Vale tudo para viralizar em meme

Novela de Manuela Dias transforma o TOC em piada, derrapando na responsabilidade e no cuidado necessários para abordar um transtorno de saúde mental

Por Simone Barreto | ArtigoODS 3
Publicada em 11 de setembro de 2025 - 13:27  -  Atualizada em 11 de setembro de 2025 - 13:44
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Marco Aurélio, o vilão interpretado por Alexandre Nero no remake de Vale Tudo: folclorização de transtorno de saúde mental. Reprodução/TV Globo

Convivo com o TOC – transtorno obsessivo-compulsivo – há 30 anos e posso afirmar: não é engraçado, não é mania de arrumação, excentricidade, e muito menos deveria ser gracinha no roteiro de novela do horário nobre da televisão brasileira. O TOC é um transtorno psiquiátrico crônico – ou seja, não tem cura – e que provoca imenso sofrimento nas crises mais agudas. Seu tratamento envolve terapias e  remédios. Sou casada com uma pessoa incrível que sofreu e camuflou por anos os sintomas da doença, com seus pensamentos intrusivos, antes de ter o diagnóstico e começar o tratamento apropriado. Então, quando o personagem Marco Aurélio, da novela “Vale Tudo”, interpretado por Alexandre Nero, estremece diante de uma pintura fora de esquadro, ou de uma roupa monocromática, e vira piada, isso me faz pensar sobre empatia, conhecimento e na responsabilidade da autora (Manuela Dias), para tratar de uma questão de saúde mental.

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O alcance de uma novela – ainda mais com a expectativa gerada pelo remake de obra tão icônica – justifica minha preocupação, especialmente em relação a adolescentes que convivem com o TOC. Como devem se sentir quando veem seu transtorno tratado como mania de perfeição, ignorando os pensamentos que monopolizam sem compaixão suas cabeças. Nosso filho mais velho também foi diagnosticado com TOC aos 13 anos (muito antes do pai). Em 2017, já tínhamos conhecimento maior sobre o transtorno que nos parecia menos estigmatizado e a medicina psiquiátrica havia avançado mais no sentido de difundir informações sobre o TOC. “A primeira vez que senti uma representação empática foi aos 12 anos quando li o livro de John Green, ‘Tartarugas até lá embaixo'”, conta N. hoje com 21 anos. “Esse livro me levou a pensar no TOC como uma espiral, algo que você segue infinitamente até o fim”. A obra de Green foi adaptada para o cinema e é um ótimo exemplo de como se pode escrever com empatia, fugindo dos estereótipos de um transtorno que usualmente se torna mais um meme consumido como um chiclete.

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Histórias bem contadas – em livros, filmes, séries, quadrinhos ou novelas – ensinam, divertem, apaixonam, revoltam. Podem nos libertar de dores e de preconceitos. Quando nos identificamos, nos sentimos representados por aqueles personagens, somos a protagonista, o narrador, a cidade, a música, os problemas e as complexidades.

Em 2019, a escritora espanhola Rosa Montero publicou o livro  “A ridícula ideia de nunca mais te ver”, depois da morte de seu companheiro de vida e de ler o diário de Marie Curie, que também falava da perda do marido. O título da obra de Montero saltou aos meus olhos poucos dias depois de eu mesma sofrer com a despedida abrupta de minha mãe – tive a certeza de que estava recebendo, ali dentro da livraria e diante da mesa de exposição, um recado impossível do além. Era ridículo mesmo pegar o telefone pela manhã e logo cair a ficha de que não ouviria mais a voz da minha companheira de conversas pequenas do outro lado.  Abrir o livro e ler aquela história de luto e de amor foi como se eu ganhasse um abraço. As histórias também consolam. 

O remake de Vale Tudo trouxe uma série de questões importantes para discussão pública e que representam a população, como o alcoolismo (e as reuniões dos Alcoólicos Anônimos), o direito à pensão alimentícia (provocando um aumento de 300% de acesso ao aplicativo da Defensoria Pública no Rio de Janeiro) e outras que passaram tão rápido que o telespectador nem teve tempo de digerir, como a venda de bebês reborn. Mas a naturalização do racismo, debate relevante, atual e sempre bem-vindo, poderia ter sido discutida com maior vagar.

Aliás, essa é uma característica da versão 2025: a pressa. As questões levantadas na trama duram o tempo de um reels, um tuíte ou um vídeo do Tik Tok. Somos todos assim tão superficiais como o texto quer nos fazer crer? A responsabilidade de quem escreve uma novela deveria ser proporcional ao tamanho de sua audiência. Quando Maria de Fátima (interpretada pela atriz Bella Campos) foi ladeira abaixo depois de expulsa da mansão dos Roitman, a audiência daquela semana registrada pelo instituto Kantar Ibope foi de 26,3 pontos de média. Na Grande São Paulo, Vale Tudo tem uma média de 22,8 pontos de audiência – cada ponto equivale a 77,5 mil domicílios sintonizados; isso significa que quase 1,8 milhão de aparelhos estão conectados àquela história somente numa região do país. É muita gente. O sonho de qualquer bom contador de histórias. Quantas pessoas para informar, emocionar, assombrar, engajar (porque isso é condição para o que passa na tela da tevê). 

Mesmo assuntos difíceis podem ser tratados com empatia. Ou talvez, sobretudo os assuntos difíceis devem ser tratados com empatia. Uma última história antes de me despedir. Ao descrever o holocausto brasileiro, o extraordinário livro de Daniela Arbex (que virou documentário e pode ser visto no streaming) evidenciou as atrocidades cometidas no Hospital Colônia de Barbacen a, em Minas Gerais, aberto em 1903. A história é monstruosa e Arbex escreve com empatia e depois de muita pesquisa. A narrativa nos causa aversão por tamanho sofrimento, e eu acreditava que aquilo estaria a mil léguas submarinas da minha existência. Porém, o livro foi além do papel de registro histórico (afinal, as histórias bem contadas também estão aí para provocar).

Num encontro de família, ouvi uma revelação que jamais esperaria: nossa tataravó materna fora mandada pelo marido de trem até o “hospício” de Barbacena após o nascimento de seu terceiro filho, porque “havia enlouquecido” de tal maneira que abraçava árvores, chorava pela rua nas madrugadas, tinha virado uma “histérica” – provavelmente vítima de uma depressão pós-parto, condição sem diagnóstico e estigmatizada no início do século 20. A imagem de uma mulher da nossa família entrando num trem a caminho desse isolamento a quilômetros de sua cidade e vivendo na solidão e no caos me dói intensamente até hoje. Histórias nos revelam segredos que talvez nem quiséssemos saber, mas que transformam nossa maneira de viver e de enxergar o outro.

Roteiros como o escrito por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, em 1988, ficam marcados em nossas memórias por muito mais tempo do que um meme, porque representam o espírito de um tempo e não somente o que está bombando na internet. Talvez por isso tanta gente tenha se interessado pelo remake de uma obra lançada décadas atrás, e em como esse marco das telenovelas seria atualizado para o nosso tempo de agora. Tudo que é (ou parecia ser) sólido se desmanchou no ar.

Simone Barreto

Jornalista e mineira de Juiz de Fora.

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