A editora que constrói pontes

Do começo no sebo Dantes em 1994 a projetos de livros e exposições, Anna Paula Martins reúne índios, artistas e comunidades em experiências colaborativas

Por Mànya Millen | ODS 9 • Publicada em 6 de fevereiro de 2016 - 10:00 • Atualizada em 24 de fevereiro de 2016 - 13:43

Anna Paula Martins, a Anna Dantes: colaboração presente em tudo
Anna Paula Martins, a Anna Dantes: colaboração presente em tudo
Anna Paula Martins, a Anna Dantes: colaboração presente em tudo

“Por mares nunca dantes navegados”. Um dos versos mais famosos do épico “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, serviu de inspiração e epíteto para o sebo que Anna Paula Martins inaugurou, em setembro de 1994, na rua Dias Ferreira, no Leblon. Com estantes lotadas de raridades quase sempre garimpadas em coleções de bibliófilos, a Dantes Livraria trazia como logomarca uma pequena caravela singrando as águas, e a frase do clássico do autor português logo abaixo. De lá para cá, muita coisa mudou. Em 1997 a Dantes tornou-se também editora, com o lançamento de “O subterrâneo do Morro do Castelo”, romance inédito de Lima Barreto, e a partir daí foram dezenas de títulos publicados, entre não ficção e literatura, de Hans Staden a Ana Miranda, tendo o Brasil e a memória como eixos centrais. Em 2004, nos dez anos da casa, ela saiu do Leblon e deixou de ser livraria. Naquele momento, até a logomarca ficou diferente, perdendo a frase e ganhando, abaixo da caravelinha, o símbolo do infinito. E justamente aí está a informação principal, a indicação de que o fundamental não mudou: aquela história inicial do “nunca dantes”. A curiosidade de Anna ajudou a soprar o barco em direção a paisagens cada vez mais distantes, ainda não exploradas. E o que era Dantes, a livraria e editora, passou a ser inclusive nome próprio, pois Anna Paula Martins já virou, há muito tempo, Anna Dantes.
Com projetos que se multiplicam em várias frentes, de livros a exposições, ela funciona como uma espécie de ponte, como descrevem os amigos e parceiros de trabalho, entre espaços, linguagens e culturas que aparentemente não conseguem conversar. Com o projeto “Setor X”, por exemplo, tem ajudado a promover a arte produzida por moradores da periferia do Rio em oficinas editoriais que se transformam em publicações caprichadas. Um dia, ao buscar a tradição artesanal das gráficas da área portuária, encontrou um ofício ameaçado pela especulação imobiliária e pelo avanço da tecnologia, e desde então batalha para que ele permaneça no mapa cultural carioca. Convidada para editar o “Una Isi Kayawa – Livro da Cura”, sobre o poder medicinal do povo Huni Kuin, do Acre – que conquistou, em 2015, o 3º lugar da categoria Ciências da Natureza do Prêmio Jabuti –, conectou-se tão profundamente a este universo que está editando uma segunda obra com os Huni Kuin, além participar da curadoria do Moitará, evento criado ano passado para revitalizar o Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília.
Experimentar, agregar e compartilhar são ações presentes na trajetória de Anna desde os tempos em que promovia grandes happenings na Dias Ferreira, em frente à livraria, juntando autores e público em torno do livro. Ela diz que nunca planejou caminhos, foi apenas seguindo sua curiosidade de experimentar novos formatos de edição, de buscar novas vozes.
dantes-manyamillen– Pensando hoje no que fizemos, acho que talvez nenhuma marca seja tão coerente com o símbolo que ela traz como a Dantes. A caravela, o navegar no infinito, esse barquinho que olha o antes, o que foi feito lá atrás, mas também antevê algo – conta Anna. – A movimentação que acontece agora no mercado, de ter editoras mais artesanais, já fizemos há muito tempo. Na Dantes entendemos que existe uma ideia que um dia vai se tornar um livro, e essa ideia vai encontrar sua própria forma de se expressar. O mergulho no conteúdo, e não numa interpretação do conteúdo, acabou desenvolvendo muitas coisas. Entre elas a questão da edição compartilhada, de trabalhar diretamente com os autores durante todo o processo. É a ideia de fazer algo que não seja só um registro, e sim uma troca, uma transformação coletiva de quem está participando. Acho que temos uma história boa para contar.

