ODS 1
O asfalto é inocente
Especialistas dizem que o material não é responsável pelos buracos na cidade
No dialeto eternamente mutante das ruas do Rio, asfalto virou antítese de favela, dentro da metáfora inspirada no calçamento das ruas dos ricos – e na falta dele onde vive o andar de baixo da pirâmide social. Mas desde sempre a palavra viaja acompanhada de lamúrias e resmungos, pelas incontáveis irregularidades em vias que cortam áreas ricas, remediadas e pobres da cidade. Agora, o turbulento desfecho das obras olímpicas, com reparos precoces que constrangem e enfurecem os cariocas, ainda ganhou status de vilão.
[g1_quote author_name=”Ronaldo Batista” author_description=”Professor da COPPE/UFRJ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Temos de corrigir nossa sociedade, antes das ruas e estradas. Não nos faltam tecnologia, nem insumos, tampouco profissionais. Falta mesmo é vergonha na cara.
[/g1_quote]Nosso complexo de vira-latas – potencializado recentemente pela exposição planetária, por conta dos Jogos – detona as ruas, massacradas na comparação com avenidas e estradas de Europa e Estados Unidos. Os sempre deslumbrados viajantes brasileiros adoram louvar as maravilhas das estradas alemãs, as míticas autobahns, ou a delícia de dirigir nas freeways californianas, em comparação com a esburacada precariedade brazuca.
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Veja o que já enviamosPois o nosso asfalto é inocente.
A professora Laura Maria Goretti da Motta, do Laboratório de Misturas Asfálticas da Coppe (Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da UFRJ), demole a teoria dos leigos, de que o material utilizado em ruas, avenidas e estradas seja o responsável pelo problema. “Se compararmos uma estrada com o corpo humano, o asfalto seria a pele. Ele é flexível, a cola mais apropriada para a brita (pedras) que responde por 95% do piso”, contabiliza, derrubando também a ideia de que o concreto, utilizado em pontos, daria resultado melhor. “Além de ser mais caro, em muitos casos não é o indicado, por ter menos flexibilidade”, aponta.
A professora apresenta o laboratório onde comanda estudos de análise e viabilidade de avenidas, pontes, viadutos e pistas de aeroportos, entre outros. Com o auxílio luxuoso dos alunos da pós-graduação, acompanha obras e monitora artérias essenciais dos 7 mil quilômetros do sistema viário carioca, utilizando equipamentos de última geração, para fins acadêmicos. Os testes analisam todas as possibilidades de fadiga das pistas e a durabilidade dos materiais. “Diante de todas as informações que temos, dá para garantir: a culpa dos problemas não é do asfalto, usado há milênios pela humanidade”, ratifica.
Qual o motivo, então, da industrial quantidade de buracos, bueiros afundados, protuberâncias e ondulações responsáveis por sacolejos, solavancos, acidentes, pneus furados e suspensões danificadas nas ruas do Rio? Pior: como explicar os constrangedores defeitos em obras viárias recém-concluídas?
“Falta seguir a receita. Muitas vezes, a obra é realizada embaixo de chuva, a mistura do asfalto com a brita e os outros materiais não acontece na forma e no tempo corretos”, relata Laura Goretti. E tem mais: os muitos agentes com acesso ao subsolo – concessionários de serviços públicos, sobretudo – abrem buracos para realizar seu trabalho e fazem tudo errado na hora de fechar. “O cuidado, os critérios e os prazos são diferentes, o que afeta diretamente o resultado. Vários problemas nascem daí”, aponta.
Para completar, a conservação não ajuda. Os remendos que integram a paisagem cotidiana de nossas ruas normalmente são paliativos ineficientes, o asfalto jogado sobre o buraco, para tapá-lo momentaneamente. A professora da Coppe explica que o procedimento correto se assemelha ao tratamento de uma cárie – tem de retirar todo o material danificado em volta, e reconstruir a parte afetada por inteiro.
Uma dica: se o remendo for redondo, provavelmente não foi feito da maneira recomendada, conta Laura, que prefere não dar nota para o padrão das ruas cariocas. “São muitas realidades diferentes, seria leviano resumir assim”, esquiva-se, observando que a Zona Sul é muito mais bem cuidada (algo que, a bem da verdade, não precisa ser professor para saber).
O clima carioca aumenta a necessidade da conservação. A expressão “dá para fritar um ovo nesse asfalto”, repetida nos janeiros e fevereiros escaldantes, tem algum respaldo científico – a temperatura, no piso de ruas e avenidas, atinge até 80 graus. “O asfalto derrete”, atesta a professora. No caso do concreto, o verão obriga a instalação de juntas, por causa da dilatação. Também por isso, o pavimento asfáltico domina a paisagem urbana. “Muitas vezes, o insucesso está nas camadas de baixo, e a superfície leva a culpa, pela simplificação de quem não conhece do assunto”, pondera a professora.
Ela aproveita para derrubar outra lenda: a de que o asfalto seria um rejeito do petróleo, e seu uso ajudaria a resolver um problema ambiental. “Na verdade, é um subproduto, o final da destilação, como o óleo diesel”, ensina. O material está mais presente, aliás, no tipo de óleo produzido na Venezuela, pouco encontrado no Brasil. A demanda nacional por pavimentação obriga inclusive a uma troca com nossos vizinhos do instável país ao Norte.
De qualquer jeito, está longe de ser o caso de promover uma substituição pelo concreto. “As autobahns que os brasileiros tanto amam são de asfalto – muito bem cuidado, aliás”, elogia Ronaldo Batista, professor-colaborador da Coppe, autor de estudo decisivo para resolver o descolamento do asfalto no vão central da Ponte Rio-Niterói, provocado pela vibração intensa do tráfego incessante.
Ele explica que o pavimento asfáltico dá muito mais conforto aos viajantes justamente por sua maleabilidade. Mas os dois materiais fracassam igualmente no quesito sustentabilidade. A emissão de CO², na produção do cimento Cochrane (nome técnico do concreto), e a extração do petróleo têm papel de irremediáveis vilões na epopeia ambiental. Pior ainda quando a pavimentação apresenta o padrão encontrado no Rio. “É péssima. Agora mesmo, nos viadutos, estão jogando asfalto em cima. Aumenta a carga e não resolve o problema”, analisa Batista. “No trabalho bem realizado, o pavimento torna-se flexível, sem afundar nem formar buracos. Mas aqui, os prazos políticos são fatais”.
A cidade quente, com carga pesada de ônibus e caminhões (carros tornam-se irrelevantes neste cenário), aliada à “manutenção horrorosa”, põe em risco até os prédios históricos à beira da rua. Muitos deles, com argila na composição das paredes, padecem ante à vibração decorrente do trânsito. O professor recomenda a utilização do concreto, em nome da preservação da memória das construções ancestrais, como o Museu da República, exposto ao ritmo estressante da Rua do Catete. “A pavimentação mais sólida ali seria recomendável”.
Tamanho saber é menos compartilhado do que deveria, diante de tantos percalços no caminho. A interação entre a Coppe e a Prefeitura do Rio se dá apenas de maneira informal, pelos engenheiros da administração municipal que estudam na instituição acadêmica. Não há qualquer parceria firmada entre os órgãos.
De fatos como esse, nasce a conclusão do professor Ronaldo Batista: para o Brasil ganhar o direito a uma viagem mais estável e serena, os consertos precisam começar em outro setor. “Temos de corrigir nossa sociedade, antes das ruas e estradas”, prega. “Não nos faltam tecnologia, nem insumos, tampouco profissionais. Falta mesmo é vergonha na cara”.
Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!