Lições de liberdade

Uma aula de economia solidária, generosidade e esperança com o professor Paul Singer

Por Cristina Chacel | ODS 17 • Publicada em 18 de abril de 2018 - 16:14

Professor nato, por onde ia, o economista Paul Singer arrastava uma legião de admiradores. Foto Antonio Cruz/Agência Brasil
Professor nato, por onde ia, o economista Paul Singer arrastava uma legião de admiradores. Foto Antonio Cruz/Agência Brasil
Professor nato, por onde ia, o economista Paul Singer arrastava uma legião de admiradores. Foto Antonio Cruz/Agência Brasil

O auditório de não mais que 300 lugares estava abarrotado. Todas as cadeiras ocupadas, corredores laterais apinhados. No saguão de entrada, burburinho, alegria. Gente simples, indiscutivelmente pobre, de escolaridade precária, a trocar abraços que selavam a felicidade do encontro. Quando o professor chega, é recebido com aplausos vigorosos, gritos de vivas. Ele vai vencendo o caminho até o palco sem pressa, apertando mãos, trocando afagos, distribuindo sorrisos de reconhecimento. Sabe que mais importante que chegar a Ítaca é a viagem, a odisseia. Quando enfim alcança seu posto, no centro da cena, todos se sentam, menos ele. Em respeito à plateia de gente simples, indiscutivelmente pobre, ele permanece de pé, sem hesitação ou sinal de cansaço, durante toda a aula, que vai durar mais de uma hora.

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Não medimos o êxito de nossos empreendimentos pelos lucros que eles dão. O que melhor produzimos na economia solidária é a felicidade

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Assim foi Paul Singer, economista, socialista, fundador do PT, que morreu esta semana, deixando o Brasil um pouco mais pobre do que ele certamente sonhou. Professor nato, por onde ia arrastava uma legião de admiradores. Gente de diferentes cores e credos, que com ele aprendeu e a ele ensinou práticas solidárias de viver, assim mesmo, uma troca, horizontal. Ao fim de suas palestras, dedicava tempo singular a cada aluno, um a um, uma a uma, chamava pelo nome, olhava no olho, gostava de escutar. Oferecia, assim, a primeira de suas inesquecíveis lições: generosidade.

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Foi assim que me encantei por Paul Singer, numa manhã ensolarada, no Rio de Janeiro, aonde ele veio participar de um seminário organizado pelo Núcleo Estadual de Assistência Técnica a Empreendimentos Solidários – NEATES. Então com 78 anos, já curvado pela idade avançada e carregando discretamente uma bolsa de colostomia presa ao corpo, Singer corria o Brasil para afirmar a solidariedade como vetor da economia. Ocupava, então, o posto de Secretário Nacional de Economia Solidária. Toda semana, podia ser visto na ponte aérea entre São Paulo, onde morava, e Brasília, lugar de trabalho. Para além de seu gabinete no Ministério do Trabalho e Emprego, Paul Singer podia ser encontrado entre indígenas do Alto Solimões, quilombolas de Alcântara ou quebradeiras de coco do Ceará.

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Do Pará ao Ceará, são 300 mil quebradeiras de coco organizadas em cooperativas. E elas não estão mais quebrando coco na mão. Há máquinas. Já estão fazendo uma porção de produtos a partir do óleo de babaçu

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Paul Singer: "O que melhor produzimos na economia solidária é a felicidade"
Paul Singer: “O que melhor produzimos na economia solidária é a felicidade”

Pelos aeroportos nem sempre eficientes do Brasil, ele arrastava uma malinha com três mudas de roupa e, na outra mão, carregava uma pasta recheada de documentos – de projetos sociais a teses acadêmicas, passando por bilhetes aéreos e vauchers de hospedagem. Viajava sozinho, sem precursores ou assessores, contrariando a praxe entre autoridades de governo. Não reclamava. Tratava-se de um traço de seu modo de existência. Longe dos salamaleques do poder, Singer parecia se divertir com o anonimato. Quem por ele passava, sequer desconfiava estar diante de um dos mais brilhantes conselheiros da república petista, fundador e formulador do partido, amigo do então presidente Lula, economista e professor de ilibada reputação internacional. Aqui, um pouco sobre o que conversamos sobre a economia solidária no Brasil, naquele dia de 2011, suas ideias, seu legado, lições de liberdade.

“Não medimos o êxito de nossos empreendimentos pelos lucros que eles dão. O que melhor produzimos na economia solidária é a felicidade”.

