A barbárie do capitalismo de papel

A Gávea e a Rocinha, lado a lado, no Rio: crise climática afeta ricos e provas, mas agenda urgente não circula pela população. Foto Custodio Coimbra

Documentário de Silvio Tendler revela como o sistema financeiro ameaça as democracias do mundo

Por Cristina Chacel | ODS 9 • Publicada em 7 de outubro de 2017 - 12:34 • Atualizada em 8 de outubro de 2017 - 22:25

A Gávea e a Rocinha, lado a lado, no Rio: crise climática afeta ricos e provas, mas agenda urgente não circula pela população. Foto Custodio Coimbra
A enorme desigualdade provocada pela hegemonia financeira no mundo é o tema principal de "Dedo na Ferida", de Silvio Tendler. Foto Custódio Coimbra
A enorme desigualdade provocada pela hegemonia financeira no mundo é o tema principal de “Dedo na Ferida”, de Silvio Tendler. Foto Custódio Coimbra

O título não poderia ser mais feliz, pela simplicidade e assertividade. “Dedo na ferida”, o novo documentário de Silvio Tendler, que será exibido semana que vem no Festival do Rio, vai direto ao ponto e aponta, sem anestesia, o vilão do capitalismo contemporâneo. Tendler reúne pensadores, economistas, sociólogos, filósofos, professores, ativistas e jovens de periferia para falar o que os governos não falam e o que não se ouve muito por aí: o estrago que a hegemonia financeira vem produzindo na vida de cidadãos do mundo, excluídos da festa dos juros e dos ganhos de capital.

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Se você detém o poder econômico, todas as outras formas de poder são subalternas a ele. O orçamento do governo revela que seus principais beneficiários são os juros e as amortizações da dívida interna, um dinheiro que vai para os bancos, as seguradoras, os fundos de investimento e a elite que gravita neste universo. São eles os donos do poder

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O modelo global da financeirização da vida desconhece territórios, nacionalidades, soberanias, singularidades e qualquer tipo de vínculo com a vida real.  É o que o cineasta grego naturalizado francês Costa-Gavras chama de hipercapitalismo, o capitalismo pós-guerra fria, movido unicamente pelo dinheiro, cujos principais resultados são o desemprego em larga escala e uma economia que faz dos ricos cada vez mais ricos e dos pobres cada vez mais pobres.

“Vivemos um ciclo que anula todas as conquistas no plano social e humano. Tudo anulado por grupos poderosos que hoje dirigem a economia em favor de um punhado de acionistas, em meio a sete bilhões de pessoas no planeta. É o fim da democracia, com resultados perversos”, testemunha Costa-Gavras, no filme de Tendler.

Exagero? Catastrofismo? A polifonia de “Dedo na ferida” sugere acordarmos do passado para entendermos a lógica oculta que nos rege no tempo presente, o poder invisível que está acima de governos e seus orçamentos e que por isso determina escolhas, rumos, destinos. Guilherme Mello, professor de Economia da Unicamp, resume a ópera:

“Até a década de 70, quando ainda se seguia o Acordo de Breton Woods, os fluxos (de capital) eram limitados, atendendo à demanda do pós-guerra, quando prevaleceu a percepção de que a crise dos anos 30 era decorrente da liberalidade. A especulação financeira foi regulada e vieram os 30 anos gloriosos do capitalismo, com crescimento, distribuição de renda, industrialização e a formação de uma sociedade de classe média nos Estados Unidos. A partir dos anos 70, esse arranjo perde dinamismo e o que vem no lugar é a liberalização financeira. Ressurgem as recorrentes crises, crescimento menor com mais acumulação de capital e menos acumulação produtiva, concentração de renda e da riqueza e perda de autonomia dos governos. Os governos agora lutam contra massas enormes de capital que circulam livremente no globo”.

Retrocesso ideológico

Esqueça tudo o que você um dia aprendeu sobre o funcionamento das coisas. Esqueça o chão da fábrica, o gerente, o contracheque, o sindicato, a lei da oferta e da procura. Na ordem financeira global, o que faz a roda girar são papéis. “Você pode mover imensos papéis e não vai ter um par de sapatos a mais no país”, avisa o professor Ladislau Dowbor, da PUC de São Paulo, um perito em finanças solidárias, de um outro mundo possível, que resiste à margem dos holofotes que iluminam as teses hegemônicas do “rentismo”, a ciranda que produz dinheiro sem o suor do trabalho.

