ODS 1


O pequeno agricultor Simão Salgado, do Sítio Sobradinho, em Caetés, protestando contra as energias eólicas. (Foto: Beto Figueiroa)
Síndrome da turbina e o lado perverso da energia eólica
Sexto maior produtor dessa energia no país, Pernambuco vem liderando um movimento de oposição devido aos impactos socioambientais provocados pelos aerogeradores. Caetés é o epicentro dessa disputa, que liderou a primeira e única paralisação de um complexo eólico no país
A poucos metros de distância de Walisson da Silva, pai de Heytor, a pequena Melissa, de 5 anos, tem medo de brincar no quintal de casa. Quando passa perto de uma das torres dos aerogeradores acelera o passo, conta a avó Diva Josefa de Oliveira. Seu temor não é fruto de uma fantasia infantil permeada de monstros fictícios. É um medo alimentado por uma realidade bem concreta. Basta abrir a janela de casa para Melissa avistar as mesmas torres gigantes que perturbam o sono do vizinho e comprometem sua infância.


A menina vive amedrontada e só pensa na possibilidade de um acidente. Em Caetés, no agreste pernambucano, a última queda registrada de uma das torres da Echoenergia, que comanda o Complexo Eólico Ventos de São Clemente, ocorreu no primeiro trimestre do ano, em março último. As torres costumam medir 120 metros de altura e contam com hélices de 50 metros. A empresa atua na região com dois complexos, o outro é o Ventos de Santa Brígida, espalhado por Caetés, Pedra e Venturosa.
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Veja o que já enviamosCaetés, onde vivem Heytor e Melissa, é um dos municípios brasileiros que se destaca na geração de energia eólica. O estado de Pernambuco é o sexto maior produtor dessa energia renovável no país. Apontada como parte crucial da mitigação das mudanças climáticas é, por isso, protagonista da transição energética para reduzir a dependência de combustíveis fósseis. Só que fruto de um avanço desordenado e sem regulamentação ambiental rigorosa, os parques eólicos no estado foram implementados próximo a comunidades rurais e indígenas.
Lembro que a empresa prometeu que nossa vida ia melhorar, que as torres não iam prejudicar o meio ambiente, mas era tudo mentira
A transição energética é tema da COP30, mas movimentos sociais vêm pressionando para que a discussão caminhe para uma transição justa e popular. Ou seja, com salvaguardas socioambientais rígidas que garantam a justiça climática e, sobretudo, com respeito ao Consentimento Livre, Prévio e Informado — o que não vem ocorrendo no país.
Sequer a distância segura das turbinas eólicas das casas para mitigar o impacto dos ruídos audíveis e os infrassons, ondas sonoras com frequências muito baixas, que estão fora da faixa audível pelo ouvido humano, vem sendo respeitada. Não existe uma distância de segurança padronizada e obrigatória para torres eólicas no Brasil, mas a associação do setor, a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), recomenda uma distância de pelo menos 200 metros. Muitas torres foram instaladas na beira da estrada de terra, onde as pessoas caminham e os ônibus escolares circulam diariamente — a distância chega ser de apenas 30 metros.


Até o parquinho construído pela empresa para as crianças da comunidade brincarem vai de encontro às regras de segurança — sem falar no fato, de que o desejo da comunidade era um campinho de futebol. Abandonado, tomado pela vegetação e sem uso, devido ao medo generalizado das famílias de levarem seus filhos para brincar no local, é um cenário desolador. Os impactos socioambientais provocados pelos empreendimentos transformaram Caetés no epicentro de uma disputa que evidencia a injustiça climática no estado, terra natal do presidente Lula – a cidade fica distante 245km de Recife e onde vivem cerca de 28 mil pessoas.
Quem carrega nas costas o peso dessa dita transição energética são as populações camponesas do Sul Global, que têm os seus territórios explorados, os corpos adoecidos e, no final das contas, precisarem ser expulsos de suas terras para que esses empreendimentos se apropriem de seus territórios. É uma nova forma de exploração e colonização
Revoltados com a ausência de diálogo com a Echoenergia, famílias camponesas de Caetés ocuparam, durante o Carnaval, a Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH), em Recife, em fevereiro último. À época, paralisaram as atividades do Complexo Eólico Ventos de São Clemente por cinco dias — uma liminar concedida pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) liberou a empresa a voltar a operar.
Os efeitos danosos na saúde humana provocam adoecimento coletivo, que vem sendo caracterizado por sofrimento mental e farmacodependência (insônia, irritabilidade, dores de cabeça e ansiedade são os principais sintomas identificados). Sem falar no danos materiais e simbólicos ao modo de vida camponês. Associados, os dois impactos já estão sendo chamados de “síndrome da turbina”.


