Um ‘ocupa’ nas terras da máfia

Cooperativas de jovens agricultores retomam propriedades do crime organizado na Itália

Por Luciana Cabral-Doneda | ODS 17 • Publicada em 5 de junho de 2016 - 08:00 • Atualizada em 5 de junho de 2016 - 23:19

A ONG Libera Terra reúne 1600 cooperativas integradas em sua maioria por jovens
A ONG Libera Terra reúne 1600 cooperativas integradas em sua maioria por jovens
A ONG Libera Terra reúne 1600 cooperativas integradas em sua maioria por jovens

Terras confiscadas dos chefões da máfia estão dominadas.  Mas não é o crime organizado quem ocupa esses terrenos e sim jovens agricultores que produzem uva, tomate, mel, laranja e limão com sabor de resistência. Na festa da república italiana, no 2 de junho, as praças foram tomadas para celebrar a democracia, mas também rejeitar a corrupção e, por isso,  um brinde especial foi dedicado a esses grupos,  reconhecidos como os novos partigiani, heróis italianos durante a Segunda Guerra Mundial. De norte a sul do país, eles criaram cooperativas e associações para garantir que, do solo com um passado ruim, germinem boas sementes.

Essa renovação pode ser feita com o apoio da lei n. 109/96, que permite a reutilização social dos bens confiscados à máfia. O império mafioso era sem precedentes: dinheiro depositado em bancos, títulos, ações, automóveis, barcos, caminhões, apartamentos, casas, terrenos, campos, além de bens empresariais provenientes da lavagem de dinheiro principalmente nos setores de construção e agropecuário, como a enorme criação de búfalas da Camorra em Castel Volturno, restaurantes e pizzarias em toda a Itália, boates como o histórico Cafè de Paris, símbolo da dolce vita romana, centros comerciais construídos no meio do nada, como catedrais no deserto. 

Laranjas com o selo da Libera Terra: agricultura orgânica
Laranjas com o selo da Libera Terra: agricultura orgânica

A ONG Libera Terra, criada em 1995 e reconhecida pelo Ministério da Solidariedade Nacional, organiza 1600 cooperativas, escolas, associações e grupos espalhados pelo território italiano, ajudando na gestão das estruturas produtivas de centenas de hectares de terra confiscada. A maior parte das cooperativas está no sul da Itália, nas regiões da Sicília, Puglia, Campania e Calábria.

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Macarrão, legumes, azeite, mel, geléias, queijos, licores, vinhos (como o Centopassi), com prioridade à cultivação dentro dos padrões da agricultura orgânica. Majestosas e antigas oliveiras, hortos a perder de vista, coloridas plantações de laranjas, tangerinas e limões. Tudo isso está sob a direção de cooperativas.  “A opção do orgânico não é uma volta ao passado, mas um percurso de pesquisa, inovação e uso da tecnologia para conservar a fertilidade da terra e garantir a qualidade dos produtos”, explica Don Pino Demasi, da cooperativa Valle del Marro, nos terrenos agrícolas que eram da organização criminosa ‘Ndrangheta de Piana di Gioia Tauro, que envolvem as localidades de Oppido Mamertina, Rizziconi, San Procopio, Taurianova e Varapodio, na Calábria.

Em  Rosarno,  terreno confiscado mas ainda improdutivo,  a terra começará a ser cultivada este ano com a participação dos jovens africanos imigrantes que ocuparam a propriedade nos últimos anos, dando origem a uma favela. A cooperativa Valle del Marro organiza a formação e está em busca de recursos para que eles ocupem os terrenos também de forma produtiva. “O trabalho desses jovens, além da produção, do estímulo ao turismo, promove também uma forte transformação cultural na comunidade”, afirma Demasi. 

A maior parte dos produtos é comercializada em lojas conveniadas com a ONG Libera Terra espalhadas por toda a Itália  e podem também ser comprados on-line no site da ONG. A rede de supermercados italiana COOP, uma cooperativa de produtores, vendedores e e consumidores que faz a gestão dos negócios coletivamente, também faz a revenda.  Em 2015 a venda dos produtos Libera Terra teve um aumento de 27,6%, um faturamento de 8 milhões e 749 mil euros. 

