A Venezuela de A a V

Democracia ou ditadura? Um pouco de reflexão em meio a um tiroteio de paixões

Por Igor Fuser | ODS 8 • Publicada em 19 de outubro de 2017 - 08:33 • Atualizada em 19 de outubro de 2017 - 12:23

Venezuelanos esperam na fila para votar no pleito do último domingo, onde 61% dos eleitores compareceram às urnas. Foto Juan Barreto/AFP
Venezuelanos esperam na fila para votar no pleito do último domingo, onde 61% dos eleitores compareceram às urnas. Foto Juan Barreto/AFP
Venezuelanos esperam na fila para votar no pleito do último domingo, onde 61% dos eleitores compareceram às urnas. Foto Juan Barreto/AFP

De alguns meses para cá, uma parte da mídia brasileira passou a se referir à vizinha Venezuela como uma “ditadura”. Essa mesma mídia noticiou as eleições para governadores estaduais realizadas na Venezuela neste domingo, 15 de outubro. Num país onde o voto é facultativo (só vota quem quer), mais de 61% dos eleitores compareceram às urnas. O Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), liderado pelo presidente Nicolás Maduro, elegeu 18 dos 23 novos governadores (dois a menos do que o número de estados que governa atualmente), e a Mesa de Unidade Democrática (MUD), oposicionista, os outros cinco. No total, os candidatos governistas tiveram 54% dos votos, contra 45% dados à oposição. Ambos os lados fizeram suas campanhas livremente e as acusações de fraude, feitas por opositores logo após o pleito, já saíram de pauta, por absoluta falta de evidências concretas. Bueno… A pergunta que fica: onde está a “ditadura” nessa história?

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Em nenhuma eleição nacional se verificou fraude. Isso se deve ao sistema de votação em que o eleitor registra duas vezes o voto – primeiro na urna eletrônica (igual se faz no Brasil) e, em seguida, depositando o comprovante numa urna. Isso permite a verificação do voto em papel, caso exista dúvida quanto ao resultado do voto no computador. E a identidade do eleitor é checada pelas impressões digitais.

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É verdade que os jornais, revistas, emissoras de rádio e TV e portais de internet que chamam o governo venezuelano de antidemocrático não estão sozinhos. Essa também é a posição das autoridades dos Estados Unidos e de vários países latino-americanos alinhados com o ponto de vista de Washington. Até aí, não tem novidade. Desde que Hugo Chávez tomou posse pela primeira vez como presidente venezuelano, em 1999, os EUA fizeram de tudo para derrubar o governo de Caracas. Financiam partidos e organizações opositoras e até se envolveram num fracassado golpe de Estado contra Chávez, em abril de 2002. Mas esses governantes contrários à chamada Revolução Bolivariana – como os seguidores de Chávez nomeiam seu projeto político – também têm dificuldade de responder à pergunta: cadê a ditadura?

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O candidato de oposição ao governo Carlos Ocariz (C) faz campanha no Centro de Caracas. Foto Juan Barreto/AFP

Para destrinchar o assunto de uma forma clara e dinâmica, elaborei meu ponto de vista sobre o conflito na Venezuela na forma de tópicos, em ordem alfabética, como se segue.

Assembleia Nacional – É o Legislativo venezuelano. Nas eleições mais recentes, em dezembro de 2015, a coligação opositora MUD teve uma ampla vitória, com 56% dos votos, o que pelo sistema de voto distrital lhe deu uma bancada de quase dois terços do total. Mas um impasse está bloqueando, desde então, o funcionamento da Assembleia. Três dos novos congressistas tiveram sua eleição impugnada pela Justiça Eleitoral, por conta de irregularidades comprovadas. Ainda assim, a maioria opositora no Legislativo insiste em reconhecer o mandato desses três parlamentares. O resultado desse choque institucional é que nenhuma decisão da Assembleia é considerada válida pelo Tribunal Supremo de Justiça (TSJ).

Constituinte – Diante da crise política e econômica no país, o presidente Maduro convocou uma Assembleia Constituinte, que foi eleita no dia 31 de julho deste ano. A oposição boicotou o chamado e fez campanha pela abstenção. Apesar disso, 41% das pessoas habilitadas compareceram às urnas. Num país onde a média de abstenções é de 25% (pessoas que não votam, pelos mais diferentes motivos), é legítimo afirmar que a maioria do eleitorado venezuelano deu respaldo à nova Constituinte, que está se reunindo e tomando decisões sem a presença da oposição.