Há pelo menos três décadas, a partir dos anos 80, com o processo que ficou conhecido como globalização, o capitalismo produtivo vem sendo substituído pelo capitalismo especulativo, diz a professora Maria José Fariñas Dulce, que leciona Filosofia do Direito na Universidade Carlos III, de Madri, Espanha. No imenso cassino mundial, o trabalho perdeu centralidade e avançam as posições conservadoras:

“Não vivemos uma crise econômica. Não é uma crise financeira, tratada como uma questão técnica. Não vamos nos recuperar. É falso. O que estamos assistindo é a implementação da ideologia da austeridade, uma ideologia que pretende desmantelar políticas sociais, suprimir controles e direitos, desregular o trabalho. O domínio do poder financeiro sobre o poder político significa, na prática, para as classes populares, trabalhadoras, e também para as classes médias, que começam a se dar conta, por meio de seu empobrecimento brutal, um enorme sofrimento social. E um retrocesso ideológico: germinam posições neoconservadoras, como o nacionalismo exacerbado e a busca de religiões fundamentalistas”.

Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, concorda com a professora espanhola. Ele diz que o modelo de jogar todos os custos sobre os ombros dos mais fracos é responsável pelo reerguimento das fronteiras, das cercas, do nacionalismo, da misantropia e do racismo. Professora de Planejamento Urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Raquel Rolnik adiciona um complicador a mais ao debate, a mercantilização do território desvinculada das necessidades das pessoas e das comunidades:

“Vivemos uma guerra de lugares, o conflito pelo uso do espaço determinado pelo seu potencial de rentabilidade, versus todas as outras formas de vínculo entre os indivíduos e o território. Favelas, periferias, ocupações culturais estabelecem uma lógica que não é a da propriedade privada individual”.

O modelo global da financeirização da vida não tem qualquer tipo de vínculo com a vida real. Foto Custódio Coimbra

Poder de destruição

Conforme o documentário de Silvio Tendler avança, você pode começar a se sentir acuado. Sim, críticos da ciranda financeira que ganham voz no filme alertam para o poder de destruição do sistema financeiro. Paulo Nogueira Batista Junior, vice-presidente do Banco de Desenvolvimento dos Brics, o bloco formado por Brasil, Rússia, Índia e China, diz que a crescente influência das finanças na economia, que levou os teóricos a cunharem o termo financeirização, é um processo de irresponsabilidade:

“As pessoas movimentam enormes fundos de um país para outro, sem transparência e sem consciência sobre se aquilo tem alguma utilidade social. Teoricamente, o sistema financeiro deve servir ao propósito meritório de transferir recursos de setores superavitários para setores deficitários que querem investir. Mas esse é o livro-texto. Na realidade, o atravessador domina. Em vez de ser o intermediário, ele passa a ser o objetivo em si.  O meio vira o fim”.

Economista e empresário, Keith Cattley é aquele amigo com quem Silvio Tendler tem longas discussões sobre a conjuntura econômica e política do Brasil. Numa dessas conversas, Cattley resumiu seu entendimento que agora está no filme:

“Se você detém o poder econômico, todas as outras formas de poder são subalternas a ele. O orçamento do governo revela que seus principais beneficiários são os juros e as amortizações da dívida interna, um dinheiro que vai para os bancos, as seguradoras, os fundos de investimento e a elite que gravita neste universo. São eles os donos do poder”.

Silvio Tendler: “Estamos dentro de uma crise muito grande, diante de um novo 29”. Foto Custódio Coimbra

No Brasil, os donos do poder, de que fala Cattley, se fazem representar por uma dívida interna de R$ 3 trilhões e ficam com quase a metade, 47%, de tudo que se arrecada em impostos. No Primeiro Mundo, diz o empresário, 4% a 5% do que é arrecada é gasto com juros. Países como México, mais próximos de nós, comprometem até 9% da receita com pagamento de juros, mas ninguém paga mais que 15% do que arrecada, salvo pontualmente, em casos de guerra. “Se o mundo inteiro paga, em média, 7%, 8%, nós não podemos pagar 47% do que arrecadamos em troca de nada”, observa.

Mas o que foge inteiramente ao controle é que nem só os donos do poder respondem pelas movimentações. Boaventura de Sousa Santos, professor de Sociologia da Universidade de Coimbra, Portugal, lembra que a lógica do capital financeiro pode ser homicida, quando um jovem qualquer, de qualquer lugar do mundo, quem sabe uma pessoa simpática, que inclusive pratica uma vida solidária, senta diante do seu computador e de uma hora para outra se transforma num assassino, podendo levar um país à bancarrota. “Foi o que aconteceu com a Grécia”, diz ele no filme.

