ODS 1
O passado volta a marchar no Rio
Especialistas discutem a eficácia e os riscos da atuação das Forças Armadas no combate à violência no estado
Vale a pena ler de novo: “Exército assume o comando do combate à violência no Rio”, “General quer fim do poder do tráfico”, “Exército quer prender 300 no Rio”, “Exército bloqueia o tráfico em cinco favelas”.
As manchetes, que parecem ter sido publicadas semana passada, têm quase 23 anos, estamparam capas de O Globo e da Folha de S.Paulo nos primeiros dias de novembro de 1994, quando as Forças Armadas botaram seu bloco na rua para tentar controlar a violência no Rio. A elas se somam as de hoje, sobre a intervenção federal na segurança do Estado.
[g1_quote author_name=”Mário Sérgio Duarte” author_description=”Analista de segurança pública” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Como fazer uma segurança qualificada com policiais expostos em carros sem blindagem?
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Veja o que já enviamosEm novembro de 1994, havia 73,9 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes no Estado do Rio. Em 2016, este mesmo índice subiu 24,7% em relação ao ano anterior e chegou a 29,9 – menos da metade do apurado em 1994.
Em 1992, blindados e soldados também haviam desfilado pela cidade, mas para garantir a segurança dos mais de cem chefes de estado e de governo que participaram da conferência sobre meio-ambiente organizada pela ONU. Dos anos 1990 para cá, o ir e vir de tropas foi incorporado à vida carioca, já não surpreende quem vive por aqui. Em grandes eventos ou quando, diante de um pico de violência, a sentença “O Rio acabou” vira uma espécie de lugar-comum, o governador vai a Brasília, apela ao presidente, e as Forças Armadas tocam reunir no território do estado.
Analista de segurança pública e comandante da Polícia Militar do Rio entre julho de 2009 e setembro de 2011, o coronel da reserva Mário Sérgio Duarte diz que a volta das tropas federais é justificável pelo quadro de violência, que classifica de “conflito urbano de baixa intensidade” (o “baixa”, explica, deve-se à não utilização, por exemplo, de artilharia aérea – pelo menos, por parte das quadrilhas). Questiona, porém, a “razoabilidade” do uso das Forças Armadas. Para ele, o dinheiro que está sendo gasto nesta nova operação deveria ser investido nas polícias estaduais.
Cita que tais verbas seriam mais úteis se usadas para tornar mais seguras as bases das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), comprar carros blindados para transporte de policiais, instalar câmeras em áreas conflagradas, adquirir drones para PM e quitar o décimo terceiro e os RAS (espécie de hora-extra) dos policiais. “Como fazer uma segurança qualificada com policiais expostos em carros sem blindagem?”, pergunta. Ele diz que não propõe a compra de mais Caveirões, mas a proteção de carros usados no patrulhamento de áreas mais perigosas da cidade.
[g1_quote author_name=”Julita Lemgruber” author_description=”Socióloga” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Todo mundo sabe que boa parte das armas entra nas favelas pelas mãos de policiais
[/g1_quote]Socióloga, ex-ouvidora das polícias do Estado do Rio e ex-diretora do então Departamento Penitenciário, Julita Lemgruber é mais radical. Para ela, a volta das Forças Armadas é “inútil” e serve apenas para “transmitir uma falsa sensação de segurança”. Chega a classificar de “hipócrita” a declaração de Raul Jungmann, ministro da Defesa, que falou em “curva de aprendizagem” ao avaliar uma operação do Exército que apresentou poucos resultados.
“Todo mundo faz de conta, parece que vivemos num mundo da fantasia. Isto (a declaração de Jungmann) é coisa do governo Temer, desconectado da realidade. Ele (Temer) não disse que a reforma trabalhista foi um sucesso?”. Julita ressalta que durante a ocupação por 15 meses de favelas do Complexo da Maré foram gastos R$ 600 milhões. “O tráfico na Maré teria acabado se este valor tivesse sido distribuído aos jovens que vivem lá”, ironiza.
Julita defende que o investimento deveria ser feito em ações de inteligência, que impedissem a chegada de armas e de drogas às favelas: “A polícia não investiga, num estudo que fiz sobre presos provisórios, descobri que 95% das prisões de suspeitos de tráfico foram em flagrante. Ou seja, não há investigação”. Ela cobra também uma atuação mais efetiva ao combate da corrupção policial: “Todo mundo sabe que boa parte das armas entra nas favelas pelas mãos de policiais”, completa.
Duarte e Julita concordam que a presença contínua dos soldados gera desgaste para as Forças Armadas. “Há o risco de desvios e de frustração da expectativa da população”, frisa o coronel. A socióloga também fala em “contaminação de soldados pela corrupção” e destaca a possibilidade de banalização de tropas que têm como missão principal o combate a inimigos externos. “Não temos uma guerra no Rio”, afirma. Segundo ela, o Estado do Rio não tem política de segurança pública, mas o que classifica de “estratégia de enfrentamento violento ao tráfico”.
Duarte lembra que o armamento pesado de bandidos é um fenômeno que começou no fim dos anos 1980, quando a cocaína aumentou o ganho daqueles que comercializavam drogas ilegais: “No meu tempo de tenente, cuidava de roubos de bancos, de residências, de lojas, o tráfico de drogas não chegava a ser uma preocupação, os bandidos usavam o ‘trêsoitão’ (revólver calibre 38)”.
O ex-comandante da PM alerta que a situação da violência no Rio é bem complexa, não pode ser combatida apenas com o uso da polícia. A identificação de tantos jovens com o universo simbólico do tráfico levou ao que ele classifica de “crime coletivizado”. Ele fala em ideia de coletivo, de facção, em sensação de poder – tudo potencializado pela chegada dos fuzis. “Você pode desbaratar o tráfico em uma favela, mas ele não acaba, existe um exército de reposição pronto para assumir o lugar daqueles que foram presos ou mortos, é algo que vai muito além da criminalidade”, conclui.
Também para ler de novo. No dia 22 de novembro de 1994, a manchete de O Globo foi “OAB critica a ação do Exército”, numa referência a abusos cometidos durante operações em favelas. Também na primeira página, o jornal citava a decisão de um pedreiro de processar a Marinha: ele fora atingido pelo disparo acidental da metralhadora de um fuzileiro.
Naquele mesmo dia, a Folha de S.Paulo, em editorial, afirmou: “Poucos resultados efetivos e muito abuso de autoridade. É assim que se pode definir a primeira intervenção mais direta do Exército no combate à criminalidade no Rio.”
É carioca, jornalista e escritor. Trabalhou na 'Folha de S.Paulo', 'O Estado de S.Paulo', 'O Globo', TV Globo, 'O Dia', CBN, 'Veja' e CNN. Coordenou o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira da Fundação Getúlio Vargas. É ganhador de dois prêmios Vladimir Herzog e integrou a equipe vencedora do Prêmio Embratel de 2015. É autor de seis romances, entre eles, 'Elefantes no céu de Piedade' (Editora Patuá. 2021).