O poder sobre quem entra e quem sai

O Brexit demonstra o fracasso da Europa em oferecer a estrangeiros uma hospitalidade sem condição, proposta pelo filósofo Jacques Derrida

Por Carla Rodrigues | Artigo • Publicada em 4 de julho de 2016 - 11:38 • Atualizada em 5 de julho de 2016 - 11:36

Menino passa por tenda em campo de refugiados de Calais
Menino passa por tenda em campo de refugiados de Calais
Menino passa por tenda em campo de refugiados de Calais

Uma das primeiras reações depois do anúncio da decisão do Grã Bretanha de deixar a União Europeia foi registrada pelo jornal inglês The Guardian, numa reportagem que apresenta uma ampla lista de países também dispostos a deixar a UE. Holanda, França, Itália, Áustria, Alemanha, Dinamarca e Suécia, este último o que explicita de modo mais contundente o argumento em jogo: fazer com que o país se torne soberano de novo. Articule-se este elemento à recente decisão de uma vila de milionários na Suíça, que preferiu pagar multa equivalente a R$ 1 milhão a receber 10 refugiados, e se tem uma combinação em que a soberania dos estados parece tanto mais ameaçada quanto mais haja a entrada de “estrangeiros”, ainda que estes estejam vindo de países antes colonizados pelas nações europeias.

O Brexit – ou a saída – torna atual o debate que o filósofo franco-argelino Jacques Derrida estabeleceu na França dos anos 1990 quando propôs a ideia de “hospitalidade sem condição”. Nas inúmeras entrevistas que concedeu para tentar explicar a contradição do termo, Derrida incomodava seus interlocutores ao afirmar que a hospitalidade sem condição permanecia impossível de ser traduzida numa lei. Ao mesmo tempo, afirmava como tarefa política a necessidade de encontrar a melhor transação legislativa e as melhores condições jurídicas a fim de respeitar esse princípio da “hospitalidade sem condição”. Para isso, dizia ele, seria preciso “transformar leis, hábitos, fantasmas, toda uma ‘cultura’”.

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A hospitalidade kantiana se fundamentaria, também, num direito natural, ligado ao pertencimento ao solo. Para fazer essa ligação, Kant defende a “posse comum da superfície terrestre”. Derrida observa que essa proposição excluiria tudo que se ergue – como a cultura ou o Estado –, garantindo assim aquilo que faz parte da motivação do Brexit e de tantas outras possibilidades de saída: manter a hospitalidade sob o controle da soberania estatal.

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As transformações não só não vieram nesta direção como foram no sentido oposto. Em grande medida a União Europeia, cuja história começa depois da Segunda Guerra Mundial, acabou por funcionar como mais um elemento de perda de soberania dos estados, já tão ameaçada em diversas frentes. Por um lado, as exigências de circulação do capital – seguindo aqui o diagnóstico do geógrafo inglês marxista David Harvey – fortaleceram grandes corporações transnacionais, seja no campo empresarial, esportivo ou em organizações não-governamentais, por mais bem intencionadas que sejam. Por outro lado, a manutenção de leis de direito internacional concebidas no século XVIII mantinham as restrições da circulação de pessoas.

As leis internacionais de imigração guardam marcas da concepção moderna de Direito Cosmopolita, tal qual concebido pelo filósofo alemão Imanuel Kant em 1795. Grande parte da argumentação de Derrida em relação à hospitalidade sem condições se dá a partir de um enfrentamento crítico das proposições que regulam as relações entre um Estado e os cidadãos dos outros Estados. De forma muito resumida, Kant define que a hospitalidade universal deve ser dada ao estrangeiro, identificável como cidadão em outro país, a quem se deve conferir apenas o direito de visita, não de residência. A partir daí, Derrida passou a pensar sobre o problema daqueles que chamou de sans-papiers – os sem documentos, e portanto sem cidadania e, consequentemente, sem lugar – como o que restava impensado no cosmopolitismo.

A hospitalidade kantiana se fundamentaria, também, num direito natural, ligado ao pertencimento ao solo. Para fazer essa ligação, Kant defende a “posse comum da superfície terrestre”. Derrida observa que essa proposição excluiria tudo que se ergue – como a cultura ou o Estado –, garantindo assim aquilo que faz parte da motivação do Brexit e de tantas outras possibilidades de saída: manter a hospitalidade sob o controle da soberania estatal. De certa forma, os grandes blocos regionais funcionam movidos por interesses econômicos – e o fato de a Grã Bretanha nunca ter aderido à zona do euro e ter mantido a moeda própria é só um sinal do quanto a ilha sempre esteve com um pé fora do continente europeu –, interesses de circulação de capital e mercadoria em nome dos quais pode até ter sido necessário abrir mão de alguma soberania. No entanto, quando esta soberania está ameaçada pela circulação de pessoas, as fronteiras dos Estados voltam a ser marcos fundamentais de poder sobre quem entra e quem sai.

Carla Rodrigues

Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio), e pesquisadora da teoria feminista. Coordena o laboratório "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" (UFRJ/CNPq). É autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU Editora, 2013).

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Um comentário em “O poder sobre quem entra e quem sai

  1. Hylton Sarcinelli Luz disse:

    O enriquecimento das nações europeias e o colonialismo praticado por elas são aspectos indissociáveis, não ignorado pelo mundo, muito menos pela maior parte da população das nações colonizadas. Mormente quando o atual regime de exploração das riquezas e geração de lucros permanece em mãos dos grande conglomerados industriais e financeiros situados nos países colonizadores. Na medida em que existe livre fluxo para os recursos financeiros e as riquezas, tornam-se argumentos incompreensíveis as justificativas para as barreiras ao fluxo humano. Ainda mais quando é consensual que as condições de vida da grande maioria dos migantes está muito aquém do nível de vida europeu. O separatismo nacionalista não pode deixar de ser visto como uma concepção que suscita a exigência por reparações e que se envolve com um regime de violências praticadas, sejam no passado, sejam ainda vigentes no regime exploratório das riquezas das nações mais pobres. O momento é muito grave e exige um olhar abrangente, muito para além das questões econômicas.

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