Ana Kelly Oliveira, hoje com 28 anos, tinha acabado de entrar para a faculdade de Marketing quando perdeu a perna direita em um acidente. O ano era 2009. A Lei de Cotas (art. 93 da Lei nº 8.213/91), que regula a contratação de profissionais com deficiência (PCDs), completava 18 anos. A cobrança de multas para quem descumprir a lei tinha acabado de entrar em vigor, o que impulsionou o mercado e abriu as portas para que ela conseguisse os primeiros empregos. No entanto, depois de alguns anos, Ana Kelly percebeu que enfrentava barreiras que passavam despercebidas.
“Entendi que eu ocupava sempre as vagas operacionais. Notei que os profissionais com deficiência preenchiam os mesmos cargos, sem chances de crescer ou sem atuar em uma função de estratégia. Dessa forma, acabam estagnados e pouco experientes para ocupar novos cargos em outras empresas”, comenta ela.
Depois de cinco anos atuando como auxiliar administrativa no serviço público, Ana quis voltar à iniciativa privada para trabalhar na sua área e encarar novos desafios. Em 2018, ela foi contratada por uma assessoria de investimentos como Analista Jr. na área de Recursos Humanos e, em menos de um ano, ganhou uma promoção. A oportunidade veio através de um encontro entre gestores e pessoas com deficiência promovido pela PageGroup, empresa de recrutamento com sede em São Paulo.
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Veja o que já enviamosAs empresas precisam aprender que o profissional com deficiência tem que ser empregado pela competência, que pode correr risco como qualquer funcionário. Depois de empregada, a pessoa precisa produzir e permanecer na empresa. O mais importante é mudar a cultura institucional, desde investir em acessibilidade, tecnologia e na cultura de inclusão no ambiente de trabalho
[/g1_quote]A demanda por esses profissionais tem aquecido o mercado de contratação. Nas principais capitais do país, empresas desenvolveram atendimento específico para o setor. A PageGroup criou, no ano passado, o PCD Lab, que promove encontros mensais entre profissionais e empresas desde fevereiro de 2018. O projeto aumentou as contratações de PCDs em 24% frente a 2017. A recrutadora trabalha com participantes graduados que disputam funções que vão de estágio até coordenação.
“O interessante dos eventos é que os próprios profissionais sinalizam o que eles precisam no dia a dia. É uma quebra de paradigma. Estamos falando de profissionais que querem ser cobrados e reconhecidos”, explica Isabel Pires, gerente do PCD Lab.
A resistência ainda é o maior desafio para as contratações, afirma Mauro Chiappetta, consultor de RH da Qualitá Consultoria, situada no Rio de Janeiro. Segundo ele, é comum gestores que buscam profissionais com deficiências consideradas mais leves. “Muitos gestores pedem aquele profissional com a menor deficiência possível. Tento conversar, explico que a pessoa é capaz de trabalhar com qualquer funcionário e que a equipe tem muito a ganhar com a troca de experiências”, conta ele, afirmando que em 2018 a Qualitá recrutou 20 PCDs, quatro vezes mais do que em 2017.
Na tentativa de quebrar o preconceito, a Egalitê, que tem sede em Porto Alegre e São Paulo, prepara o terreno das empresas antes da contratação. O trabalho consiste em capacitar as áreas das empresas com conceitos de deficiência, sensibilização e orientação sobre mudanças estruturais para que elas se adaptem para receber os profissionais. A consultoria já atendeu mais de 300 empresas a nível nacional e incluiu mais de 6000 pessoas com deficiência.
“Queremos impactar por meio da igualdade de oportunidades. Trabalhamos para que a inclusão seja diferenciada e o funcionário como qualquer outro colaborador. Quando conseguirmos isso é que teremos o trabalho concluído”, afirma Laura Marcon, coordenadora de marketing da Egalité.
Djalma Scartezini, gerente de inclusão da Vivo, acredita que, nos dias de hoje, o trabalho de diversidade tem que estar presente dentro de qualquer empresa. No último ano, ele levou mais de dez gestores para participar do PCD Lab. Djalma acredita que é preciso desmistificar a ideia de que não existe profissionais com deficiência com competência para atuar em grandes companhias.
“Vivemos em um país múltiplo e ainda negamos as diferenças. Não faz sentido a empresa atender pessoas de todos os tipos sem termos diversidade interna. As pessoas precisam perceber que a deficiência comunica primeiro, mas ali existe um profissional competente. Esse é nosso desafio diário”, destaca.
A Lei de Cotas estabelece que companhias a partir de 100 funcionários são obrigadas a preencher de 2% a 5% o dos seus cargos com portadores de deficiência, de acordo com o tamanho de cada empresa. A determinação entende por PCDs pessoas que possuem limitações permanentes, adquiridas ou não, como deficiência física completa ou parcial, deficiência auditiva, visual e intelectual. O empregador que descumpre a medida está sujeito a multas aplicadas após a fiscalização da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho. Os valores variam de R$ 636,17 a R$ 63.617,35.
A iniciativa facilita as contratações, mas não resolve o problema. De acordo com Teresa Costa d’Amaral, superintendente do Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência, é comum que empresas recrutem funcionários apenas para atenderem à fiscalização e escaparem das multas.
“Muitas empresas fazem o recrutamento e demitem logo após a fiscalização. Elas precisam aprender que o PCD tem que ser empregado pela competência, que pode correr risco como qualquer funcionário. Depois de empregada, a pessoa precisa produzir e permanecer na empresa. O mais importante é mudar a cultura institucional, desde investir em acessibilidade, tecnologia e na cultura de inclusão no ambiente de trabalho”, destaca.