Crise econômica – O país enfrenta a escassez crônica de todo tipo de produtos e a inflação mais alta do mundo, entre outras mazelas. Medidas de emergência, como a distribuição de cestas básicas a preços subsidiados, estão evitando, até agora, uma crise humanitária, mas o sofrimento é grande. O governo explica a crise pela sabotagem econômica praticada por empresários opositores, que se recusam a produzir ou desviam as mercadorias para o mercado paralelo, a fim de provocar insatisfação. Isso é inegável, fato comprovado, assim como as críticas oposicionistas à ineficiência governamental também são difíceis de contestar.

Eleições – A Venezuela realizou mais consultas eleitorais neste início de século do que qualquer outro país. Em nenhuma eleição nacional se verificou fraude. Isso se deve ao sistema de votação em que o eleitor registra duas vezes o voto – primeiro na urna eletrônica (igual se faz no Brasil) e, em seguida, depositando o comprovante numa urna. Isso permite a verificação do voto em papel, caso exista dúvida quanto ao resultado do voto no computador. E a identidade do eleitor é checada pelas impressões digitais.

O Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), liderado pelo presidente Nicolás Maduro, elegeu 18 dos 23 novos governadores. Foto Federico Parra

Forças Armadas – Os militares venezuelanos rejeitaram, até agora, todos os apelos dos políticos opositores para derrubar o governo de Maduro. As Forças Armadas se declaram leais à Constituição e consideram que as leis estão sendo respeitadas pelo governo. Repudiam as ameaças de intervenção militar estrangeira (como a que fez o presidente Donald Trump) e se dispõem a combater em defesa da soberania nacional, se necessário.

Intervenção externa – Líderes oposicionistas já pediram várias vezes aos EUA o envio de tropas para depor o governo de Maduro. Também defendem as sanções econômicas que estão agravando a situação do país. Em qualquer lugar do mundo, quem faz isso é preso e processado por traição à pátria. Apesar disso, eles circulam livremente, sem qualquer punição.

Mídia – A liberdade de imprensa é total na Venezuela, não existe qualquer tipo de censura. Os principais jornais atacam o governo diariamente e já chegaram a defender a insurgência para derrubá-lo. Existem emissoras de televisão pró e contra o governo, sendo que essas últimas – as mais tradicionais – contam com mais de 80% da audiência.

Partidos – A oposição venezuelana se distribui por dezenas de partidos políticos (assim como há diferentes grupos que apoiam o governo) e nenhum deles sofre qualquer tipo de restrição. Em meados deste ano, líderes oposicionistas se invocaram o “direito de rebelião” para defender a derrubada do governo. Depois, diante do fracasso da via insurrecional, a maioria deles inscreveu sua candidatura às eleições de governador.

Presos políticos – Dirigentes políticos opositores estão sendo processados e alguns deles (como Leopoldo López) cumprem pena, condenados por envolvimento em protestos violentos que resultaram em mortes e em destruição de patrimônio público. Ativistas antigoverno detidos em flagrante quando cometiam atos violentos também estão na prisão.

Violência – Protestos contra o governo ocorrem quase todos os dias nas principais cidades venezuelanos. São pacíficos, na sua maioria, e não sofrem repressão. No entanto, entre abril e julho deste ano, a oposição deflagrou uma ofensiva de ações violentas com o objetivo de levar o país ao caos e, dessa forma, criar condições para a derrubada do governo. Escolas, postos de saúde, frotas de ônibus, estações de metrô, repartições públicas, delegacias policiais foram atacadas e incendiadas por grupos de combate, treinados e armados com apoio de fora do país. Tais atos têm sido reprimidos pelas forças de segurança. Algumas mortes ocorreram por conta dessa repressão, e os responsáveis estão presos e respondem a processo. Mas um número muito maior de mortes – entre as cerca de 140 vítimas fatais – é atribuída a ações violentas dos opositores.

Igor Fuser

Igor Fuser é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Bernardo do Campo (SP). Jornalista, trabalhou durante vinte anos em publicações como a Folha de S. Paulo, a Veja e a Época. Autor de livros como “México em Transe”, “A Arte da Reportagem”, “Petróleo e Poder” e “Energia e Relações Internacionais”.

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