STF sepulta marco temporal, mas indígenas alertam para fragilização das demarcações

Apesar de reconhecer inconstitucionalidade, voto do relator Gilmar Mendes cria prazos e exceções que podem enfraquecer proteção das Terras Indígenas

Por Oscar Valporto | ODS 16
Publicada em 18 de dezembro de 2025 - 08:49  -  Atualizada em 18 de dezembro de 2025 - 19:09
Tempo de leitura: 10 min

Indígenas acompanham debate sobre marco temporal no Supremo: STF sepulta tese mas entidades temem fragilização das demarcações (Foto: Carlos Souza / STF – 21/09/2023)

Antes mesmo do final do julgamento (virtual, só termina às 23h59 desta quinta-feira, 18/12), o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, mais uma vez, pela inconstitucionalidade do marco temporal para a demarcação de Terras Indígenas (TIs). Cinco ministros já acompanharam o ponto principal do voto do relator Gilmar Mendes, determinando que é inconstitucional a tese de que povos indígenas só têm direito a terras que ocupavam ou disputavam no ano da promulgação da Constituição, em 1988. Em 2023, por 9 votos a 2, o marco temporal já havia sido considerado inconstitucional pelo STF.

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No seu voto, Mendes alerta que a fixação da data limite de 5 de outubro de 1988 expõe os povos originários a uma “situação de difícil comprovação para comunidades indígenas que foram historicamente desumanizadas com práticas estatais ou privadas de retirada forçada, mortes e perseguições”. Esse entendimento já foi seguido pelos ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, Luiz Fux, Dias Toffoli, Alexandre de Morais, Edson Facchin e Carmen Lúcia. “Nossa sociedade não pode conviver com chagas abertas séculos atrás que ainda dependem de solução nos dias de hoje, demandando espírito público, republicano e humano de todos os cidadãos brasileiros (indígenas e não indígenas)”, destacou o relator.

A Apib tem uma profunda preocupação com relação aos impactos da decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes no futuro das Terras Indígenas, pois apesar da rejeição do Marco Temporal, o voto apresentou inúmeros entraves para os processos administrativos de demarcação

Ricardo Terena
Advogado da Apib

O alvo do julgamento do STF é o projeto de lei aprovado pelo Congresso em dezembro de 2023 que retomava o marco temporal. O texto, que contrariou o entendimento anterior do Supremo, foi vetado pelo presidente Lula, mas os vetos foram derrubados pelos parlamentares pelo Legislativo e ações de inconstitucionalidade fizeram a tese voltar à corte. Quando o STF anunciou o julgamento em curso, o Senado Federal aprovou, em votação relâmpago, a Proposta de Emenda à Constituição PEC 48/2023 na semana passada – que, caso passe na Câmara, também vai acabar no STF

Entretanto, em seu voto, o ministro Flávio Dino já fez questão de destacar que considera inconstitucionais todas as normas que busquem estabelecer um marco inicial para a validação dos direitos indígenas sobre as terras como a PEC 48/2023. “O Poder Legislativo não pode, sob qualquer pretexto, suprimir ou reduzir direitos assegurados aos povos indígenas, sob pena de ofensa aos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito”, argumentou Dino.

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Além de votar pela inconstitucionalidade do marco temporal, o ministro Edson Fachin abriu uma divergência parcial no julgamento, ao dar um voto mais restritivo que o relator Gilmar Mendes em relação a indenizações, exploração econômica por não-indígenas e processos de demarcação. Fachin, em seu voto, derrubou dispositivos que asseguram ao proprietário ou possuidor a permanência na área objeto de demarcação até o pagamento das indenizações devidas; também considerou inconstitucional a possibilidade de o Poder Público instalar infraestrutura ou explorar as terras sem consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente.

Assim como o ministro Flávio Dino, Fachin também posicionou-se contra a flexibilização do exercício de atividades econômicas por não-indígenas nas áreas protegidas. Dessa forma, ele afastou a possibilidade de celebração de contratos que visem à cooperação entre indígenas e não-indígenas para a realização de atividades econômicas. a ministra Cármen Lucia acompanhou integralmente o voto de Fachin com a divergência parcial.

Entidades indígenas em alerta

Apesar do reconhecimento da inconstitucionalidade da tese, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e organizações aliadas demonstraram grande preocupação com o voto do relator, introduzindo novas regras, prazos e exceções que podem, na prática, fragilizar a proteção constitucional dos territórios tradicionalmente ocupados pelos povos indígenas.

