A causa dos índios nos afeta muito mais do que você imagina, cara pálida

STF vota nesta quarta-feira ações que podem comprometer não só as demarcações de terras indígenas em todo o Brasil como o futuro do país

Por Liana Melo | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 16 de agosto de 2017 - 08:24 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:36

Protesto indigena em frente ao STF. Foto de Tiago Miotto/Cimi
Protesto indigena em frente ao STF. Foto de Tiago Miotto/Cimi
Guarani e Kaiowa fazem cerimônia religiosa em frente ao STF, de costas para a estátua da Justiça, o “símbolo da imparcialidade”. Foto de Tiago Miotto/Cimi

Os índios vão ocupar Brasília. Eles começaram a sair de suas aldeias no começo da semana. São mais de 150 lideranças indígenas que chegam, nesta quarta-feira (16 de agosto), para protestar dentro e fora do Supremo Tribunal Federal (STF) – alguns líderes já têm assento marcado no plenário da casa. Se a palavra índio nem sempre atrai empatia, imagine somar a ela o complemento protesto. Para muitos, índio é um assunto chato. E é com esse desinteresse e indiferença que contam os ruralistas, bancada que ajudou Michel Temer chegar ao poder e, posteriormente, contribuiu para arquivar a denúncia de corrupção passiva contra o presidente. O retorno para suas terras terá um gostinho de vitória.

A corte rejeitou por unanimidade  as ações do governo de Mato Grosso que exigiam indenizações da União por ela ter supostamente demarcado áreas do Parque Indígena do Xingu e dos povos Nambikwara e Pareci. Na véspera da votação, foi retirada de pauta a decisão acerca da Terra Indígena Ventarra (RS). O temor era que a decisão do Supremo pudesse gerar consequências para as demarcações de terras indígenas em todo o país. Como o ministro Dias Toffoli foi obrigado a se ausentar devido problemas de saúde, a votação sobre a demarcação das terras dos quilombolas também não chegou a ocorrer. Mas e daí?, deve estar se perguntando quem chegou até aqui na matéria.  Afinal, o que a vida deles, índios e quilombolas, tem a ver com a nossa, moradores dos grandes centros urbanos? A resposta é curta e grossa: tudo.

Imagine o Brasil sem índios. São eles os principais guardiões da floresta, ou da biodiversidade. As terras indígenas evitam o desmatamento e, consequentemente, ajudam a conter as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE), responsáveis pelo aquecimento global. Dados da Coalizão do Clima, Florestas e Agricultura apontam que, em todo o mundo, 24% do carbono estocado no solo estão em terras sob gestão de comunidades tradicionais. No Brasil, as terras indígenas têm o potencial de evitar a emissão de 31,8 milhões de toneladas anuais de CO2, o equivalente a retirar de circulação cerca de 6,7 milhões de carros pelo período de um ano, segundo estudos do World Resources Institute (WRI).

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O STF decidiu que, em nenhum momento, essas terras passaram ao Estado do Mato Grosso e que não é possível ignorar a presença dos índios

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Ainda segundo diagnóstico da Coalizão, é cada vez mais claro que, sem as terras indígenas, haverá um risco grande de secas prolongadas e altas temperaturas, em especial, na região Amazônica. O setor mais afetado, neste caso, seria o próprio agronegócio – segmento econômico especialmente interessado na aprovação das ações no STF. E essa mudança no clima em função de perda de massa florestal preservada já é uma realidade. Segundo estudos científicos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), o desmatamento acumulado em uma das três regiões afetadas pela decisão do STF, o Parque Indígena do Xingu, nos últimos anos, fez com que a temperatura na região subisse assustadoramente. Nas áreas abertas ao redor do Parque a temperatura é, em média, 4°C a 6°C maior do que no interior do território indígena. A situação não é pior devido à existência do parque. Temperaturas elevadas afetam o regime de chuvas, trazendo potenciais danos à produção agrícola da região.

Enquanto os povos indígenas estão preocupados com o risco de o STF adotar a tese do marco temporal no julgamento de hoje, segundo a qual os indígenas só teriam direito às terras que estavam sob sua posse em 1988, na data da promulgação da Constituição Federal, os ruralistas – eufemismo para o agronegócio – contam com essa vitória. Na batalha travada no Supremo, os indígenas saíram vitoriosos. A guerra, no entanto, continua. “O STF decidiu que, em nenhum momento, essas terras passaram ao Estado do Mato Grosso e que não é possível ignorar a presença dos índios”, comemorou, ao final do julgamento, Luís Enrique Eloy, indígena Terena e advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Com a decisão, a tese do marco temporal sequer foi discutida.

Um dia antes da votação, a liderança da Terra Indígena Yvy Katu/Porto Lindo, Leila Rocha Guarani Nhandeva, chegou a afirmar que, se fosse preciso, se ajoelharia na frente da ministra Cármen Lúcia para pedir pela não aprovação do marco temporal. Não foi preciso. Caso ele viesse a ser debatido, os Guarani e Kaiowá estariam entre os povos que seriam especialmente atingidos pela decisão da Corte.

O marco temporal e a PEC 215 são as principais armas nessa guerra em curso. Uma complementa a outra. Enquanto a primeira fala em definir uma data; a outra prega transferir do Executivo para o Legislativo, ou seja, para o Congresso Nacional, a palavra final sobre a demarcação das terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conversação.  A indiferença generalizada em relação à luta dos povos indígenas associada à desinformação são aliadas fundamentais para enfraquecer o movimento e jogá-los na invisibilidade.

Estudo do Instituto Socioambiental (ISA) – que lançou uma campanha alertando sobre o racismo contra os povos indígenas – calcula que essas medidas podem impactar diretamente os processos de demarcação de 228 Terras Indígenas (TIs) que ainda não foram homologados, os quais devem ser paralisados. Essas terras representam uma área de 7.807.539 hectares, com uma população de 107.203 indígenas.

O assunto já foi denunciado à ONU e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em abaixo assinado, entidades encaminharem à Relatora Especial das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, e ao Embaixador Presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Joaquín Alexander Maza Martelli, denúncia contra o governo brasileiro, acusando-o de violar direitos dos povos indígenas e também dos quilombolas. Lutar contra a PEC 215 e o marco temporal não é só defender a causa dos índios e, muito menos, ser altruísta. É defender nossa própria sobrevivência, evitando assim crises hídricas, secas prolongadas e epidemias provocadas por desequilíbrio ambiental.

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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