Refugiados entram em cena

Cada vez mais numerosos, grupos buscam espaço no Brasil através da cultura e da gastronomia

Por Florência Costa | ODS 9 • Publicada em 9 de abril de 2016 - 10:00 • Atualizada em 11 de abril de 2016 - 14:05

Show de refugiados do Togo, num evento promovido pelo Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST)
Show de refugiados do Togo, num evento promovido pelo Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST)
Show de refugiados do Togo, num evento promovido pelo Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST)

Feiras gastronômicas, exposição de fotos, concursos de vídeos, peças de teatro, filmes, shows, cursos de línguas e debates. O calendário de eventos de São Paulo sempre foi conhecido como o mais farto e multicultural do país. Mas nos últimos tempos ganhou um ingrediente a mais: passou a refletir a nova onda de chegada de refugiados no Brasil, procurando conscientizar os brasileiros sobre o drama que representam.

[g1_quote author_name=”Rami” author_description=”Refugiado palestino” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

A vida aqui não é facil, mas as pessoas são tão boas e amistosas que não temos razão para reclamar. Meus planos são de me fixar no Brasil.

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Eles deixam famílias e amigos. São expulsos de seus países por conflitos e chegam aqui com o desafio de reconstruir suas vidas do nada. Se em 2011 o país tinha pouco mais de quatro mil refugiados reconhecidos, hoje tem o dobro, de mais de 80 nacionalidades, como sírios, angoleses, colombianos e congoleses. Além disso, outros 12 mil estão aqui na condição de solicitantes de refúgio. Há também os haitianos, que não tem visto de refugiados, mas um visto humanitário, devido ao catastrófico estado de seu país após o devastador terremoto de 2010.

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Em 2013, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) adotou uma resolução para desburocratizar a emissão de vistos para cidadãos sírios e outros estrangeiros afetados pela guerra. Apesar do aumento, o número de refugiados no Brasil ainda é baixo se comparado com outros países. Especialistas afirmam que o país poderia receber mais.

Saleem Zafary é um sírio refugiado que, junto com amigos, criou uma doceria que faz sucesso no bairro de Pinheiros, a Damascus, com doces baratos ( a partir de R$2 ) e café no estilo turco.

Instituições governamentais e ONGs já organizam feiras de emprego para refugiados: fazem a mediação entre a mão de obra e o empregador. Mas boa parte enfrenta preconceitos alimentados pelo desconhecimento por parte do brasileiro sobre o que é um refugiado. Muitos pensam que são pessoas que fugiram da polícia em seus países, que cometeram algum crime. Os eventos que pipocam no calendário paulistano aliam entretenimento com conscientização, procurando aproximar a população local da cultura destes novos estrangeiros.

Cabe ao governo federal promover a proteção legal destas pessoas, processar os pedidos de refúgio e documentá-los. O estado e o município têm como responsabilidade garantir o acesso a políticas públicas, como escola, assistência social, saúde, habitação e geração de renda. Eles desembarcam com visto de turista e têm até três meses para pedir refúgio. Assim que solicitam o refúgio, já têm direito ao CPF e à Carteira de Trabalho. Mas é claro que as garantias ficam no papel. A maioria tem dificuldade de encontrar trabalho condizente com sua formação. São engenheiros, arquitetos, advogados, mas como não sabem falar português, aprendem outras tarefas para sobreviver: cozinham, cantam, tocam, dão aulas de línguas, limpam e assim por diante.

Várias organizações promovem, por exemplo, aulas de línguas para brasileiros. Um exemplo é a “Abraço Cultural”, que em parceria com o Instituto de Reintegração do Refugiado (Adus) criou em 2015, em São Paulo, uma escola que oferece cursos de inglês, espanhol, árabe e francês. Aulas de espanhol com um grupo de música tradicional cubana ou de árabe com contadores de história da Síria permitem a transmissão da cultura do professor, não apenas o aprendizado da língua. Foi um sucesso e por isso esta iniciativa foi deslanchada no Rio de Janeiro neste ano. O projeto inseriu no mercado de trabalho em São Paulo 28 refugiados, com cursos para 300 alunos em menos de um ano. A Abraço Cultural já realizou várias festas e participou do carnaval de rua de São Paulo deste ano com o bloco RefugiAmados, cujos destaques foram os foliões da Síria e do Haiti.

Simbolicamente, no dia em que a capital paulistana comemorou seus 462 anos, em 25 de janeiro, o Museu da Imagem e do Som (MIS) ofereceu ao público o evento “São Paulo sem Fronteiras”, que reuniu artistas refugiados e imigrantes do Haiti, Congo, Senegal e de vários países árabes. Foi organizada uma feira gastronômica com pratos árabes, haitianos e africanos, oficinas de caligrafia árabe, dança folclórica do Togo e de uso de turbantes africanos em mulheres, homens e crianças. Além disso foi montada uma exposição de fotos (“Refugiados Eu Me Importo”), parte de uma campanha criada pelo Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto de São Paulo (GRIST), coordenado pelo congolês Pitchou Luambo.

