Uma dúzia de observações sobre ‘Escravidão’

Líder de vendas entre os livros de não-ficção no país, obra de Laurentino Gomes é obrigatória, por minuciosa e controversa; graças a ela, tema virou assunto dos brasileiros

Por Flávia Oliveira | ODS 8 • Publicada em 20 de novembro de 2019 - 02:46 • Atualizada em 20 de novembro de 2024 - 09:48

Gravura do século XIX mostra a posição dos escravos nos navios negreiros: história sonegada. Reprodução Costa/Leemage/AFP

É novembro, mês que o povo negro escolheu para celebrar personalidades históricas e reverenciar a luta ancestral por liberdade e direitos. É tempo de o Brasil ser confrontado com as mazelas seculares – desemprego, informalidade, baixa remuneração, atraso escolar, homicídio, violência de gênero, perseguição religiosa, pobreza, habitação precária – que alcançam os autodeclarados pretos e pardos, 55,8% da população, segundo o IBGE. Justiça seja feita, não é de agora a encomenda destas linhas pelo #Colabora. Foi meu cotidiano de compromissos que empurrou as reflexões sobre “Escravidão” (Editora Globo, 479 páginas, R$ 49,90) para o Dia Nacional da Consciência Negra, homenagem a Zumbi dos Palmares, líder do mais conhecido quilombo brasileiro e herói nacional desde 1997. Em 20 de novembro de 1695, ele foi morto e decapitado por bandeirantes, Domingos Jorge Velho à frente, escalados pelas autoridades coloniais. Daí a data.

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Laurentino Gomes, autor de “1808”, sobre a chegada da família real ao Brasil, “1822”, sobre a Independência, e “1889”, sobre a proclamação da República, iniciou há seis anos o projeto da trilogia que investiga a brutalidade seminal do país. Jornalista e escritor best-seller, com 2,5 milhões de livros vendidos, ele lançou em setembro o volume inicial da série, que abarca três séculos: do primeiro leilão de cativos em Portugal, em 1444, ao assassinato de Zumbi. O segundo livro sai em 2020 e cobrirá o século XVIII, auge do tráfico negreiro no Oceano Atlântico. O terceiro vai do movimento abolicionista ao século XXI; será lançado em 2022, ano do bicentenário da Independência.

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“Escravidão” estreou em setembro último na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Desde então, lidera as vendas de não ficção no país, informa o site “PublishNews”. Num par de meses, ultrapassou a marca de 40 mil exemplares comercializados. O prestígio do autor fez do período nefasto interesse nacional. E tornou “Escravidão” obra obrigatória de 2019. Como o próprio Laurentino gosta de dizer, não se trata de produção definitiva sobre o tema: “É uma, não a história”.

A obra é um compilado de produção acadêmica, entrevistas, estatísticas, mapas, fotos e relatos de visitas do escritor a uma dúzia de países de três continentes (África, América e Europa) organizado em 30 capítulos-reportagens. Tem a linguagem leve e o texto acessível que são a chave do sucesso de um dos mais festejados autores do país. Percorri “Escravidão” num só fôlego, me preparando para entrevistar Laurentino Gomes na Bienal.   A seguir, 12 pontos que me chamaram atenção, por arrasadores, polêmicos, surpreendentes, revoltantes.

1 – Homem branco, Laurentino Gomes reivindica lugar de fala para tratar do período escravocrata sob o que chama de “olhar atento”. Reconhece que seria indevido ou falso tentar expressar a dor e o sofrimento do “olhar negro”, que nunca experimentou. Mas como repórter, pesquisador, descendente de imigrantes italianos e de um líder abolicionista e republicano de Minas Gerais, está habilitado a tratar da escravidão. “Sua história e seu legado são temas do meu interesse, como deveriam ser para todos os demais 210 milhões de brasileiros”, escreveu. Com razão.

2 – Já na introdução, o autor trata de suas escolhas linguísticas. Embora compreenda a diferença de significados de palavras como escravo (substantivo ou adjetivo que remete à condição natural) e escravizado (situação circunstancial), optou por usar no livro o par de palavras incorporadas aos “usos e costumes da língua portuguesa”, bem como cativo. Dono e senhor de escravos também estão no texto, assim como índio, que guarda conotação negativa para os povos indígenas; e descobrimento (do Brasil), quando historiadores têm preferido a palavra chegada (dos colonizadores).

3 – O uso de mão de obra cativa alicerçou todas as antigas civilizações; atravessou diferentes regiões, etnias e povos. Na Rússia,  de 5% a 15% da população eram escravizados até 1725. Na China e na Índia, 10% dos habitantes eram cativos em 1800. Houve escravidão de brancos na Europa. Mas foi a colonização da América que deu ao sistema escala mercantil, via tráfico e venda de corpos negros africanos. A exploração associada à cor da pele também nasceu ali. Foi a escravidão que pariu o racismo.

4 – O primeiro registro de tráfico atlântico foi da América para a Europa, não o contrário. Cristóvão Colombo cruzou o oceano em 1493 com indígenas sequestrados da Ilha de Santo Domingo para Sevilha, na Espanha. Em 1511, Fernando de Noronha, que batiza o arquipélago famoso da costa nordestina, levou para Portugal peles de onça, toras de pau-brasil e 35 nativos. Quando os colonizadores chegaram, o Brasil tinha entre três e quatro milhões de indígenas, que falavam mais de mil línguas. Em 1808, eram 700 mil. Eles foram escravizados e dizimados. O genocídio dos povos nativos foi “uma das maiores catástrofes demográficas da história humana”, nas palavras do autor de “Escravidão”.