[g1_quote author_name=”Ernesto Neto” author_description=”Artista plástico” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Tudo o que a Anna toca floresce. Ela tem uma capilaridade que vai atraindo as pessoas ao redor, porque onde há um problema, Anna cria uma solução. Integra tudo, sem preconceito

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E a história, lembra Anna, não poderia ter sido contada se não houvesse colaboradores apaixonados pela mesma ideia. Um deles é o artista plástico Ernesto Neto, amigo de longa data, parceiro num selo da Dantes (o Lábia Gentil, feito em conjunto com a galeria Gentil Carioca, da qual é um dos sócios), e também um dos curadores do projeto Moitará.
– Tudo o que a Anna toca floresce. Ela tem uma capilaridade que vai atraindo as pessoas ao redor, porque onde há um problema, Anna cria uma solução. Integra tudo, sem preconceito – conta ele.

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O Moitará, evento criado para revitalizar o Memorial dos Povos Indígenas

Neto, um dos principais nomes da arte contemporânea brasileira, foi convidado por Anna em 2013 para ir ao Acre conhecer os Huni Kuin e, desde então, tem feito diversas exposições usando elementos da cultura indígena, em colaboração direta com eles. Em 2015, quando apresentou, no museu Thyssen-Bornemisza Art Contemporary, em Viena, a mostra “Sagrado segredo”, Neto levou uma comitiva de pajés que criou, dentro da instalação, um espaço de ritual xamânico. Durante os meses em que a mostra esteve em cartaz houve seminário, laboratório, encontros e aulas que ajudaram a promover o conhecimento indígena, uma das grandes batalhas de Neto – além de participar da curadoria do Moitará, ele também integra o Instituto Guardiões da Floresta e o Txai (Tradições Xamânicas da América Indígena) – e Anna.
– Meu trabalho sempre foi conectado à natureza, e depois que me aproximei dos Huni Kuin ele apenas se confirmou nesse caminho, as obras ganharam uma dimensão muito maior. Encontrei mestres incríveis – lembra Neto, que em março vai inaugurar uma exposição em Helsinque, na Finlândia, e em abril na Dinamarca. – Precisamos urgentemente estudar os indígenas, tudo em torno dele. Amo o Brasil, e se queremos melhorar a vida do povo brasileiro, precisamos começar a ouvir e a valorizar o povo indígena. O ventre do país é indígena. A importância disso para a nossa sociedade é incrível.

[g1_quote author_name=”Ailton Krenac” author_description=”Escritor e líder indígena” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Neto e Anna têm o dom de serem pessoas-pontes. A ideia de colaboração depende basicamente da disposição de alguém, e isso ajuda a viabilizar recursos, ampliar as vozes. É muito mais potente

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Outro grande parceiro de Anna é o ambientalista, escritor e líder indígena Ailton Krenak, um interlocutor precioso com os Huni Kuin no processo de edição do “Livro da Cura” – ele chama de irmão o pajé Agostinho Manduca Ika Muru, idealizador da obra (e co-organizador, ao lado de Alexandre Quinet), que morreu sem ver seu maior sonho concretizado.
– Neto e Anna têm o dom de serem pessoas-pontes. A ideia de colaboração depende basicamente da disposição de alguém, e isso ajuda a viabilizar recursos, ampliar as vozes. É muito mais potente – observa Krenak, que levou a editora e o artista plástico para conhecerem o Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília, dirigido por Alvaro Tukano, até então sem ajuda para transformar o lugar em um espaço real de difusão de saberes. – Conseguimos o apoio imediato do Francisco Bosco (presidente da Funarte) e fizemos durante dois meses o Moitará, nome que evoca um rito que existe entre os Tupi, do Xingu, especialmente os que fazem o quarup. É um ritual de troca. Trocam comida, sementes, cestos, saberes, o que tiverem, mas não é o valor em si que conta, e sim os afetos nessa relação. Exploramos a beleza dessa ideia.