Tomates que acabam de ser colhidos em uma das cooperativas
Tomates que acabam de ser colhidos em uma das cooperativas

A Libera Terra também criou um grupo de pesquisa com o  Departamento de Ciências Agrárias, Alimentares e Agroalimentares da Universidade de Pisa para definir a estratégia de gestão dos terrenos e a compra de maquinários para o cultivo.  “O objetivo principal  é fazer agricultura orgânica de maneira rentável”, explica o professor da Universidade de Pisa Andrea Petruzzi, ressaltando a postura ideológica e revolucionária do movimento: “As cooperativas são formadas por jovens, com conhecimentos e experiências limitadas ou até mesmo inexperientes em relação à condução de empresas agrícolas e à definição de práticas de cultivo adequadas, mas muito motivados para enfrentar esse desafio”.

No extremo norte da Itália, na cidade de Turim, sede da Fiat, a família ‘ndranghetista Belfiore, também da Calábria, estendeu seus tentáculos controlando, em toda a área metropolitana, o tráfico de drogas, sequestros e jogos de azar. O procurador de estado de Turim, Bruno Caccia, que iniciou uma investigação contra esse grupo mafioso, foi assassinado em 1983. A ele e à sua mulher é dedicada a cooperativa  “Cascina Caccia”,  a primeira no norte da Itália, instalada em um chácara que pertenceu aos mafiosos e onde hoje vive uma comunidade de jovens que cultivam avelãs Tonda gentile delle Langhe (aquelas nozes que servem para fazer a Nutella) e verduras, além de criar animais de fazenda e abelhas, que produzem o já conhecido mel Libera Terra. Na antiga cantina da chácara i ragazzi  montaram uma exposição de arte permanente e, no espaço livre da casa, funciona um alojamento e restaurante para eventos . “Nosso objetivo é que aqui cada um possa se envolver como pode e como sabe, a serviço da comunidade local e  também das cidades próximas”, afirma Elisa Ferrero, vice-presidente da Acmos, que colabora na gestão da cooperativa.

Os produtos da Libera Terra são vendidos em suas lojas e on-line
Os produtos da Libera Terra são vendidos em suas lojas e on-line

O estímulo ao consumo dos produtos das cooperativas vem de toda parte da Itália. No dia 22 de maio, nas escolas públicas de Cascina, província de Pisa, na Toscana,  foram servidos pratos de macarrão, peixe, fruta e verdura que vieram diretamente da cooperativa Fior di Corleone, instalada em Corleone, cidade símbolo da máfia na Sicília. Os cozinheiros da empresa Gustolandia, que atende todas as escolas de Cascina, capricharam no preparo de uma deliciosa caponata com beringelas brilhantes e refogaram o peixe-espada com muito azeite fresco. As crianças foram informadas através de cartazes e folhetos que tudo o que elas comeriam naquele dia vinha da distante ilha no sul da bota. E que eram o fruto do trabalho de dezenas de jovens que cuidam das fazendas que antes pertenciam a criminosos que agora estão na prisão. Um aula de confiança no futuro em que o crime será punido.

“Todos os anos um grupo de estudantes de Cascina faz uma viagem à Sicília, para conhecer as cooperativas e assim ter contato direto com a ideologia de combate à máfia”, explica Alessio Antonelli, prefeito da cidade. 

Mas nem só de comida e vinho vivem as cooperativas, Elas também investem no turismo, aproveitando prédios da organização criminosa para montar pousadas na Sicília, como a Portella della Ginestra e Terre di Corleone. Por sua vez, o projeto “A ética libera a beleza”, do Ministério dos Bens e das Atividades Culturais, ressalta a importância também dos bens culturais, como obras de arte, palácios, prédios, castelos, parques, que foram comprados com o dinheiro criminoso e que, com o confisco, passam a ser abertos a toda a sociedade, como a Villa Fernandes e o Castello Mediceo, em Nápolis. O castelo foi usado pela Nuova Camorra Organizzata, clã fundado por Raffaele Cutolo que deu origem a uma guerra mafiosa que matou mais de 3 mil pessoas. Muitos prédios históricos em outras cidades tiveram o mesmo destino.

Os mafiosos se apropriaram até de um parque arqueológico, na  cidade antiga de Metaponto, na Basilicata. Com o confisco, uma associação transformou a área em parque público e nesse verão os templos de Atenas, Apolo e Afrodite, construídos  em 470 A.C, serão palcos de eventos para toda a comunidade. Contra a violência da máfia, também cultura.

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Um comentário em “Um ‘ocupa’ nas terras da máfia

  1. Hylton Sarcinelli Luz disse:

    Esta concepção de destinação para bens confiscados de criminosos é um exemplo muito interessante. Espero que possamos aprender com este fato já em curso, que nossos juízes envolvidos com o julgamento de processos neste campo incluam em suas sentenças este tipo de perspectiva para dar destinação aos bens confiscados.

    ÓTIMA NOTÍCIA, pelo que amplia no olhar o mundo.

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