Saúde em risco e danos materiais
O estudo “Impactos na saúde decorrentes das usinas eólicas” foi feito entre março e dezembro de 2023. O local pesquisado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/ Pernambuco) foi o Sítio Sobradinho, em Caetés. O local tem 55 casas, das quais 33 domicílios foram mapeados — os pesquisadores encontraram 12 residências vazias, seja porque foram abandonadas ou demolidas. O estudo registrou o impacto provocado por 83 torres.
As distâncias médias das torres dos domicílios variam de 100 metros, bem abaixo do nível considerado seguro, a 900 metros. Da população pesquisada, 56% eram homens e 44% mulheres. Os resultados parciais da pesquisa indicaram o seguinte: 60,6% relataram possuir algum sintoma de adoecimento mental, 80% dos testes deram positivos para sofrimento psíquico, 31% alegaram incômodo visual com as sombras das torres, 54% dos entrevistados tiveram alteração de acuidade auditiva, sendo as principais queixas dificuldade de compreensão, zumbido e tontura e 49% apresentaram alergias.


Êxodo involuntário
A família de Melissa, seu pai Leonardo e sua avó Diva, é cria de Caetés. Gerações e gerações nasceram e foram criadas na região. A vida na comunidade começou a mudar em 2016, quando a empresa começou a se instalar na localidade. A turbina que tirou o sossego dos Oliveira foi implantada no quintal dos sogros de Diva. “Lembro que a empresa prometeu que nossa vida ia melhorar, que as torres não iam prejudicar o meio ambiente, mas era tudo mentira”, lembra, contando que os pais do marido toparam arrendar o terreno para a instalação das turbinas.
Por conta disso, abandonaram a casa e receberam, à época, 48 mil reais para construir uma nova, no mesmo terreno. “O dinheiro não deu e tivemos que complementar”. Há dois anos, seu sogro faleceu e, desde então, a família não recebe mais nenhum tostão. E o pior: a turbina continua funcionando e seus impactos não se restringem ao limite do terreno.
A promessa feita pela empresa de que a vida ia mudar de fato ocorreu. Só que mudou para pior. A horta, que ocupava parte significativa do terreno da família, foi reduzida a um punhado de pequenas plantações de coentro, alface, cebolinha, alecrim, salsinha. “A terra passou a secar muito mais rápido por conta do vento das turbinas”, conta Diva, que passou a aguar a pequena plantação de hortaliças várias vezes ao dia para evitar perdas. Ainda assim, não tem sido suficiente e o feijão, que costumavam colher, vem morrendo antes mesmo de ser colhido. “Queremos ser indenizados para irmos embora”, confessa Diva, explicando que até isso se tornou algo impossível. A empresa já avisou que não vai ressarcir os moradores da comunidade que abandonarem suas casas. Informou que vai realocar os moradores para locais pré-estabelecidos pela companhia.
Foi o que ocorreu com o agricultor Simão Salgado da Silva. Acostumado ao silêncio e ao som dos animais da caatinga — os pássaros, por exemplo, sumiram –, trocou o Sítio Pau Ferro, uma área de 33 hectares, para morar de aluguel na cidade. A esposa Edite Maria da Silva acabou adoecendo e faleceu: “Ela não dormia mais por causa do barulho, não se alimentava, entrou em depressão”. Sem falar no prejuízo financeiro — ele batalhou para transformar sua propriedade em uma referência no meio do semiárido –, ele relata ainda o prejuízo emocional: “Estou deixando aqui o que implantei junto com a família, com tanto prazer, com tanto gosto.”
“Tentam nos impor, como única solução, esse modelo de geração de energia (centralizada, em grande escala, e reprodutor de injustiças), que é um modelo que serve às grandes empresas. A geração de energia não precisa se dar nesses moldes. Ela pode e deve seguir outro modelo, de forma descentralizada e em pequena escala, que atenda de fato à população. Só que esse modelo não atende aos interesses das grandes empresas”, denuncia Mariana Vidal, assessora jurídica da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Pernambuco. E complementa: “Quem carrega nas costas o peso dessa dita transição energética são as populações camponesas do Sul Global, que têm os seus territórios explorados, os corpos adoecidos e, no final das contas, precisarem ser expulsos de suas terras para que esses empreendimentos se apropriem de seus territórios. É uma nova forma de exploração e colonização”.
(A jornalista viajou a convite do Instituto Socioambiental/ ISA)
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Liana Melo
Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.