho Luigi, hoje com oito anos, a resposta não passou de um “não temos condições de receber seu filho”. Hoje, no entanto, a situação é muito diferente. Ele está bem e integrado no Colégio Notre Dame, tradicional instituição católica em Ipanema, Zona Sul do Rio. Mas os desafios não pararam aí. Ana Paula foi procurar apoio para as gêmeas Giovana e Paola, de seis anos, que como Luigi, são portadoras do espectro autista. As meninas foram acolhidas, e com maior facilidade, segundo a própria mãe, na rede pública de ensino.
[g1_quote author_name=”Ana Paula Vieira” author_description=”Mãe” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eu vejo que na rede pública existe uma receptividade maior. A minha percepção é de que tanto os professores como os alunos conseguem conviver melhor com as diferenças, mesmo com as limitações de horários e as dificuldades para ter os mediadores. Tenho consciência de que a adaptação das meninas na rede particular seria muito difícil
[/g1_quote]O relato de Ana Paula corrobora os resultados de uma pesquisa de mestrado realizada pelo professor Robson Celestino Phychodco, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Todo o trabalho foi feito a partir de dados coletados em entrevistas com pais e responsáveis de alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O resultado mostrou que grande parte se declarou satisfeita com o trabalho realizado nas escolas públicas, afirmando que seus filhos são tratados com respeito e igualdade. Robson buscou os entrevistados em grupos no Facebook que tratam de autismo. Mais de 200 pais, mães ou responsáveis de autistas aceitaram responder quase 50 perguntas. No final, 90 participantes responderam todo o questionário.
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Veja o que já enviamos“O estudo serviu para desmistificar a ideia comum de que a rede pública não tem condições de receber alunos com TEA. Entrevistamos pais e responsáveis de diversas partes do país e perguntamos como se sentiam em relação ao processo de inclusão na rede pública e o resultado foi a percepção de que são mais acolhidos”, explicou o mestrando.
Ana Paula tem a mesma percepção. Luigi tem uma forma mais branda de autismo, fala, acompanha a turma, mas apresenta um pouco de dificuldade no aprendizado. Na escola particular vem sendo bem atendido, sem enfrentar problemas de integração com a turma, deixando a mãe satisfeita com o resultado. As gêmeas, por sua vez, possuem graus de TEA mais severos, o que se transforma em um desafio ainda maior para os pais e educadores. A mãe sabe que na rede particular dificilmente teria o mesmo resultado, apesar das limitações existentes na rede pública, como a falta de mediadores.
“Eu vejo que na rede pública existe uma receptividade maior. A minha percepção é de que tanto os professores como os alunos conseguem conviver melhor com as diferenças, mesmo com as limitações de horários e as dificuldades para ter os mediadores. Tenho consciência de que a adaptação das meninas na rede particular seria muito difícil. Os professores não dariam conta das necessidades delas”, diz Ana Paula.
Os altos custos, as dificuldades e os obstáculos frequentes afastam mais e mais as crianças com TEA de grande parte da rede particular. Muitas escolas fazem questão de ressaltar que não têm condições de receber os alunos. Outras fazem exigências que financeiramente inviabilizam a matricula – como a contratação de mediadores. Com isso, o que se vê é uma migração para o sistema público. Hoje, no Rio de Janeiro, existem 14 mil portadores de deficiência na rede municipal, 800 são autistas. Kátia Nunes, diretora do Instituto Municipal Helena Antipoff, Centro de Referência em Educação Especial, acha que o bom retorno dos pais se deve a uma melhor preparação dos profissionais. Professora especializada em estudantes com deficiência, Kátia Nunes dirige o centro há seis anos e atua há 30 anos no ensino para deficientes.
[g1_quote author_name=”Kátia Nunes” author_description=”Diretora do Instituto Helena Antipoff” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Acredito que o resultado se deve muito à formação dos professores. É preciso saber como lidar com os autistas, com as famílias. Qualquer aluno precisa de um trabalho efetivo.
[/g1_quote]“Acredito que o resultado se deve muito à formação dos professores. É preciso saber como lidar com os autistas, com as famílias. Qualquer aluno precisa de um trabalho efetivo. No dia 27 de julho de 2016, instituímos o primeiro Dia da Inclusão. Todas as escolas pararam por duas horas para debater o assunto. Esse dia está oficializado no calendário municipal. É um espaço para se discutir o que acontece e mostrar as necessidades. É um passo importante”, diz Kátia.
Para o professor da Unicamp, as políticas públicas implementadas em várias cidades do país vêm ajudando nesse resultado, mesmo sabendo que o sistema ainda está muito aquém das necessidades dos portadores de deficiência em geral.
“No setor público, as normas chegam mais rápido. Além disso, a fiscalização e o controle social são muito maiores. Esses mecanismos sutis fazem com que o sistema tenha que se adaptar rapidamente às mudanças. Quando as políticas forçam alguma mudança, o sistema busca com mais rapidez a adequação às novas regras, sob o risco de punição e até mesmo de perda do cargo, em caso de descumprimento. No sistema privado é bem diferente”, explica o pesquisador.
E isso fica claro para quem luta por uma vaga inclusiva. A rejeição na rede pública pode existir por questões estruturais, nunca econômicas, diferentemente da rede privada que, na maioria dos casos, contabiliza os custos e ainda leva em consideração a pressão de outros pais. Não é difícil encontrar alguém que tenha passado pelo constrangimento de ouvir da escola coisas do tipo: “Os pais estão preocupados com a presença do seu filho em sala de aula, com medo de que as dificuldades dele coloquem o desenvolvimento da turma em risco”. Já na rede pública, a situação é oposta. Mesmo assim, Ana Paula teve que fazer uma opção drástica há cerca de dois meses: retirar a pequena Giovana da escola.
“Eu tive que fazer uma opção. Mesmo com a aceitação, a Giovanna precisa de uma atenção mais direcionada, ela não para na sala e acaba atrapalhando o desenvolvimento da Paola. Resolvi tirá-la da escola, cuidar do comportamental e ver como fazer no ano que vem. Mesmo com a receptividade, o sistema público ainda carece de alternativas especiais para casos mais severos, mas sei que seria praticamente impossível a adaptação em uma escola particular neste momento”, finaliza Ana Paula.
Robson Phychodco, por sua vez, acredita que é de vital importância maiores investimentos no setor público de ensino, abrindo ainda mais espaço para alunos com deficiências mais severas, já que muitos pais ainda são reticentes em mandar seus filhos para a escola. “O processo de inclusão, muitas vezes, gera medo. Entre os 90 pais que responderam todo o questionário, 12 disseram que se tivessem a opção de deixar os filhos fora da sala de aula o fariam. Por isso, é muito importante a socialização da informação, para se perder o medo do desconhecido”.