5 – O livro escancara o papel central das religiões na escravidão. O sistema foi a base da expansão do islã. Cerca de 12 milhões de negros africanos foram capturados e exportados por Saara, pelo Mar Vermelho e Oceano Índico dos séculos VII ao XIX. Foi praticamente o mesmo número de embarcados para a América em 350 anos. A Igreja Católica, até o fim do século XIX, nunca se pronunciou contra a escravidão. Mais que isso, ajudou a construir a base ideológica do regime no Novo Mundo, seja naturalizando o tráfico negreiro, seja ratificando a discriminação racial contra pretos e pardos. Sem falar no apoio às expedições marítimas a cargo de fanáticos extremistas, que forçavam a conversão de africanos e indígenas. O autor chega a comparar as missões jesuítas aos jihadistas deste século.

6 – Naturalizada, a escravidão alcançou nomes respeitáveis da História mundial. Aristóteles era senhor de escravos; Thomas Jefferson, autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos, idem. Tiradentes, herói da Inconfidência Mineira, foi dono de seis cativos. John Newton, autor de “Amazing Grace” [hino evangélico que o então presidente dos EUA, Barack Obama cantou em Charleston (Carolina do Sul) no funeral de um pastor metodista chacinado junto com oito fiéis], foi capitão de navio negreiro. Garcia D’Ávila, que batiza uma das ruas mais famosas de Ipanema, Zona Sul carioca, é festejado como o homem que trouxe a pecuária ao Brasil. Foi, contudo, especialista em capturar e escravizar indígenas, tal qual os bandeirantes Raposo Tavares e Fernão Dias, nomes de rodovias em São Paulo. Em guarani paraguaio, banderante é sinônimo de bandido. Sobrenomes como Souza, Silva, Santana, Chagas, Santos, Almeida e Medeiros pertencem a linhagens nascidas de ex-cativos brasileiros que retornaram à África, os agudás.

7 – De 1500 a 1867, 12,5 milhões de africanos atravessaram o Atlântico em 36 mil viagens de navios. Chegaram vivos à América, 10,7 milhões; no caminho 1,8 milhão de pessoas morreram. Por dia, em média, 14 corpos eram lançados ao mar, a ponto de tubarões mudarem suas rotas migratórias para seguir os tumbeiros. Sozinho, o Brasil recebeu 4,9 milhões de africanos, enquanto 750 mil portugueses entraram no país em três séculos e meio. Em 1872, a esperança de vida de um escravizado era de 18,3 anos, contra 27,4 anos da média da população. O extermínio da juventude negra vem de longe. Na época da Lei Áurea, em 1888, havia cerca de 700 mil cativos, em consequência do alto número de alforrias e da baixa taxa de natalidade nas senzalas.

8 – O comércio atlântico de africanos era orientado por dois grandes sistemas de correntes marítimas e ventos. Um, dominado por brasileiros e portugueses, favorecia as viagens de navios entre o litoral brasileiro e as regiões de Angola, Congo, Nigéria e Benim. Outro facilitava rotas entre Europa, Gana, Senegal, Caribe e América do Norte; era controlado por britânicos, holandeses e franceses.

9 – A presença feminina é modesta no primeiro volume de “Escravidão”. Há um capítulo dedicado à Catarina de Bragança, rainha de Portugal e Inglaterra, que foi acionista da empresa RAC, monopolista britânica do tráfico de escravos. Outra parte é dedicada à Rainha Jinga, de Angola, que comandou guerrilhas contra os portugueses, aliou-se aos holandeses e morreu devota católica. No texto sobre Palmares há uma referência à Aqualtune, mãe de Ganga Zumba, avó de Zumbi, mas nenhuma linha sobre Dandara. Na entrevista, o autor explicou que não há documentos comprovando a existência da mulher de Zumbi, guerreira de Palmares, figura de referência para negras brasileiras. A equação é complexa, em razão da tradição oral de transmissão de conhecimentos nas culturas africanas. O segundo volume de “Escravidão”, promete, terá mais participação feminina, pela existência de registros, a começar por Xica da Silva.

10 – No mais polêmico capítulo, o autor põe em dúvida a existência de Zumbi, herói de Palmares. Reparte o personagem em três fases: ameaça para os portugueses e o sistema escravagista; risco à identidade nacional pela insubordinação; e ícone do movimento abolicionista e da luta por liberdade do povo negro. Laurentino diz que o Zumbi heroico é fruto de “um esforço deliberado de distorcer a pesquisa histórica com óbvio propósito ideológico”. Afirma que a documentação histórica desmente as biografias construídas pelos historiadores Décio Freitas e Joel Rufino dos Santos e incorporadas ao site da Fundação Cultural Palmares. “Escravidão” apresenta o Zumbi gay, descrito em ensaio do antropólogo Luiz Mott.

11 – O autor reconhece a beleza e o encantamento da herança africana. Nenhum outro assunto foi tão importante e definidor para a construção da identidade brasileira quanto a escravidão, sinônimo de trabalho árduo, violências, humilhações, exploração e discriminação. Contudo, enumera: “São da África a capacidade de resistência e adaptação, a resiliência, a criatividade, o vigor, o sorriso fácil, a hospitalidade, alegria, a música, a dança, a culinária”. E evoca o pensamento do sociólogo francês Roger Bastide: “A escravidão não apenas divide, ela também une o que divide”.

12 – O livro não termina na edição impressa. Laurentino Gomes é presença constante nas redes sociais. Além de interagir com leitores, pesquisadores, escritores e colegas jornalistas, compartilha conteúdos em vídeo dos caminhos que percorreu para construir a obra. Sigam @laurentinogomes no Twitter e @laurentino.gomes2018 no Instagram.

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira é jornalista. Especializou-se na cobertura de economia e indicadores sociais. É colunista do jornal O Globo e comentarista no canal GloboNews. É membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.

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