Crianças Terena sofrem na pandemia, sem aulas de português nem do idioma de sua etnia

Meninos, meninas e jovens de aldeia urbana em Campo Grande (MS) não têm acesso à internet para aulas remotas e pais sofrem com dificuldade para ajudar filhos nas tarefas pedagógicas

Por Ethieny Karen | ODS 4 • Publicada em 31 de março de 2021 - 08:58 • Atualizada em 7 de abril de 2021 - 09:33

Criança Terena desenha o coronavírus: pandemia prejudica dramaticamente educação na aldeia. Foto Ethieny Karen

Inamaty Kaxé, na língua terena, quer dizer Novo Dia – tudo de que precisam crianças e adolescentes da aldeia urbana localizada na periferia de Campo Grande (MS), que carrega o nome. Sem aulas presenciais devido à pandemia, meninos, meninas e jovens indígenas sofrem com o precário acesso à internet para o ensino remoto. E entre o idioma dos ancestrais e a língua dos colonizadores, o aprendizado torna-se inviável.

Comunidade com 70 famílias Terena, advindas de reservas do interior do estado, a aldeia Inamaty Kaxé ainda tem casas improvisadas com tapumes, lonas e pedaços de madeira. O material doado aos indígenas serve de estrutura para as casas de um ou dois cômodos, que abrigam até seis pessoas. Escola e posto de saúde ficam em outro bairro, obrigando os pais foram a caminhar para pegar atividades pedagógicas das crianças.

Rose Francisco da Silva, acadêmica de Letras na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, aponta a importância do respeito à lei da educação indígena. Ela é estagiária na Escola Estadual José Ferreira Barbosa, onde 60% dos alunos são de povos originários. “Sempre tem um evento cultural, onde são apresentadas as diversas culturas, tanto dos indígenas quanto dos negros, para que a visão preconceituosa seja quebrada, e possamos assim aprender a respeitar uns aos outros. Além disso, a escola fornece professor indígena, que é para manter e preservar a língua materna. Atuei dentro dessa sala”.

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Não existe educação específica, as atividades são as mesmas. Lá na aldeia tem aula de língua Terena, aqui (na cidade) não. Nenhum deles fala a língua do nosso povo. Tento conversar e passar, mas ninguém fala e eles vão perdendo. É tudo diferente

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Alessandro Mariano Pereira, 29 anos, aponta que na escola onde dois de seus cinco filhos estudam é diferente. Ele vê diferença na educação que o colégio ensina e a que ele recebeu na Aldeia Bananal. “Não existe educação específica, as atividades são as mesmas. Lá na aldeia tem aula de língua Terena, aqui (na cidade) não. Nenhum deles fala a língua do nosso povo. Tento conversar e passar, mas ninguém fala e eles vão perdendo. É tudo diferente”.

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Muitos pais da comunidade não terminaram os estudos e dependem da ajuda de parentes que concluíram o ensino médio, ou estão na faculdade, para ensinar os filhos. O cacique Josivaldo expõe que os problemas na educação se intensificam com a perda de emprego dos pais e a falta de acesso à internet. “Para manter não é fácil, a gente vive de doação. A maioria tem dificuldade em se deslocar até a escola para pegar as atividades e muitos que não têm acesso à internet. A gente depende muito da ajuda um do outro”.

Luana com três de seus sete filhos: moradia improvisada com tapumes, telhas e pedaços de madeira. Foto Ethieny Karen
Luana com três de seus sete filhos: moradia improvisada com tapumes, telhas e pedaços de madeira. Foto Ethieny Karen

Luana Figueiredo, 26 anos, tem sete filhos, quatro em idade escolar. Ela cuida sozinha das crianças – o pai trabalha na colheita de maçã no Rio Grande do Sul. Todo dia, Luana caminha uma hora até a escola e na volta, sem acesso à internet, se divide entre afazeres domésticos e a assistência na educação os filhos. “Na escola sabia que eles estavam seguros e aprendendo. Agora é bem mais difícil, ainda mais que tenho sete e preciso pegar os quatro da escola um por um, leva tempo para ensinar.”

As crianças também demonstram, em desenhos, a insatisfação por estarem longe da escola. Maria Eduarda, 8 anos, está no quarto ano e se queixa de ficar em casa. “Sinto falta de sair, né? De ter aulas de matemática e ver meus colegas”.

Segundo o IBGE, Mato Grosso do Sul tem a segunda maior população indígena do país – 63 mil pessoas distribuídas por nove etnias diferentes, categorizadas pela Subsecretaria Especial de Cidadania (Secid/MS). Os Terena sofrem com a divisão entre os idiomas. Leozilda, 56 anos, é avó das crianças e ajuda na criação dos filhos de Luana e dos outros netos. Durante o dia, fica com 13 crianças em casa. Nascida e criada na Aldeia Bananal, no interior do estado, faz questão de passar a língua materna aos netos. “Eu e as crianças não falamos direito o português, porque lá na aldeia a gente conversa no nosso idioma, mas os brancos entendem, mesmo com os erros”.

A família vive com R$ 700 mensais (arrecadados em programas sociais públicos), mas depende de doações e do “kit merenda” – auxílio da prefeitura para a alimentação de crianças matriculada, mas que não chega a todas. “Recebo o Bolsa Família, mas só três dos meus filhos recebem o kit da escola. Uma das minhas meninas não recebe e eles dizem que não tenho o cadastro, mas não entendo, porque dos outros eu recebo”, lamenta Luana, mais uma à espera da chegada do novo dia, que livrará os indígenas deste pesadelo.

Menina Terena faz a lição em cadeira improvisada como mesa: um dos poucos cantos iluminados da casa. Foto de Ethieny Karen
Menina Terena faz a lição em cadeira improvisada como mesa: um dos poucos cantos iluminados da casa. Foto de Ethieny Karen

Ethieny Karen

Jornalista formada pela UFMS, sul-mato-grossense com orgulho. Mulher negra, pansexual, artista, design gráfico, podcaster, roteirista e ativista antirracista. Roteirista do documentário "Diário da Favela: Mulheres" pela CUFA-MS e diretora do documentário "Laaye - Arte preta sul-mato-grossense". Fascinada por cinema, entretenimento e jornalismo independente. Sempre em busca de uma visão cada vez mais decolonial.

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