Mãe com câncer, filho sem aula: drama em família no sertão do Ceará

Vizinhos e parentes ajudaram a tomar conta de menino de 4 anos enquanto dona de casa se recuperava de cirurgia em Crato

Por Lição de Casa | ODS 3ODS 4 • Publicada em 24 de outubro de 2020 - 09:38 • Atualizada em 18 de novembro de 2020 - 09:00

Henrique Leonardo e Rosa na frente de casa no sertão do Ceará: dificuldade para tomar conta do menino durante pandemia e recuperação de cirurgia (Foto: Felipe Azevedo/Lição de Casa)

Felipe Azevedo*

A notícia de que a escola estaria fechada por tempo indefinido por causa do coronavírus veio junto com um diagnóstico de câncer de mama. Em março, Henrique Leonardo, de 4 anos, não iria mais frequentar as aulas, e a mãe, Maria Elizângela de Lima Sousa, de 35 anos, faria uma cirurgia às pressas. “Contei com a ajuda da família e de muitos vizinhos, porque o tratamento é muito invasivo e cansativo”, desabafa Rosa, apelido de Maria Elizângela.

“Você deu sorte”, brincou Rosa, referindo-se à presença do repórter do Lição de Casa ali. “Geralmente não estou disposta pela manhã e prefiro não conversar”, disse, se ajeitando na cadeira para iniciar a entrevista. Os efeitos colaterais dos remédios que está tomando a deixam com o humor inconstante. Dona de casa, Rosa sente saudades da rotina que incluía andar 1,5 km quase todos os dias logo cedo no trajeto de volta da escola do filho, varrer, passar pano e preparar o almoço. Enquanto isso, o marido ia para a lavoura trabalhar.

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“Com Henrique em casa, a rotina toda muda”, disse. O filho está no 4º ano da Educação Infantil na escola Professora Rosa Ferreira de Macêdo, localizada na zona rural de Crato, no sertão do Ceará. Ela se orgulha de como o garoto ia bem na escola: “ele aprende muito rápido, é esperto”.

Além de Henrique, Rosa tem ainda uma menina de 18 anos e outra de 9. A cobrança em cima dos filhos para frequentar a escola, tirar boas notas e evoluir bem é grande, já que os pais não puderam estudar. Nem Rosa nem Leomar de Sousa Santos, 42 anos, concluíram o Ensino Fundamental. “Ainda quero, tenho vontade de estudar. Já ele, não troca a roça por nada”, emenda a dona de casa.

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Não aguento mais ver notícias, mal vejo jornal. O que eu sei é o que me contam, prefiro acreditar nas pessoas e me cuidar

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A família mora em uma casa feita de taipa – terra batida que substitui o cimento na construção. Junto à outras oitos casas, elas formam uma espécie de vila comunitária, onde a maioria é parente. Isso é uma benção na quarentena, já que as crianças, primos e irmãos, brincam entre si.

Mas não há terreiro e espaço para diversão que supere o celular. Enquanto conversávamos, Rosa pediu que Henrique abaixasse o som do aparelho três vezes. Da varanda, era possível escutar as músicas que o menino ouvia na sala, pelo YouTube, no smartphone da mãe.

Henrique teve que se adaptar a estudar com a mãe ou a irmã mais velha, e a não conviver mais com os colegas de turma. Logo Rosa percebeu que o filho ficou ansioso e pouco concentrado. As professoras enviam a atividade pelo WhatsApp. Os pais ou responsáveis pelos alunos imprimem e enviam de volta fotos dos exercícios respondidos. É na casa de Rosa que fica a impressora que está ajudando todos os vizinhos nessa tarefa escolar no distrito Baixio das Palmeiras, distante 35 km do Centro de Crato e a 570 km de Fortaleza.

Henrique, de 5 anos, brinca com o celular em casa: rotina escolar interrompida e lições impressas (Foto: Felipe Azevedo/Lição de Casa)
Henrique, de 5 anos, brinca com o celular em casa: rotina escolar interrompida e lições impressas (Foto: Felipe Azevedo/Lição de Casa)

Enquanto a capital cearense publicava o primeiro decreto fechando o comércio, em março, proibindo eventos e obrigando o uso de máscaras, no Sertão do Cariri os dias seguiam mais tranquilos, sem mortes. Seis meses depois, o cenário epidemiológico da cidade já era bem diferente. A Secretaria Municipal de Saúde já havia registrado mais de 20 mil casos confirmados e 94 pessoas tinham morrido em decorrência da Covid-19.

Na maioria das cidades do interior do Ceará, a volta às aulas presenciais só deve ocorrer em 2021. Professora de Henrique, Edna Carvalho dizia ainda não estar preparada para voltar. O filho dela estuda na mesma sala de aula. “Eu sei que para eles é muito difícil, sentem falta e eu também sinto. Amo vê-los aprendendo”, afirma Edna, complementando em seguida que não dá para ter noção de como seria, neste momento, a presença das crianças na escola.

As colegas professoras, segundo Edna, sentem a mesma dificuldade. Para elas, não há perspectivas até o fim de 2020. “Precisamos ter paciência com os pais, porque além da falta de experiência pedagógica, muitos não têm internet em casa, às vezes nem aparelho celular com tecnologia razoável”, ressalta.

Rosa ainda tem medo da doença, está sem visitar a mãe desde março. Só conversa por vídeo chamada, quando a internet via rádio que tem em casa funciona bem. No celular, também chegam mensagens sobre coronavírus, mas ela faz questão de não ver. “Não aguento mais ver notícias, mal vejo jornal. O que eu sei é o que me contam, prefiro acreditar nas pessoas e me cuidar”, diz, ressaltando que segue rigorosamente as medidas de prevenção.

Todas as dificuldades que surgiram nestes últimos meses naquele lar são superadas, nas palavras de Rosa, pelo alívio de ter a família bem e reunida – “pelo menos Henrique está em casa”. A mãe ainda se recupera do câncer em tratamento, com remédios e quimioterapia, em meio a uma pandemia, que não sabemos quanto tempo persistirá.

*Lição de Casa

Lição de Casa

Projeto de investigação jornalística (colaborativo e nacional) para acompanhar os impactos da covid-19 na educação brasileira. São 15 jornalistas em dez estados brasileiros. O site http://licaodecasa.org/ foi lançado em dia 15 de setembro de 2020, após seis meses de pandemia.

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