“A economia solidária nasce nos anos 80 de uma forma inteiramente ignorada. São núcleos, ilhotas que vão surgindo em diferentes áreas do país. Grupos que algumas vezes se tocam e outras, não. Eu encontrei um movimento que já estava existindo, mas que não se conhecia. Havia várias formas de economia solidária pipocando pelo Brasil”.

“A Igreja começou a fazer os chamados Projetos Alternativos Comunitários, os PACS, que eram financiados pelas Charitas Miserere da Europa. Ao mesmo tempo, os sindicatos apoiavam os trabalhadores das empresas que quebravam, para tentar recuperá-las sob a forma de cooperativas. Isso era a CUT. A UniTrabalho foi outro fator de aglutinação. As pessoas se conheceram em uma reunião na PUC de São Paulo e eu me lembro até hoje o espanto que foi um falar atrás do outro. Os princípios eram os mesmos. Histórias diferentes que contavam a mesma coisa. Nós queremos criar uma economia autogestionária, igualitária, democrática, não capitalista. Aproveitar a crise do capitalismo”.

“Temos hoje uma economia viva no Brasil. Em 2007, eram 22 mil empreendimentos, com 1 milhão e 700 mil pessoas fazendo economia solidária. Isto representa, por estimativa, 2% da economia brasileira, 2% da população economicamente ativa e, possivelmente, algo semelhante ao PIB, que é o que se usa para avaliar grosseiramente o tamanho da economia do país”.

“Os indígenas querem vir para a economia solidária, porque casa com os valores deles. Eles não precisam mudar nada. Só precisam se modernizar. Então eles estão fazendo economia solidária onde é possível. Os quilombos, a mesma coisa. Hoje (2011) nós temos três mil comunidades remanescentes de quilombos, agrupadas desde o Rio Grande do Sul até a Amazônia. No Vale do Ribeira, em São Paulo, tem uma dúzia de quilombos. Em Goiás tem um agrupamento bem maior. Em Alcântara, no Maranhão, uma ilha quilombola, perto de São Luís, totalmente negra, tem banco comunitário e moeda social. Os quilombos estão vindo para nós porque somos uma alternativa que não viola os valores deles”.

“Do Pará ao Ceará, são 300 mil quebradeiras de coco organizadas em cooperativas. E elas não estão mais quebrando coco na mão. Há máquinas. Já estão fazendo uma porção de produtos a partir do óleo de babaçu”.

“Estamos também organizando em economia solidária os pescadores artesanais do Brasil. Ou seja, há uma série de comunidades tradicionais. Além dos seringueiros, os garimpeiros, extrativistas de mil formas, tudo isso vira economia solidária, de uma forma macia, sem violentar nada”.

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Eu acredito que a grande maioria dos trabalhadores brasileiros vai preferir a economia solidária, não porque não tenha opção, mas porque é uma opção melhor. Não há porque ter pressa. O banco comunitário é uma invenção de uma favela de Fortaleza. A própria comunidade criou o Instituto Palmas e está hoje difundindo pelo Brasil

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“Eu acredito que a grande maioria dos trabalhadores brasileiros vai preferir a economia solidária, não porque não tenha opção, mas porque é uma opção melhor. Não há porque ter pressa. O banco comunitário é uma invenção de uma favela de Fortaleza. A própria comunidade criou o Instituto Palmas e está hoje difundindo pelo Brasil”.

“Sobre os gargalos da economia solidária, na porta de entrada, da produção e na de saída, da comercialização, não vou dar minha opinião. Fizemos essa pergunta em nosso mapeamento e o que as pessoas disseram é que o principal gargalo está na comercialização. No entanto, logo em seguida vem a entrada, que é o acesso ao crédito. Não só no começo, mas em qualquer etapa de ampliação do empreendimento, você precisa de crédito”.

 “Para a comercialização, o que se pretende fazer é criar cooperativas e organizar os empreendimentos em redes, porque fica muito mais fácil comercializar. Aí você começa a ter dinheiro para fazer pesquisa de mercado, e, mais que isso, uma política de aproximação com os consumidores, que é uma das características do comércio justo”.

 “Comércio justo envolve os consumidores. Trata-se de um imperativo ético, cobrar o preço justo e ganhar confiança do consumidor para que ele te ajude inclusive a melhorar o seu desempenho. Existem, hoje, grandes cooperativas de artesãos, algumas articuladas em vários estados, que conseguem comercializar melhor porque estão trabalhando associadamente”.

