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Sobrevivência na fila do SUS não é um ato de coragem

Relatório do Ministério da Saúde revela que mais de um milhão de pessoas estão na fila à espera de cirurgias eletivas

ArtigoODS 3 • Publicada em 29 de novembro de 2023 - 08:23 • Atualizada em 29 de novembro de 2023 - 09:25

Escrevo diretamente da poltrona de um quarto de hospital nesse momento. Estou como acompanhante há sete dias, entre a angústia do não-saber e as possibilidades de diagnóstico, previsão de alta ou quando essa rotina interminável terminará. Sinto que o cheiro dos corredores do hospital já está na minha casa e às vezes que eu durmo em casa, sonho que estou dormindo no quarto hospitalar. Um dilema entre o pesadelo da realidade presente e a vida como ela é?

Um enfermeiro chamado Edinardo acabou de entrar aqui com a piada pronta: “chegou a hora do open bar de soro”. À direita, vejo um aparelho de monitoramento de saturação que mostra as linhas de sobrevivência. À esquerda, vejo a torre de soro e o quadro de planejamento terapêutico. Respiro e me sinto física e emocionalmente sufocada em um quarto individual de um hospital particular.

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Fui transportada para quase 20 anos atrás, quando, em uma rotina bastante semelhante, ia visitar minha avó materna, Alaíde Alves, no hospital universitário Antônio Pedro, no Rio de Janeiro. O quarto era coletivo, então, a monotonia da privacidade não existia. Era a gente e mais dezenas de famílias matando a saudade e trocando afeto em uma cena confusa e nostálgica demais para a minha memória.

Inevitável não lembrar das pessoas que não tiveram a mesma chance e morreram à espera de uma alternativa de tratamento ou cirúrgica com a mesma dignidade e rapidez. Embora eu seja defensora orgulhosa do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), do qual eu mesma usufruo e dependo quando preciso, a expressão “morreu na fila do SUS” é assustadoramente real e digna de atenção.

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Divulgado esse ano, um relatório do Ministério da Saúde revelou que mais de um milhão de pessoas estão na fila do SUS à espera de cirurgias eletivas (procedimentos já agendados e sem urgência) em todo o Brasil. Goiás, por exemplo, é o estado que tem a maior fila, seguido de São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco. Os dados se referem aos 26 estados e o Distrito Federal que mapearam e reportaram o número de pacientes na fila por procedimentos cirúrgicos.

Contudo, eu não escrevo de um hospital público, tampouco enfrentei fila para internar meu companheiro. Muito pelo contrário. A saúde privada tem seus privilégios e lucros que exacerbaram ainda mais as desigualdades de renda e acesso aos que precisam sobreviver. Me sinto um pouco perturbada com a contradição de um Brasil onde, em caráter de urgência ou não, é fácil se internar e receber um tratamento quase exclusivo de qualidade ser o mesmo onde mais de um milhão de pessoas estão na fila do SUS — esperando e morrendo.

Hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói: "famílias matando saudade e trocando afeto". Foto Divulgação
Hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói: “famílias matando saudade e trocando afeto”. Foto Divulgação

Diferentemente do que os livros e discursos dos coaches vendem, sobreviver não é para quem tem coragem apenas. É para quem tem capital e plano de saúde? Eu faço coro para dizer que o SUS salva vidas no Brasil — mas nem sempre temos tempo. A virtude da coragem, a qual eu me apego em tempos de declínio da nossa saúde mental coletiva, não fura a fila do SUS, nem acelera um agendamento da classe operária e trabalhadora. Talvez seja mais honesto dizer que a morte é uma tragédia baseada na coragem e esperança dos que não tiveram alternativa a não ser esperar até a morte.

Os meus dias de vai e vem ao hospital me lembraram também o auge da pandemia, onde as pessoas davam entrada no hospital sem saber se voltariam para casa. Onde famílias desesperadas aguardavam ansiosamente pelos reportes diários de seus entes que não conseguiram escapar dos sintomas fatais da Covid-19. A fragilidade da vida em questão de segundos, em meio à incerteza de quem pode resistir a um vírus e suas variantes.

Não quero concluir difamando o Ministério da Saúde, tampouco pressionando as operadoras de planos de saúde para que ofereçam opções mais acessíveis. A verdade é que nem todo mundo consegue lutar com as ferramentas mais certeiras quando a saúde está em falta. Quem está fisicamente adoecido não vai conseguir militar, escrever coluna, organizar campanhas de pressão política e participar de audiências públicas ou Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI). Quem está com a saúde por um fio quer simplesmente sobreviver.

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