Ladeiras de Olinda que turistas não sobem nem descem

Fim do inverno promete alívio nas chuvas que ameaçam sete mil pontos de risco na cidade onde a população não está a passeio

Por Victor Moura | ODS 11 • Publicada em 27 de setembro de 2021 - 07:55 • Atualizada em 4 de outubro de 2021 - 09:10

Seu Antônio no Alto da Bondade: Olinda tem 7.200 pontos de risco monitorados (Foto: Victor Moura)

Após ter chovido a semana inteira, num sábado ensolarado peguei minha bicicleta rumo a Olinda. Fundada em 1535, a cidade é uma das mais antigas do Brasil. Nasceu no alto do morro, ao lado do mar, com vista privilegiada para o estuário dos rios Capibaribe e Beberibe. Naquela manhã, mesmo longe do ciclo carnavalesco, turistas encaravam o sobe e desce de suas ladeiras. Alguns se valiam do transporte motorizado. Outros subiam a pé. “Mãe, olha, dá pra ver tudo”, disse um menino após subir a Ladeira da Misericórdia cheio de energia. Nas ruas, silêncio. Lembrança de que ainda estamos numa pandemia. Apenas consegui ouvir frevo passando pelo Grêmio Musical Henrique Dias, onde músicos treinavam, e na caixinha de som de um ou outro comerciante. No Alto da Sé, sotaques misturados, cheiro bom e som de fotografia. O Centro Histórico, principal ponto turístico da cidade, é considerado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade desde 1982. Pouco mais de 20% do território é tombado enquanto Zonas Especiais de Proteção Cultural e Urbanística. Boa parte na (ou perto da) chamada cidade alta, onde eu “turistava”. Mas nem todo mundo sobe as ladeiras de Olinda a passeio.

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Logo fui pedalando até a parte noroeste da cidade, onde morros altos e populosos acumulam escadarias, ladeiras e áreas de risco. É onde 90% dos pontos se encontram. Aqui o barroco das igrejas é substituído pelo barrento das encostas. Já o colorido dos casarios coloniais dá lugar ao preto das lonas plásticas. Antes das “chuvas de inverno”, mais intensas entre março e junho, elas são colocadas paliativamente pela Prefeitura para diminuir a ameaça de um possível deslizamento de terra. Segundo dados de 2019, Olinda tem 7.200 pontos de risco monitorados.

Por meio da Lei de Acesso à Informação, procurei a Secretaria de Serviços Públicos do município. Na resposta, o secretário executivo de Defesa Civil, Manoel Cunha, cita e apresenta o PMRR: Plano Municipal de Redução de Risco, de 2006. Nenhum outro plano semelhante foi criado desde então. À época, foram propostas 65 obras estruturais em áreas de alto risco, ou próximas. O secretário não diz se ou quantas dessas obras foram feitas. Escreve que o poder público atua para manter a gestão de risco “em níveis aceitáveis”. Fui lá ver.

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Guidão da bicicleta do repórter, em primeiro plano, com um morro de Olinda ao fundo
De bicicleta pelos morros populosos de Olinda: 90% dos pontos de risco estão concentrados na mesma região (Foto: Victor Moura)

Ao longo das comunidades vizinhas às estradas de Águas Compridas e da Mirueira, vi adultos e até mesmo crianças andando em encostas totalmente desprotegidas. As casas estão numa topografia que varia entre 16 e 75 metros acima do nível do mar. Não é raro ouvir histórias de tragédia nesta região. Entre subidas e descidas, conversei com alguns moradores, mas ninguém quis aparecer. Numa dessas tentativas, subi uma das ladeiras e acabei assaltado enquanto trabalhava. Não era esse tipo de “ponto de risco” que procurava. Fiquei apenas com a bicicleta. Voltei para casa. Por sorte, salvara parte das anotações na nuvem.