Dez entre dez economistas citam o caso da Grécia como exemplar do poder de destruição do sistema financeiro:

“A Grécia não é dos gregos, é dos bancos”, sentencia o professor Dowbor.

“Varoufakis tentou renegociar a dívida da Grécia inutilmente. O capital financeiro tira das populações o direito de definir as rotas de seus países porque estas já estão definidas, a priori, pelas relações econômicas”, acrescenta Guilherme Mello, da Unicamp.

“A democracia não pode ser autorizada a mudar a política econômica”, ouviu Yanis Varoufakis, no Eurogroup, ante a sua impertinência de tentar renegociar os termos do endividamento de seu país.

Filme B.O.

Na hora e meia de duração do documentário “Dedo na ferida”, Silvio Tendler oferece uma aula de economia para seu espectador, cujo primeiro mérito consiste justamente em afirmar que, não, não é natural este processo que vivemos, determinado e dominado por poucos, em prejuízo de tantos. Não, assim não é, embora insistam para você que é e realmente lhe pareça ser. Existe algo além do pensamento único, do modelo único, do remédio único e amargo que mandam você tomar em nome de uma cura que não virá.

Outros mundos são possíveis e o próprio documentário de Tendler, enquanto produto, parece dizer isso. É um empreendimento que foge à regra, fora da curva. Não teve incentivo fiscal público nem consumiu os milhões que normalmente envolvem o fazer da indústria cultural. É filme B.O., de baixo orçamento, integralmente patrocinado pelo Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ), que contou com o reforço da Federação Interestadual dos Sindicatos dos Engenheiros (Fisenge). Entre eles e o cineasta, a palavra patrocínio foi substituída pela palavra parceria, e não é figura de retórica. Assim se deu, para além da cooperação financeira.

Às vésperas de completar 50 anos de cinema, ele começou no emblemático ano de 68, e dono de uma filmografia que documenta personagens e pensadores de alta linhagem como os ex-presidentes brasileiros JK e Jango, o geógrafo Milton Santos, o cineasta Glauber Rocha e o guerrilheiro Carlos Marighela, Silvio Tendler é um ser risonho, que vive cercado de amigos, no seu apartamento da Avenida Atlântica, de frente para o mar, entulhado de quinquilharias e surpresas, com destaque para a cadeira de dentista, a geladeira dos anos 60 e um varal de roupas no meio da sala de visitas. “Isso aqui é uma extensão de Havana”, diverte-se, referindo-se à estética popular da capital de Cuba.

Diante do dramático diagnóstico do tempo presente exposto em “Dedo na Ferida”, Tendler confidenciou:

– Eu acho que é muito difícil olhar com precisão o momento que vivemos. Estamos dentro de uma crise muito grande, diante de um novo 29, anos 30. Gosto muito da história porque para mim ela é o futuro, não o passado. E se você olha os anos 30 vai ver que estamos vivendo de novo os enfrentamentos entre comunismo e fascismo. O mundo está se “fascistizando” e a gente está lutando com unhas e dentes para impedir.

A conversa se alongou e se aprofundou em torno do filme, farto em imagens contundentes da realidade social, com direito a fotos de Ana Carolina Fernandes, Anne Abitbol e Custodio Coimbra, entre outros, e recheado de números, estatísticas e gráficos de arrepiar os cabelos. Dá vontade de contar tudo, mas aí já seria spoiler. Melhor mesmo conferir no cinema mais perto de você. Dia 12, no Cine Odeon, às 13h, seguido de debate com Tendler e a economista Laura Carvalho, professora da USP, que também participa do filme, e dia 13, às 19h, no Kinoplex Cine São Luiz. Vai dar para pensar que um outro mundo, sim, é possível. Veja o trailer:

Cristina Chacel

Jornalista e escritora, atuou nos principais jornais do Rio de Janeiro. Há 20 anos trabalha como freelance, com criação de textos jornalísticos e institucionais e projetos sociais e solidários. É autora de dezenas de livros, entre eles "Rio de cantos mil", com fotos de Custodio Coimbra.

Nota da redação: Cristina Chacel morreu em 2020.

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Um comentário em “A barbárie do capitalismo de papel

  1. Gustavo Ferreira Teixeira disse:

    POR AMOR, PODEM ME ENVIAR O DOCUMENTÁRIO POR E-EMAIL, SOU ESTUDANTE DE ECONOMIA E EMPREENDENDOR FINANCEIRO, CREIO QUE BONS ARGUMENTOS SÃO APRESENTADOS PARA DEFENDER TANTO MINHA TESE ACADÊMICA, QUANTO MINHA TESE DE VIDA NOS EMPREENDIMENTOS QUE ATUO.

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