ODS 1
Domingo de política na Atlântica
Entre o ‘sim’ e o ‘não’, o ‘não quero nem saber’
Havia um temor quase ‘profético’ que as manifestações – pró e contra o impedimento – na praia de Copacabana, no domingo, terminariam em briga ou coisa pior, já que uma das lideranças era do pessoal do Furacão 2.000, do funk, das favelas. Nada mais improvável. A despeito da camiseta ‘de guerra’ do pessoal do ‘contra’ com a inscrição ‘a casa grande surta quando a senzala aprende a ler’, a senzala, de fato, não apareceu. Não havia muitos representantes das favelas e a manifestação contra ‘o golpe’ foi tão branca quanto a que começaria horas depois, na outra ponta da praia, a favor do impedimento.
[g1_quote author_name=”Pamela dos Santos Gomes” author_description=”Vendedora ambulante, contando o que fez com o dinheiro que ganhou durante a visita do Papa” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Aí fomos nas Casas Bahia e compramos fogão, geladeira, armário de cozinha, TV de 43 polegadas, pra nossa casa. Comprei um implante de R$ 1.500,00 pro meu cabelo e meu marido comprou uma moto.
[/g1_quote]O único ‘embate’ entre as partes antagônicas foi longínquo, inofensivo, fisicamente: manifestantes no asfalto contra alguns postados nas janelas de prédios e hotéis de luxo trocaram gestos obscenos, cantos de guerra. No máximo isso. A uma hora da tarde, em ponto, o funk acabou, como o combinado com as autoridades, sem que as tropas de PMs tivessem suado a camisa. Pelo contrário, os policiais estavam tão à vontade que tiravam fotos, conversavam entre si.
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Veja o que já enviamosFoi minha primeira passeata, nesses tempos obscuros. Saí caminhando, conversando, pela avenida, e, quando vi, estava me dirigindo à passeata dos ‘a favor’. Precisava ver de perto. Ali pelas três da tarde, os manifestantes chegavam em grupos verde e amarelos, dispersos entre os postos 4 e 5. Ficavam próximos a três telões instalados no canteiro central. Senti sede, comprei uma cerveja e parei, pela primeira vez, desde às 10 da manhã. Procurava alguma coisa que definisse um belíssimo domingo de sol carregado de rancor. De parte a parte.
Olhei para o lado e ali estava o material de venda da ambulante negra, alta, bonita: pixulecos de Lula e Dilma com roupas de presidiários. Puxei conversa.
– Oi, tudo bem? Tá vendendo muito?
– Que nada. O pessoal não tá comprando, não – respondeu ela, com boa vontade. — Mas eu só vendo isso porque preciso. Não tô do lado de ninguém, não.
– Mas você apoia ou não o impeachment?
– Olha, eu nem sei direito o que é isso. Eu tô aqui é pra trabalhar.
– Quanto custa cada boneco?
– R$ 20,00.
– Caramba, não tá caro isso?
– Caro nada! Eles roubam a gente!
– Quem?
– Governo, todo mundo. Aqui só tem gente cheirosa.
Eu ri, me agachei e ela ofereceu um saco com roupas para me sentar. Aceitei, agradecida. Então, me apresentei à Pamela Santos Gomes, 20 anos, moradora de Duque de Caxias, mãe de um menino de 2 e ambulante há 5 anos, desde que terminou o ensino médio e trabalhava no projeto jovem aprendiz.
Pamela pretendia “se aprofundar em Recursos Humanos, ser secretária, essas coisas”, diz ela, com naturalidade. Mas conheceu o “esposo” com 15 anos, se “juntou mas não casou”, porque tem vergonha de vestido de noiva, e acabou indo trabalhar com ele. No primeiro trabalho, durante a visita do Papa Francisco ao Rio, ganhou “uma fortuna, uns R$ 20.000,00, vendendo camiseta, terço, essas coisas”, durante dias, na Avenida Atlântica.
– Aí fomos nas Casas Bahia e compramos fogão, geladeira, armário de cozinha, TV de 43 polegadas, pra nossa casa. Comprei um implante de R$ 1.500,00 pro meu cabelo e meu marido comprou uma moto.
No domingo do impeachment, a história era outra. Para ela e conhecidos, que se aproximavam para saber como estavam as vendas. O único animado era o vendedor de fitas, feitas por ele mesmo, como anunciou.
– É mermo? E como é que tu fez isso? – perguntou Pamela.
– No computador e depois imprimi.
– Quanto você investiu? E quanto custa cada fita? – perguntei, já íntima do grupo.
– Gastei R$ 70,00 com o rolo e estou cobrando R$ 5,00 a fita. Já faturei R$ 500,00, graças a Deus. Olha só, eu não sou de um lado nem de outro. O que tá me dando dinheiro, tô indo, porque sou marceneiro, desempregado, e preciso sobreviver – emendou ele.
Mais um ambulante se juntou ao grupo: um soldador desempregado, vendendo balas.
– Pô, hoje tá fraco. Neguinho não tá comprando, não, tá muito muquirana – desabafou, provocando risadas.
– Quem sabe se você estivesse vendendo pixulecos do impeachment – arrisquei, brincando.
– Ih, dona, nem sei o que é isso. Sou meio ignorante com política. Mas, se ela sair, vai entrar um pior. Olha a situação dos funcionários públicos no Rio, que não estão nem recebendo – emendou, antes de voltar a circular com sua mercadoria.
Já estava me levantando para seguir em frente quando uma ambulante chegou, aflita, perguntando se Pamela teria uma camisa que servisse nela. Tinha cometido “a bobagem” de ir com roupa vermelha e “umas cinco pessoas” já tinham vindo perguntar por que ela estava “com aquela cor”.
– Aí, eu fiquei apavorada, né? Já ouvi falar que tá dando confusão e briga nessas passeatas – explicou ela, olhando os tamanhos das camisetas com estampa de Dilma na prisão, que Pamela tirava do saco e entregava para ela.
– Mas então você não sabia que cada passeata tem a sua cor? – perguntei.
– Ah, não, se eu soubesse não tinha vindo com a roupa toda vermelha, né? Tô apavorada, preciso botar alguma coisa em cima – respondeu, aliviada, quando encontrou uma e pagou os R$20,00, sem regatear.
Risonha, Ana Mara da Silva Azevedo, 33 anos, moradora de Caxias, voltou para o seu ponto de venda de bebidas ‘alforriada’ pela nova camiseta. Sem vender quase nada e, principalmente, sem perder o bom humor, ela desabafou.
– Pior é que eu nem sou a favor de ninguém, sabe? Infelizmente, política é isso. O dinheiro sobe para a cabeça, eles pagam a mais pelas obras, fazem essas coisas. Mas eu nem sei muito bem o que estão votando hoje. É pra tirar a presidente?
Respondi que sim, agradeci a conversa, ainda a tempo de ouvir o comentário de um ambulante que acabava de se juntar ao grupo: “Eu trabalho no que precisar pra não roubar, porque isso eu não vou fazer nunca, e quero mais é que o Brasil se exploda lá em Brasília”.
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Jornalista e escritora, autora de quatro livros-reportagem, professora-oficinista sobre a escrita, devotada à arte de escrever e apaixonada, particularmente, pelo gênero que capta o que há de mais espontâneo no ser humano, em seu cotidiano: a crônica. De preferência, a que ousaria chamar de ‘crônica social’ quando a cronista flagra surpreendentes, deliciosas histórias de pessoas ‘invisíveis’ -- a si mesmas, ao mundo – e interage, aprende com elas.