Setenta anos depois de despertar o país para a chaga da fome, o grande geógrafo e pensador do Brasil, Josué de Castro, continua atual. Como o primeiro intelectual brasileiro a desnaturalizar essa praga da sociedade e a denunciar que a fome é a “expressão biológica de males sociológicos” e não “produto da superpopulação”, seu sonho de fome zero nunca ocorreu. Ainda hoje, 800 milhões de pessoas no mundo sofrem de subnutrição crônica. O levantamento é da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, da sigla em inglês), da qual Josué de Castro foi presidente do conselho por duas vezes.
Ainda que o Brasil tenha saída do mapa da fome, sua obra continua despertando curiosidade e levando a uma releitura pós-moderna do único romance do autor: “Homens e Caranguejos”, que foi lançado em 1967, seis anos antes da morte do cientista. Foi observando o mimetismo entre homens e caranguejos nos mangues do Capiberibe, em Recife, Pernambuco, que Josué de Castro enxergou na cena cotidiana da sua cidade natal a fome, e transformou o tema em objetivo de estudo. Em “Geografia da Fome” e “Geopolítica da fome”, ele quebrou tabus, derrubou mitos e mostrou ao mundo que a fome é produto da má distribuição e não um fenômeno natural.
Pouco mais de quatro décadas depois de sua morte, a atualidade de Josué de Castro é comprovada na peça “Caranguejo Overdrive”, que usa seu romance como narrativa inspiradora para falar de carência, de fome e, paradoxalmente, de abundância. Com direção de Marco André Nunes e texto de Pedro Kososki, a peça transferiu para o Rio de Janeiro a exploração da fome com o aterro dos mangues do século XIX, cujos caranguejos eram fonte de alimentação da população local. Com banda em cena, a montagem também tem como referência o cantor Chico Science, um dos maiores colaboradores do Manguebeat, movimento contracultura nascido em Recife que mistura ritmos como maracatu, rock, hip hop e música eletrônica que também incorporou a obra de Josué de Castro em algumas de suas composições.
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Veja o que já enviamosA peça conta a trajetória do trabalhador do mangue Cosme, que é enviado como soldado a Guerra do Paraguai e por lá permanece por seis anos, até que sofre um colapso e é dispensado. Quando retorna ao Brasil, vê sua vida destruída com o fim do manguezal, de onde tirava seu sustento e começa a se tornar ele próprio o caranguejo. Cosme, na verdade, incorpora o que Josué de Castro descreve em seus livros: “A lama dos mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo.”
Grande vencedora dos prêmios Shell, APTR (Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro) deste ano, e Cesgranrio, a montagem faz uma crítica a gentrificação do espaço urbano, relatando a transformação da região Portuária do Rio com as reformas de Barão de Mauá e Pereira Passos, sendo impossível não fazer um paralelo com as atuais obras para receber as Olimpíadas 2016.
Muito legal, tudo! Parabéns!