Para a Apib, o problema não está apenas no afastamento formal do marco temporal, mas nos efeitos concretos que o voto de Gilmar Mendes pode produzir sobre os processos de demarcação. “A Apib tem uma profunda preocupação com relação aos impactos da decisão proferida pelo ministro Gilmar Mendes no futuro das Terras Indígenas, pois apesar da rejeição do Marco Temporal, o voto apresentou inúmeros entraves para os processos administrativos de demarcação”, afirmou Ricardo Terena, advogado da organização.

A Apib e outras organizações protocolaram memoriais no STF no âmbito do julgamento que analisa a constitucionalidade da Lei nº 14.701/2023, que tentava reintroduzir o marco temporal. Nos documentos apresentados ao Supremo, a entidade, apontam dez pontos de retrocesso identificados no voto do relator. Entre os principais alertas está a possibilidade de o Estado oferecer “terras equivalentes” quando alegar impossibilidade de demarcação.

O que está em jogo é se a Constituição será cumprida integralmente ou se os direitos originários dos povos indígenas continuarão sendo condicionados à conveniência administrativa e orçamentária do Estado

Trecho de memorial entregue ao STF
Apib e outras entidades

Para o movimento indígena, a proposta retoma a lógica histórica de remoções forçadas, substituindo territórios tradicionais por áreas alternativas, muitas vezes distantes, inadequadas ou sem vínculo histórico e cultural com as comunidades afetadas. “A gente sabe que os nossos territórios não têm terra equivalente, não é simplesmente um pedaço de terra. Tem toda uma posse tradicional, ancestral, sobre aquela região”, destacou o advogado Ricardo Terena.

Outro ponto crítico citado pelos indígenas é a criação de prazos que podem inviabilizar novas demarcações. Pela proposta, após um ano do trânsito em julgado, pedidos de reconhecimento territorial deixariam de resultar em demarcação e passariam, como regra, para desapropriação por interesse social. Segundo as entidades, essa lógica esvazia o direito originário, que não depende de prazos nem de ato concessivo do Estado.

O relator também se posicionou em favor da regra que permite aos ocupantes ilegais a permanência na terra até o recebimento da indenização. O voto de Mendes também favorece a realização de atividades agropecuárias nas Terras Indígenas, desde que tenham participação da comunidade e não resultem em arrendamento das terras. “Uma das preocupações tem sido o reconhecimento no voto dos ministros de que houve um suposto consenso na mesa de conciliação criada pelo gabinete do ministro Gilmar Mendes, sendo que a Apib se retirou do acordo e o produto que está sendo homologado nos votos se refere a direitos que são indisponíveis, não podem ser objeto de negociação e não foi consensuado entre as partes”, alertou Renata Vieira, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), que acompanha a ação no Supremo

Os memoriais apresentados pelas entidades indígenas e outras organizações também alertam para a criminalização das retomadas indígenas, prática recorrente em contextos em que o poder público demora décadas para concluir processos demarcatórios. O voto de Gilmar Mendes prevê restrições e remoções que podem transformar comunidades inteiras em alvos de ações policiais, agravando conflitos fundiários já marcados por violência.

A Apib e as entidades que subscrevem os memoriais pedem que o STF consolide um entendimento que afaste definitivamente o marco temporal e qualquer mecanismo que produza efeitos equivalentes, reafirmando o que já foi decidido no Tema 1031. Para a Apib, o julgamento não trata apenas de uma controvérsia jurídica. “O que está em jogo é se a Constituição será cumprida integralmente ou se os direitos originários dos povos indígenas continuarão sendo condicionados à conveniência administrativa e orçamentária do Estado”, destacam os memoriais.

O documento é subscrito por 14 entidades, entre elas a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), os partidos PSOL e Rede Sustentabilidade, além de organizações de reconhecida atuação em direitos humanos e na agenda socioambiental, como o Instituto Socioambiental (ISA), a Comissão Arns, a Conectas Direitos Humanos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Observatório do Clima, o Greenpeace Brasil, o WWF-Brasil, o Instituto Alana, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), a Associação das Comunidades Indígenas Tapeba de Caucaia e a Associação de Juízas e Juízes pela Democracia (AJD).

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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