ODS 1
Chaves do aprendizado
Literatura e ciência mostram às crianças o sentido da vida
Naquela tarde, cheguei à escola de minha neta de 3 anos, mas, ao contrário dos outros dias, não fui buscá-la. Esperava-me a Coordenadora Pedagógica para uma conversa sobre a importância de ler para e com as crianças. À primeira pergunta, um susto: Maria Alice Pires Cardoso de Aguiar começou a discorrer sobre literatura.
– O discurso literário fala as línguas da alma, toca nossas arcas interiores, cria imagens que dizem respeito à vida. Como todos nós, a criança tem ansiedades, temores, alegrias, esperanças, frustrações, desejos, e começa a elaborar e compreender esses sentimentos, inconscientemente.
[g1_quote author_name=”Maria Alice Pires Cardoso” author_description=”Educadora” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Ter coragem e ser gentil são atitudes que exigem grandeza de espírito e firmeza de propósito. São atitudes que precisam ser aprendidas. É necessário que exercitemos, diariamente, no percurso de nossa existência, esse modo de ser. E os heróis e heroínas de contos maravilhosos, cercados de elementos mágicos, de espaços surpreendentes, de animais extraordinários, de uma astúcia inestimável, instigam nosso imaginário, fazendo-nos apreciá-los e a querer ser como eles: corajosos e gentis
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Veja o que já enviamosNo dia seguinte, abro “O Globo” e me deparo com a entrevista da inglesa Wynne Harlen, 79 anos, especialista em educação científica. Ela diz coisas muito semelhantes a Maria Alice. “As crianças têm ideias próprias, que influenciam como entendem novas experiências”. Ou: “Quando as crianças trabalham por si mesmas é quando estão entendendo de verdade. Isto leva tempo”. O que me lembra a Feira do Livro da escola de minha neta, criada há mais de 20 anos: nela são os alunos, com ajuda dos professores, que fazem os livros a serem expostos. Estão aprendendo.
Literatura e ciência conspiram para fazer de nós, ou pelo menos de nossos netos, seres humanos melhores.
Wynne diz: “Professores precisam enfrentar um currículo com muito conteúdo e sabem que não vão dar conta. (…) Os estudantes pensam: ‘isso não é relevante para minha vida’. É preciso identificar quais são as coisas mais importantes e aí trabalharmos para entender essas coisas”.
Isto me remete às palavras de Maria Alice:
– Sempre pedimos para as crianças descreverem o que mais gostam de fazer, o que lhes dá alegria e prazer; e também o que elas menos gostam, o que as aborrece.
Eis aí uma bela relação das coisas mais importantes.
Segundo a coordenadora, a criança começa a encontrar o significado da vida em dois eixos: o primeiro nas pessoas com que lida diretamente: pais e parentes, professores e colegas na escola; o segundo, na literatura, nas histórias que são contadas ou lidas para elas e que as ajudam a lidar com emoções, sentimentos, limitações. A tomar consciência dos percalços. Sim, elas não são onipotentes.
Maria Alice cita Freud: “O escritor criativo faz como a criança que brinca. Cria um mundo para si, nele se isola e constrói um espaço em que as emoções podem transitar”.
Para a educadora, o conteúdo dos livros infantis ajuda as crianças a perceber o simbólico, a lidar com as diferenças. No caso da Feira do Livro, dá-lhes a certeza de que são capazes de criar beleza, de ajudar a construí-la, de participar da construção do belo. Para a criação do livro a ser exposto, todos ouvem, ou leem, a mesma história, mas cada um tem liberdade para externá-la à sua maneira.
– Tudo isso faz parte de um processo diário e lento e a literatura é a matriz desse desenvolvimento – diz Maria Alice, mestre em Letras pela UFF e doutora em Ciência da Literatura pela URFJ.
A jornalista Luciana Calaza é mãe de Felipe, de 9 anos, e Rafael, de 4. Felipe tem autismo, transtorno que se manifesta pela dificuldade de comunicação e de interação social. Ela dá seu depoimento:
– Leio todas as noites para os meninos. É uma forma de fortalecer ainda mais nossos laços afetivos e de desenvolver atenção, concentração, vocabulário e imaginação, habilidades que precisam ser muito trabalhadas com o Felipe. Também ajuda a criança a perceber e a lidar com seus sentimentos, na medida que o adulto vai apresentando e nomeando essas emoções. Muitas histórias auxiliam bastante no desenvolvimento do sentimento de empatia – a capacidade de colocar-se no lugar do outro é uma das maiores dificuldades do autismo. Também usamos – não à noite – o tablet para pesquisar assuntos do interesse das crianças, como dinossauros e animais selvagens. É uma forma descontraída e animada de trabalhar essas mesmas habilidades.
Luciana é fundadora do Progredir Espaço de Desenvolvimento, de tratamento multidisciplinar de crianças e adolescentes com transtornos de desenvolvimento e de apoio à família.
Em trecho de carta enviada aos pais dos alunos da escola em que trabalha, destacou Maria Alice:
“Um dos mais belos momentos de um dos contos mais lidos e apreciados no mundo – ‘Cinderela’ – é aquele em que a mãe, em seu leito de morte, chama a filha e diz:
– Tenha coragem e seja gentil. Onde existe gentileza, existe bondade. E onde existe bondade, existe magia.
“Simples de falar e difícil de fazer. Ter coragem e ser gentil são atitudes que exigem grandeza de espírito e firmeza de propósito. São atitudes que precisam ser aprendidas. É necessário que exercitemos, diariamente, no percurso de nossa existência, esse modo de ser. E os heróis e heroínas de contos maravilhosos, cercados de elementos mágicos, de espaços surpreendentes, de animais extraordinários, de uma astúcia inestimável, instigam nosso imaginário, fazendo-nos apreciá-los e a querer ser como eles: corajosos e gentis”.
Mais uma especialista, a antropóloga Frances Henry, da Universidade de York, em Toronto, Canadá, vem em meu socorro. Quando o repórter Silvio Essinger, do Globo, perguntou-lhe numa entrevista o que mantinha sua fé na Humanidade, respondeu:
“A criatividade científica e cultural, tudo aquilo que se é capaz de expressar. São uma espécie de milagre as inovações que as pessoas conseguem conceber”.
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Jornalista com longas passagens por Jornal do Brasil, na década de 1970, e O Globo (1987 a 2014), sempre tratando de temas de Política Internacional e/ou Economia. Estava posto em sossego quando foi irresistivelmente atraído pelos encantos do #Colabora. E resolveu sair da toca.