Show de grupo do Congo organizado em evento do Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST)

A saga dos refugiados e imigrantes tem inspirado artistas brasileiros. Em abril o Sesc Belenzinho vai exibir a peça “São Paulo Refúgio”, do grupo Performation. A Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR) lançou um edital para vídeos curtos sobre refugiados dentro da Programação “Festival do Minuto”. Os projetos serão aceitos até o dia 31 de maio. Os melhores vídeos serão exibidos em uma cerimônia no Dia Mundial do Refugiado, em 20 de junho. Em meados deste ano será lançado o filme “Era o Hotel Cambridge” (veja o trailer abaixo), sobre um grupo de refugiados recém-chegados no Brasil. Apoiados pelos sem-teto, eles dividem um prédio ocupado no Centro de São Paulo. O filme, de Eliane Caffé, expõe suas diferentes visões de mundo em meio aos problemas da sobrevivência diária, como as ameaças de despejo.

A história real de um prédio no bairro da Liberdade parece ter saído das telas. Um grupo que luta por moradias populares, o Movimento Terra Livre, cedeu três dos onze andares de um antigo edifício da Telesp (a ex-operadora de telefone do Estado), abandonado há 15 anos, para abrigar 20 famílias de refugiados. Um deles é Rami, 30 anos, um palestino que se refugia pela terceira vez na vida: primeiro ele foi forçado a partir para a Síria, onde viveu em um campo de refugiados. A guerra eclodiu naquele país e ele fugiu para o Líbano. Lá, ele tentou, em vão, visto para a Europa, EUA e Canadá. Um amigo deu a dica do Brasil.

No edifício ocupado muitos têm histórias semelhantes à de Rami. Eles já organizaram vários eventos dentro de um salão do prédio para arrecadar dinheiro. Em um deles, com feirinha de comida, Rami servia esfihas e doces, enquanto contava a sua triste saga de fugas. “A vida aqui não é facil, mas as pessoas são tão boas e amistosas que não temos razão para reclamar. Meus planos são de me fixar no Brasil”, contou ele, que se preparava para ser um acadêmico em estudos islâmicos antes de desembarcar em solo brasileiro.

Rami trabalha em um restaurante de comida árabe no Centro de São Paulo que se transformou em uma referência dos refugiados: o Al-Janiah, aberto em janeiro por Hasan Zarif, brasileiro de origem palestina cujos pais vieram para o Brasil em 1967. Cozinheiros, atendentes do bar, caixa e garçons são todos refugiados no Al-Janiah e Zarif faz a tradução quando é preciso. O lugar foi batizado assim em homenagem a um vilarejo da Cisjordânia, parte dos territórios palestinos ocupados por Israel, local onde nasceram os pais de Zarif. Shows de música árabe, lançamentos de livros e debates atraem estudantes universitários e especialistas nos assuntos escolhidos para a discussão.

Zarif lembra que na leva de refugiados de guerra do Iraque e do Afeganistão que chegou ao Brasil a partir de 2007, a recepção foi um desastre. “O país não estava preparado e deixou os refugiados sem auxílio nenhum. Muitos deixaram o Brasil. Hoje já é diferente. Aprendeu-se muito com a experiência passada, mas mesmo assim ainda há muitos problemas”, disse.

Muitas ONGs e grupos da Igreja Católica oferecem ajuda para lidar com a burocracia brasileira e cursos de português. Foi em um dos bazares de caridade promovidos pela Adus que o casal sírio Talal e Ghazal Al-tinawi tiveram a ideia de começar a vender comida online para sobreviver. A comida deles fez tanto sucesso que hoje já planejam abrir um restaurante. A história com final feliz do engenheiro Talal e sua família, porém, é exceção.

Os haitianos e africanos, por exemplo, relatam experiências mais sofridas. São alvo de uma série de preconceitos, fruto do racismo brasileiro. Os haitianos que chegam sem documento ficam mais vulneráveis à exploração, como o trabalho escravo.  Muitos deles trabalham em péssimas condições na construção civil.

Mas os dramas dos tempos de guerra são todos parecidos. Um dia, alguns homens armados vieram procurar por Talal em sua casa, em Damasco. Ele teve que fugir com a família para o Líbano. Por dois meses eles tentaram vistos para vários países ocidentais, mas todos foram todos negados. Na embaixada brasileira em Beirute eles conseguiram o visto e voaram para São Paulo em 2013.

Aqui, o diploma de enhenheiro mecânico de Talal não foi reconhecido e ele não conseguiu arranjar emprego. O dinheiro que haviam trazido da Síria acabava, a situação ficava desesperadora, até que surgiu a saída de sobreviver pelo fogão. “Os brasileiros nos ajudaram muito e nossa vida foi ficando mas fácil. Graças a Deus nós viemos para o Brasil, país que nós não conhecíamos, não sabíamos nada a respeito. Foi uma boa decisão não ir para a Europa”, constatou.

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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