Livro vivo e colaborativo

Para 2016, Krenak já começou a idealizar para o espaço uma série de conferências de representantes indígenas de diferentes tradições das Américas, do Chile ao Canadá, da Guatemala ao México. E continua ao lado de Anna no novo projeto com os Huni Kuin, o “Una Isi Kutã – Livro da Proteção”, que reunirá num único volume os cadernos dos pajés que vivem nas aldeias ao longo do Rio Jordão. São anotações detalhadas sobre sua medicina sagrada, em páginas com coloridos desenhos das plantas e registros sobre seus usos e poderes. Anna já tem o apoio do programa Rumos, do Itaú Cultural, mas ainda precisa de patrocínio para viabilizar mais viagens ao Acre e a impressão em papel pet, muito mais caro, mas fundamental, já que o livro será distribuído nas aldeias e precisa ser resistente às intempéries da floresta. Tanto o “Livro da Cura” quanto o “Livro da Proteção” integram um projeto que os indígenas chamam de Livro Escola Viva, ou Livro Vivo, e foram trabalhados numa estreita parceria com a editora, desde a diagramação até a criação de uma fonte tipográfica especial desenvolvida colaborativamente, inspirada nas letras manuscritas dos Huni Kuin.
Anna diz que nunca imaginou que fosse se relacionar tão de perto com povos indígenas, e reconhece que a proximidade mudou completamente sua visão de mundo.
– Você se reconecta com o sagrado, que não tem a ver com religião, e passa a entender que está tudo ligado, entende mais essa rede de vida. Isso tudo colaborou para que eu tivesse hoje um senso de responsabilidade muito maior com meus movimentos – resume. – Por isso me encantou tanto o projeto Livro Vivo. Se sentamos e conversamos sobre o livro hoje, ele está vivo. E se daqui a 50 anos essa conversa continuar, ele permanece vivo. A noção de uma voz que permanece no tempo e no espaço é incrível.

Reunião da "Setor X" na PUC-Rio
Reunião da “Setor X” na PUC-Rio

Além dos livros dos pajés, outro exemplo de permanência e multiplicação usado por Anna é a revista “Setor X”, que terá seu sexto número lançado em março. A publicação é resultado do laboratório de produção editorial iniciado em 2010 nas bibliotecas parque de Manguinhos, Rocinha e Alemão, para moradores destas comunidades, e promovido pela Secretaria de Cultura do Estado até junho do ano passado. Sob a coordenação de Anna, as oficinas gratuitas de texto e imagem com professores como o poeta Carlito Azevedo, a designer Juliana Wähner e o fotógrafo Rodrigo Alcon Quintanilha foram um sucesso, e o projeto foi destaque na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2015. A mesa mediada por Carlito, com a participação de Geovani Martins, criado na Rocinha; Deocleciano Moura, ex-morador de Manguinhos, e a alemã Katja Hölldampf, moradora do Chapéu Mangueira mas frequentadora do curso no Complexo do Alemão, encantou a plateia.
– A “Setor X” permite que uma pessoa de São Paulo, na Flip, entre em contato, dialogue com alguém da Rocinha, de Manguinhos. Um livro permite que o pajé Agostinho, que já fez a passagem, ganhe um Prêmio Jabuti, seja homenageado. Isso é o livro, sempre foi, mas hoje em dia a gente tem a possibilidade de ver o autor participando mais dele – explica a editora.

[g1_quote author_name=”Carlito Azevedo” author_description=”Artista plástico” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Do trem para chegar em Manguinhos, da van para subir a Rocinha ao teleférico para subir o Alemão, o convite feito pela Anna para participar disso multiplicou meu olhar por muitos mil pontos de vista