 O principal problema, que se aplica a muitas cooperativas, é a baixa escolaridade dos cooperados, embora eles não careçam dela. Eles são bons em produzir, mas não são bons em vender. Em parte, por timidez. Pense nas mulheres. As mulheres são majoritárias na economia solidária. Elas têm facilidade para vender às mulheres iguais a elas, à vizinha. Mas quando se trata de vender para a classe média, elas ficam com vergonha porque não falam bem o português, e, assim, revelam sua baixa escolaridade. São obstáculos de ordem cultural. Se você cria uma rede, tem recursos até para colocar outros profissionais, gente que tem vontade e condições de vender melhor. A economia solidária, por vocação, encontra soluções dentro dela”.

 “Um sistema de finanças solidárias, com cooperativas de crédito, fundos rotativos, bancos comunitários podem superar o gargalo do acesso ao crédito. A poupança da economia solidária pode financiar a própria economia solidária. É uma questão de organização”.

“Internacionalmente, está surgindo um negócio capitalista de microcrédito. Os capitalistas finalmente descobriram que os pobres são ótimos clientes, porque devolvem o dinheiro. Fazem enorme sacrifício, mas pagam suas dívidas. Os ricos é que não. Então, está surgindo uma indústria de microcrédito inteiramente capitalista, visando o lucro. Existe um microcrédito anticapitalista, do qual o modelo mais ilustre é o Grameen Bank, que é obviamente economia solidária. As sete milhões de mulheres que tomam crédito no Grameen Bank são as donas do banco. Então você tem dois modelos. Tem o grupo Visa, do cartão Visa, que é dos maiores do mundo, é um grupo fortíssimo, fomentando o microcrédito, e tem o Grameen Bank”.

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Comércio justo envolve os consumidores. Trata-se de um imperativo ético, cobrar o preço justo e ganhar confiança do consumidor para que ele te ajude inclusive a melhorar o seu desempenho. Existem, hoje, grandes cooperativas de artesãos, algumas articuladas em vários estados, que conseguem comercializar melhor porque estão trabalhando associadamente

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 “É óbvio que o capital está absolutamente aceso para oportunidades de ganhar dinheiro. É a natureza dele. Desde que o Lula inventou a Secretaria Nacional de Economia Solidária, a economia solidária tem se fortalecido bastante de uma ideologia agressivamente anticapitalista”.

“Essa economia capitalista é anti-vida, anti-natureza. Essa não é uma fantasia minha, é uma realidade tristíssima. O capitalismo ultra-turbinado-neoliberal esmaga e cria loucura, um monte de doenças profissionais. De modo que eu não acredito que seja fácil ele penetrar na economia solidária só porque é lucrativo. A economia solidária é uma economia ideológica, os valores são muito importantes e contrários aos valores capitalistas”.

“O campo e a cidade, onde está a diferença? Nas aldeias ou nas pequenas cidades, as pessoas têm mais facilidade de se conhecerem, se ajudarem, irem à Igreja juntas, e, eventualmente, usarem esse capital social, essa confiança mútua, para construir alguma coisa economicamente viável. Nas cidades, como o adensamento é muito maior, é mais difícil. Mas há experiências urbanas importantes que estão acontecendo em muitos lugares”.

“Eu acho que existe um florescer de economia solidária ao longo do Brasil, mas não de uma forma contínua, não é um sistema. Hoje nós temos uma rede de gestores, temos internet. É provável que essas coisas comecem a se ligar”.

Cristina Chacel

Jornalista e escritora, atuou nos principais jornais do Rio de Janeiro. Há 20 anos trabalha como freelance, com criação de textos jornalísticos e institucionais e projetos sociais e solidários. É autora de dezenas de livros, entre eles "Rio de cantos mil", com fotos de Custodio Coimbra.

Nota da redação: Cristina Chacel morreu em 2020.

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2 comentários “Lições de liberdade

  1. Ruth B Martins disse:

    Paul Singer vai fazer falta, certamente.
    Belo depoimento dele a Cristina Chacel.
    E que essas experiências de economia solidária se multipliquem Brasil afora.

  2. Cristina Chacel disse:

    Obrigada, Ruth. Concordo com você. A solidariedade é o caminho para a inclusão de milhares de brasileiros na economia. Esta outra economia possível.

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