As bolhas do Caminho

A “Meseta” é crítica. Longas retas, sem sombra alguma, e com um sol de 40 e muitos graus para cada peregrino no verão. Uma paisagem apenas de trigo e cevada

Histórias de dor, persistência e solidariedade numa jornada de 900 km

Por Giovanni Faria | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 22 de julho de 2016 - 08:17 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:47

A “Meseta” é crítica. Longas retas, sem sombra alguma, e com um sol de 40 e muitos graus para cada peregrino no verão. Uma paisagem apenas de trigo e cevada
A "Meseta" é crítica. Longas retas, sem sombra alguma, e com um sol de 40 e muitos graus para cada peregrino no verão. Uma paisagem apenas de trigo e cevada
A “Meseta” é crítica. Longas retas, sem sombra alguma, e com um sol de 40 e muitos graus para cada peregrino no verão. Uma paisagem apenas de trigo e cevada

Ora, bolhas! Elas podem até tardar, mas não falham. Para muitos no Caminho de Santiago de Compostela, aparecem já na descida dos Pirineus, no primeiro dia. Os cinco quilômetros de descida até Roncesvalles são mortais. Adeus, joelhos. Até breve, unhas dos pés. E as bolhas dão o ar de sua (des)graça.

[g1_quote author_name=”Hiko” author_description=”Peregrino japonês, 66 anos” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

A dor não impede de caminhar. Vale o sacrifício. Nem penso nela. Me sinto uma criança quando estou no Caminho.

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Mas na “Meseta”, o deserto espanhol, entre as grandes e belas cidades de Burgos e León, as bolhas são quase inevitáveis. Prazer e dor são constantes no Caminho. As bolhas surgem do atrito entre os dedos do pé com a bota. Para evitá-las, é preciso doses generosas diárias de vaselina líquida, antes de calçar as meias. Estas também precisam ser especiais, sem costura.
Mas se já despontaram, o Caminho opera o primeiro milagre: nas farmácias, compra-se o Compeed, espécie de band-aid de alta aderência.  É a chamada segunda pele.  Custa 7 euros, os mais bem gastos da travessia. Pé na estrada.

– É o produto que mais vendemos, seguidos daqueles para tendinites e torções – diz Anna, atendente de farmácia em Burgos. – Recebemos mais peregrinos do que moradores locais. É difícil alguém passar incólume no Caminho.

Se a bolha cresceu, não tem saída: é preciso furá-la com agulha e linha – esta fica no interior para drenar todo o líquido. Não dói, mas muita gente não tem coragem de fazer. Mas peregrinos e hospitaleiros de albergues estão sempre à disposição para a “cirurgia”.

– Furo muitas bolhas todos os dias – conta a freira Ilma, em Carrión de los Condes, em plena “meseta” espanhola – o deserto de quase 300 quilômetros no Caminho, sem dúvida o trecho mais duro.

A freira Ilma, em Carrión de los Condes, em plena “meseta” espanhola: “furo várias bolhas todos os dias”

– Os pés fervem, fritam, parece que as botas vão derreter. É preciso parar a cada duas horas e besuntar os pés – sugere o espanhol Angel.

A “Meseta” é crítica. Longas retas, sem sombra alguma, e com um sol de 40 e muitos graus para cada peregrino no verão. Uma paisagem apenas de trigo e cevada.

– A dor não impede de caminhar. Vale o sacrifício. Nem penso nela – conta o japonês Hiko, que caminha com calças de tergal e camisa de mangas compridas. – Tenho 66 anos, mas me sinto uma criança quando estou no Caminho.

Há albergues que oferecem massagens (em média, 15 euros). Outros, como o de Santo Domingo de la Calzada, há cadeiras para massagens, com sessão curta a 1 euro. Há máquinas com massagem para os pés – 5 minutos a 2 euros: valem muito a pena.

Caminhar cerca de 30 quilômetros todos os dias não é tarefa simples, causa grande desgaste. Mas, por os pés na água fria dos rios, é uma benção. Em Nájera, no fim de tarde – o sol só se põe nesta época lá pelas 22h – peregrinos invadem o rio da cidade em busca de relax. Em Hontanas, em plena “Meseta”, há fontes por toda parte. Ou, por 2 euros, um passe para a piscina pública. Impossível não mergulhar e refrescar o corpo, em especial os pés.

Com o tempo, o corpo se acostuma com as longas caminhadas, mas os pés exigem atenção especial.

– Tive nove bolhas. Quase tive que desistir. Mas furei, sequei e segui adiante – conta a costarriquenha Samy, que, em razão disso, trocou as botas por papetes.

Mas nem só de bolhas vivem os peregrinos. O dinamarquês Rasmus faz o Caminho num monociclo. Das 40 mil pessoas que chegaram a Santiago mês passado, 36 mil estavam a pé, quase 4 mil de bicicleta, 280 a cavalo e 25 em cadeira de rodas. Mas em monociclo, não há registro.

– Já levei dois tombos. Pouco ou nada para quem faz 60 quilômetros todos os dias. Só estou com muitas dores nas costas – conta o jovem de 20 anos, numa engenhoca que nem freio tem.O Caminho passa do meio e Santiago, a duras penas, está a cerca de 420 quilômetros – uma Rio-São Paulo de desafios pela frente. Na terça-feira, você vai conhecer as cidades do Caminho, em especial as fantasmas, que chegam a ter menos de 30 habitantes. Buen Camino!

Giovanni Faria

É jornalista e trabalhou por 33 anos no jornal O Globo e nas rádios CBN e Globo. É professor da PUC-Rio e da Facha. Também é formado em Direito. Desde que levou um "susto" no coração há quatro anos, adotou a caminhada como atividade diária. Nasceu em Friburgo, mora em Niterói, vive em Búzios, mas desde 2014 não tira o Caminho de Santiago de Compostela da cabeça nem dos pés. A mulher, Christiane, e o filho Thomás já cruzaram a Espanha a pé também - agora só faltam as filhas Victória e Catarina.

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