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Com o fim do projeto nas bibliotecas parque, Anna encontrou na PUC-Rio uma parceira para o novo número, feito em apenas seis dias com a colaboração de 35 pessoas, entre professores e alunos, vindos de diversas partes da cidade. Outras edições poderão brotar dentro da universidade carioca, mas também fora dela.
– Nós três chegamos num lugar, juntamos um povo e fazemos uma revista – brinca Anna, referindo-se aos colegas Carlito e Alcon, que compõem o núcleo básico do projeto hoje. – Temos a sorte de encontrar muitos parceiros bacanas.
Carlito, ele mesmo um desses preciosos colaboradores, conta que a experiência com a “Setor X” reinventou sua forma de “pensar, escrever e habitar a cidade”.
– Do trem para chegar em Manguinhos, da van para subir a Rocinha ao teleférico para subir o Alemão, o convite feito pela Anna para participar disso multiplicou meu olhar por muitos mil pontos de vista – afirma Carlito. – O que vejo de mais constante nela é exatamente a capacidade de nunca ser a mesma pessoa, e de reinventar os lugares descobrindo neles o que eles pensavam que não eram.
Foi assim, por exemplo, quando Carlito acompanhou Anna numa incursão pelas antigas gráficas da zona portuária do Rio. A caminhada, iniciada em 2009, gerou novos selos dentro da Dantes: o Pipa Livros, que estreou em 2012 com “Haikus”, livro do argentino César Aira, e o Lábia Gentil, ambos para abrigar obras artesanais em pequenos formatos e tiragens, todos editados em fina sintonia com seus autores, quando não pelos próprios autores. Mais que isso, porém, a incursão ajudou a chamar atenção para a importância histórica e cultural da tipografia tradicional. Uma arte cuja sobrevivência estava ameaçada não apenas pelas técnicas digitais de impressão, como também pelas obras do projeto Porto Maravilha, responsáveis pela especulação imobiliária na região, o que obrigou algumas empresas a mudar de endereço ou fechar as portas.
– Procuramos o Sebrae para tentar mapear essas gráficas, porque entendi que juntas elas poderiam formar um parque gráfico tradicional, e não poderiam ser consideradas indústria, mas sim memória – lembra Anna, que na época elaborou um relatório inicial sobre 20 casos. – A consultoria do Sebrae colaborou para criar uma estrutura de organização em algumas delas, não todas. Ainda não é o ideal, talvez o caminho seja um esquema de cooperativa, uma integração maior entre elas, buscar novos parceiros. O mundo inteiro está se voltando para a valorização do processo manual.

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O Inhotim não é somente um espaço de arte contemporânea, ele é um grande diálogo onde tudo está contemporâneo. Se existe uma comunidade quilombola ao redor, e ela interage com o lugar, ela é contemporânea.

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Entre os novos projetos de Anna está ainda a edição de um livro, em três volumes, sobre o Centro de Arte Contemporânea Inhotim, em Minas Gerais, que deverá ser publicado em setembro. Será mais um jardim no catálogo da casa, que em 2008 editou “O gabinete de curiosidades de Domenico Vandelli”, sobre a obra do naturalista italiano (1735-1816). Vandelli nunca esteve no Brasil, mas morou (e morreu) em Portugal, onde incentivou e idealizou viagens científicas – conhecidas como “viagens filosóficas” – da coroa portuguesa para catalogar a rica flora da colônia. Com “O gabinete”, aliás, a Dantes começava a embarcar naquela tal viagem mais ampla: além da obra em si, uma belíssima caixa que trazia vários pequenos livros, do fac-símile de um título do próprio Vandelli a textos de seus discípulos, a pesquisa de Anna rendeu também uma exposição sobre o naturalista para marcar os 200 anos do Jardim Botânico, numa espécie de edição tridimensional. Em 2009 ela voltou a unir os papéis de curadora e editora com a exposição e publicação do catálogo “Glaziou e os jardins sinuosos”.
A mostra sobre Vandelli viajou na época para o Centro de Arte Contemporânea Inhotim, em Minas Gerais, e agora o presidente e idealizador do instituto, o empresário Bernardo de Mello Paz, convidou Anna para a tarefa de elaborar um livro sobre a instituição. Não será, claro, um livro “de arte”, no sentido estreito do termo.
– O Inhotim não é somente um espaço de arte contemporânea, ele é um grande diálogo onde tudo está contemporâneo. Se existe uma comunidade quilombola ao redor, e ela interage com o lugar, ela é contemporânea. Se existe uma ráfia, uma árvore de Madagascar que está crescendo ali, ela é contemporânea ao que acontece ali, vamos mostrar isso – explica Anna. – O jardim não é moldura da obra de arte, faz parte de toda a experiência. O Bernardo fez o convite porque ele conheceu o projeto do Vandelli, então acho que de alguma forma caminhamos com honestidade dentro da nossa visão. Isso vai abrindo caminhos, mas nada é fácil…

Mànya Millen

Manya Millen é jornalista. Em 1989 ingressou na redação do jornal O Globo, onde trabalhou como repórter da área de cultura, editora assistente da editoria Mundo e, entre agosto de 2004 e agosto de 2015, como editora do caderno Prosa, suplemento de livros e debates do jornal.

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2 comentários “A editora que constrói pontes

  1. Ivone Maya disse:

    Muito bom o texto da jornalista e fascinante o trabalho da Anna , que conheço desde a Dantes de 1994. A capacidade de trabalho dela e a forma como olha com novos olhares coisas/elementos da cultura/arte brasileira produz uma energia criativa de imediato.

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