Na manhã seguinte, apesar do sentimento ruim que não cessava, resolvi ir a campo com o que me restava. Mais cuidadoso, nas ruas principais, fui perguntando se era seguro se aproximar das encostas dos morros. Dentre muitos avisos, ouvi as seguintes falas: “Tem uma barreira ali, mas não é muito bom, não”, “Se você entrar lá, vai voltar sem nada”, “Aconselho você a não ir, mas se você quiser…”.

Seu Antônio no Alto da Bondade, em Olinda
Seu Antônio no Alto da Bondade, em Olinda, onde uma casa desabou na temporada de chuvas deste ano (Foto: Victor Moura)

No Alto da Bondade, uma rotina em meio ao barro e às lonas de plástico

Eu não quis. Continuei pedalando… e tentando. Em 2005, Olinda foi eleita a primeira Capital Brasileira da Cultura. Mas naquele domingo de sol e chuva, nenhuma cultura parecia estar tão presente quanto a da violência. “Aqui não tem estresse”, disse seu Antônio, de 67 anos, me tranquilizando em relação à segurança. Nos encontramos no Alto da Bondade, onde ele mora há 32 anos. Com as sandálias brancas meladas de barro, foi descendo a ladeira para me mostrar uma cratera aberta. A erosão está coberta por lonas plásticas. Durante as chuvas deste ano, uma casa despencou. Não houve mortes. “Saíram tudinho. Quem quer ficar aqui?”, questiona. Outras famílias ainda moram aqui.

Entre o Alto da Bondade e Passarinho, a ladeira que tem dois nomes (ruas do Cajá e da Comunicação) é a primeira na lista de prioridades do plano municipal. Há 15 anos já era classificada como área de alto risco, alta vulnerabilidade e baixo custo de intervenção estrutural por habitante. Hoje, o que alivia as frágeis condições do solo é uma canaleta colocada por seu Antônio com ajuda da vizinhança. Ele diz que, no segundo semestre de 2020, ano eleitoral, um vereador trouxe concreto para a rua, “para metade da ladeira”. A mão de obra ficou a cargo da população. A parte da cratera continua barrenta.

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Minha infância foi cortar cana, roçar mato. Minha mãe veio ‘simbora’, meus irmãos vieram ‘simbora’, aí eu vim ‘simbora’ também

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Seu Antônio nasceu em Escada, na Zona da Mata Sul pernambucana, em meio aos engenhos e canaviais. Estudou pouco. “Minha infância foi cortar cana, roçar mato. E depois que fiquei de maior, minha mãe veio ‘simbora’, meus irmãos vieram ‘simbora’, aí eu vim ‘simbora’ também”, relata. Com a crise na economia açucareira, abandonou a cidade natal por falta de oportunidade e comida. Chegando em Olinda, cuja fama e riqueza são frutos da cana-de-açúcar, ele construiu uma casa de taipa no alto do morro. Começou a trabalhar como servente e, depois, como pedreiro. Formou família. Tem cinco filhos. Apenas a caçula de 15 anos, adotada com meses de vida, ainda mora com ele.

De trocado em trocado, seu Antônio construiu sua casa de alvenaria. Hoje, mesmo aposentado e com dores nas costas, continua na labuta: “Quando aparece alguma coisa aí para fazer, eu faço”. As oportunidades são poucas. Ele é um homem idoso. Além do sustento do seu lar, continua aceitando bicos de pedreiro pelo sonho de poder dar uma casa própria a cada um dos filhos. Quatro dos cinco vivem de aluguel.

Dona Tô, moradora do Alto Nova Olinda
Dona Tô e o pé de mamão: casa com uma frágil grade de proteção na perigosa encosta em Sapucaia (Foto: Victor Moura)

A encosta desmorona com o passar dos anos em Sapucaia, perto do Alto Nova Olinda

Ao deixar o Alto da Bondade, segui em frente. Entre descidas e subidas, quatro quilômetros depois, encontrei um morador no topo da ladeira do Alto Nova Olinda, em Sapucaia. Lá em cima, ele me recomendou falar sobre a barreira com dona Tô, que tem 37 anos. “Quem chega aqui e me procura pensa que é uma senhora”, explica Jacilene Maria. O Tô vem de “toquinho”, um apelido de infância em referência ao seu tamanho. Já a terra vem da sua avó, que subiu o morro e trouxe junto a família inteira. A mãe é sua vizinha. O irmão também. Ela mora no mesmo lugar de sempre com marido, dois filhos e um cachorro.

Com o dinheiro do auxílio emergencial, iniciou a reforma da casa na intenção de distanciá-la o máximo possível da encosta, que está desmoronando lentamente com o passar dos anos. Na borda íngreme tem uma lona plástica desgastada e “um muro de arrimo incompleto que não garante segurança alguma”. Também vi um mamoeiro, árvore considerada perigosa por acumular água no solo. São pouco mais de 20 metros até lá embaixo. É uma queda praticamente reta.

[g1_quote author_name=”Jacilene Maria, a dona Tô” author_description=”Nascida e criada em Sapucaia, onde vive até hoje” author_description_format=”%link%” align=”right” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Quando chega o inverno é só desespero. Nem dorme o povo de baixo, nem dorme o povo de cima

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Com 8 anos, a pequena Tô chegou a cair da barreira. Em 2019, ao tentar pegar uma folha de aroeira, a cunhada também caiu. Quase morre. Foram oito meses em coma. Mesmo sobrevivendo, ficaram os traumas físicos e psicológicos. Depois dessa tragédia, o irmão improvisou uma grade como proteção. O quintal está cada vez mais curto. Ninguém chega perto. Em dias chuvosos, Tô passa a madrugada acordada. “Quando chega o inverno é só desespero. Nem dorme o povo de baixo, nem dorme o povo de cima. Mas depois do inverno é tranquilidade”, diz. As águas da chuva descem do morro pela canaleta feita pela Prefeitura, que passa por dentro da casa. Quando transborda, o chão dos cômodos fica enlameado, atraindo ratos e danificando móveis e eletrodomésticos.

Vista do Alto Nova Olinda
A vista vertiginosa à beira da barreira onde está a casa de dona Tô em Sapucaia: quintal cada vez mais curto (Foto: Victor Moura)

A Quarta-feira de Cinzas traz o medo de volta

Atualmente dona Tô faz bicos como cuidadora de idosos e vendedora de “pipoca e confeito” na porta de casa. Ela é enfermeira formada. Passa o dia no celular atenta a alguma oportunidade. Assim soube de um curso técnico gratuito de bombeiro civil, que acabou de começar. Estudando, trabalhando, tem buscado sossego para si e sua família. “Barreira, quero não. Todo ano essa agonia. Meu sonho mesmo é sair daqui. Ir para um canto que não tenha barreira”, diz. São 37 anos tendo o alto risco como companhia diária. Em Olinda, onde nasceu e cresceu, existem duas “cidades altas” contrastantes.

Cada qual com a sua história. As ladeiras de Olinda são feitas de alegria ou de medo. A natureza é a mesma. O endereço não. No último carnaval, em 2020, 3,6 milhões de pessoas subiram e desceram as ladeiras festivas. Havia mais turistas estrangeiros na cidade, 400 mil, do que moradores, 393 mil. Dos cofres públicos, a Prefeitura tirou R$ 2,4 milhões para movimentar R$ 295 milhões. Um faturamento de mais de 12.000%. Mas nada dessa grandiosidade carnavalesca parece impactar o cotidiano do olindense que mora no alto do morro, à espera de um “desastre natural”. Para essas pessoas, a Quarta-feira de Cinzas é apenas um sinal de que o inverno está próximo.

Victor Moura

Jornalista formado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e dedicado às periferias. Autor do livro-reportagem “Ciclo histórias pelo Recife” e do romance satírico “O primeiro objeto”. No carnaval, o coração se divide entre o frevo e o samba.

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